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Em meio à crise do gás, a energia nuclear ganha um novo impulso

Os riscos de aquecimento global e a guerra entre a Rússia e a Ucrânia dão novo ânimo a uma indústria que enfrentou uma década de menosprezo e falta de inovações tecnológicas

Os riscos de aquecimento global e a guerra entre a Rússia e a Ucrânia dão novo ânimo a uma indústria que enfrentou uma década de menosprezo e falta de inovações tecnológicas

 

David Cohen

 

Depois de mais uma década de retração, a energia nuclear está de volta. E sua volta parece, com o perdão do trocadilho, uma reação em cadeia. Nos últimos meses, o Reino Unido, a Polônia, a República Tcheca e a Holanda anunciaram planos de investir na construção de novos reatores. A França, que já utiliza a energia nuclear como fonte de dois terços de sua matriz energética, está treinando milhares de trabalhadores para operar os futuros 14 grandes reatores que deverá produzir.

Os Estados Unidos aprovaram no ano passado o gasto de 6 bilhões de dólares em subsídios para manter usinas nucleares em funcionamento, fora outros 2,5 bilhões de dólares para o desenvolvimento de plantas nucleares mais avançadas. Argentina, Canadá, Coreia do Sul e Rússia também estão investindo em novos tipos de reatores.

No Brasil, o Ministério das Minas e Energia assinou com o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica em janeiro deste ano um convênio para selecionar locais para novas usinas nucleares. Desde o ano passado, foi retomada a produção de urânio, parada há cinco anos, e a construção da usina nuclear de Angra 3, paralisada desde 2015. De acordo com o Plano Nacional de Energia 2050, o país deverá quintuplicar a oferta de energia elétrica obtida de reações nucleares nos próximos 30 anos — dos 2 GW (gigawatts) atuais para algo entre 8 GW e 10 GW.

Além de todos esses investimentos, há a China. Seus planos para os próximos 15 anos incluem a construção de 150 reatores nucleares. É mais do que o resto do mundo construiu, em conjunto, nas últimas três décadas. A ideia é acrescentar 200 GW à matriz energética do país até 2035, o suficiente para iluminar mais de uma dúzia de cidades tão populosas quanto a capital, Pequim.

 

A queda

As usinas nucleares começaram a ser construídas na década de 1950. Eram uma prova de que as reações de fissão nuclear poderiam ser usadas para o progresso da humanidade, não apenas em armas para sua destruição. Desde o final da década de 1970, no entanto, ganharam força os movimentos ambientalistas — e um de seus alvos eram as usinas nucleares, pelo temor de acidentes e pela preocupação com o lixo nuclear (o material radioativo que não pode ser dispensado normalmente).

Os acidentes de Three Mile Island, na Pensilvânia (EUA), em 1979, e de Chernobyl, na Ucrânia (então parte da União Soviética), em 1986, potencