O mais urgente é reconstruir políticas que permitiam interromper a violência doméstica antes que ela chegue ao feminicídio, diz a professora Ana Diniz
Bárbara Nór
No ano passado, o Brasil bateu um triste recorde: o maior número de feminicídios já registrado em um semestre. De acordo com dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no fim de 2022, foram 699 casos nos seis primeiros meses do ano, uma média de quatro mulheres assassinadas por dia. O aumento foi de 10,8% em relação a 2019 e de 3,2% em relação ao mesmo período de 2021.
O cenário, diz Ana Diniz, professora e pesquisadora no Insper, onde coordena o Núcleo de Estudos sobre Diversidade e Inclusão no Trabalho, é “alarmante”. Ao mesmo tempo em que batemos recorde de violência, a verba do governo federal para o combate à violência contra a mulher teve uma redução de 90%.
“O Brasil é um dos países em que as mulheres mais morrem e sofrem diversas violências, especialmente a violência doméstica ou intrafamiliar”, observa Ana Diniz. Na maioria dos casos, ela aponta, a violência é cometida por maridos, namorados e ex-parceiros, ou, ainda, por pais e irmãos. “Essa violência pode incluir ameaças, reprimendas, redução do espaço e culminar em ações materiais e até a violência física.”
O feminicídio é a ponta do que de fato acontece em muitos relacionamentos, que tendem a repetir um padrão. Eles começam com a chamada “fase da lua de mel”, quando o parceiro é carinhoso e presente, até o começo das primeiras agressões. Depois disso, há o “arrependimento”, explica Ana, seguido de mais ciclos de violência que vão se intensificando. “O parceiro pede desculpas, diz que não vai se repetir, e volta para a lua de mel, e assim vai em uma espiral, até que se chegue à morte”, ela diz. “Essa é uma característica importante a ser destacada porque há possibilidades de interromper esse ciclo no curso.”
Veja mais na entrevista a seguir.
No Brasil, a maior parte dos feminicídios é cometida por homens próximos à vítima, como ex-maridos e parceiros. Como enfrentar esse problema?
Primeiro, é preciso compreender que o fenômeno da violência não é privado, mas uma questão pública. Também precisamos entender que ciúmes e agressões não são atos de “amor”. É importante não normalizar essas agressões e não as considerar como problema íntimo. É isso que queremos dizer com a frase “em briga de marido e mulher se mete a colher, sim”, que tenta mostrar a importância de nos responsabilizarmos coletivamente por interromper o ciclo de violência. Um dos casos mais famosos de feminicídio, quando a Ângela Diniz [socialite brasileira morta em 1976] foi assassinada pelo seu então companheiro, é um exemplo dessa naturalização. Seu companheiro [o empresário Raul “Doca” Street] era um réu confesso e teve seu primeiro julgamento direcionado pela tese de que ele havia agido em legítima defesa da própria honra.
Algo que ouvimos com frequência é o fato de que as vítimas são culpadas pela violência que sofreram.
Sim, existe uma estigmatização muito grande. As mulheres são muitas vezes “culpadas” pela violência que sofrem. Tem outra questão importante a destacar que é o fato de que, em uma sociedade patriarcal, o homem muitas vezes se relaciona com a companheira e os filhos como se fossem sua propriedade. Não à toa, temos visto nos últimos anos muitos casos de feminicídio acompanhados de infanticídio — o homem mata tanto a esposa quanto os filhos. Isso faz parte da complexidade desse fenômeno. Mas pesquisas na área da Psicologia mostram que são muitos os motivos que levam a mulher a se manter em uma relação abusiva. Antes, se achava que era apenas a dependência financeira que mantinha a mulher em uma relação abusiva. Mas a violência doméstica é um problema que atravessa as diferentes classes.
Como o Brasil vem avançando no combate à violência contra a mulher nos últimos anos?
Em 1985, com a luta feminista, começamos a criar as primeiras estruturas específicas para isso, como as delegacias especializadas de atendimento à mulher. Em 2006, tivemos um marco importante, que é a Lei Maria da Penha, que levou à institucionalização de uma série de serviços e estruturas para lidar com a problemática da violência. Ela é considerada uma lei sofisticada e um dos arcabouços legais mais avançados no combate contra o feminicídio do mundo. Esses serviços também foram concretizados pelo chamado Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres, de 2007, que descentralizou as ações e fez um acordo federativo entre o governo federal e os governos dos estados e municípios brasileiros. É quando surgiu a Casa da Mulher brasileira, por exemplo, que oferece serviços especializados para mulheres que sofrem violência, como acolhimento, apoio psicossocial e delegacia, entre outros. Mas a violência é algo estrutural que impacta a sociedade brasileira de forma muito intensa. Nossos indicadores de mortes e agressões de mulheres são absolutamente alarmantes e se agravam desde 2018 e, em especial, na pandemia. A luta é também por fazer entender a relevância, a complexidade e o caráter público desse problema.
Por que nossos indicadores vêm piorando?
Se entendemos que a violência doméstica é a forma mais recorrente de violência contra as mulheres no Brasil, o cenário da pandemia piorou bastante as condições de vida. As medidas que obrigavam o isolamento acabaram também acirrando as tensões e dificultando que as mulheres saíssem de casa, então a pandemia pode ter contribuído para esse agravamento. Mas tivemos também nos últimos anos um retrocesso no nosso aparato institucional. As políticas para mulheres e de enfrentamento à violência contra a mulher de forma geral sofreram muito com os cortes que o governo realizou no orçamento. O Ministério das Mulheres teve uma redução expressiva dos recursos para todas as áreas, incluindo o enfrentamento da violência. Para 2023, o corte previsto foi ainda maior. A Casa da Mulher Brasileira, por exemplo, que é um dos equipamentos fundamentais teve um corte de 89 milhões para 43,28 milhões entre 2020 e 2022 — e desde 2019 esse recurso praticamente não tem sido executado. Ou seja, ele é destinado, mas não é usado na prática.
Esse aumento no número de feminicídios poderia também dizer respeito a mais mortes sendo classificadas dessa forma ou de fato mais mulheres estão morrendo?
Temos uma carência de protocolos para a construção de dados mais robustos sobre a violência contra as mulheres de maneira geral. Mas temos também uma grande subnotificação em relação às formas de violência que precedem o homicídio. A rede que ampara as mulheres é muitas vezes pouco integrada, o que faz que a mulher tenha que percorrer uma rota tortuosa para ter acesso a serviços e ter seu caso endereçado, muitas vezes tendo que reviver a violência várias vezes. Isso leva a uma baixa procura e a uma deficiência no acesso a esses serviços, fora todo o estigma em torno da violência que também já dificulta a busca por ajuda. Então, temos um cenário de muita subnotificação. Embora os números sejam já alarmantes, sabemos que eles não refletem a realidade e estão abaixo do que de fato acontece.
O que seria preciso fazer para combater esse problema de forma mais efetiva?
Tratar o problema da violência exige uma articulação de diferentes setores dentro da estrutura e administração pública para garantir que o problema seja respondido em sua complexidade. A saúde, a justiça, segurança pública e até educação estão envolvidas no leque de ações nos diferentes níveis federativos da União. É preciso construir caminhos para tirar as mulheres dessa situação de forma coordenada. Isso envolve, inclusive, educação para identificar situações de violência, assim como educar homens para relações não violentas. O mais urgente é reconstruir políticas que de fato permitam que a gente interrompa a violência doméstica antes que ela chegue ao homicídio. Para isso, precisamos atender essas mulheres, nos comunicarmos com elas e garantir que elas saibam onde acessar esses serviços. É importante também considerar a interseccionalidade que atravessa o problema. Mesmo que a questão da violência atravesse todas as mulheres, a interseccionalidade traz características peculiares que precisam ser levadas em conta, como questões de classe e de raça, assim como o nível de acesso a serviços e apoio.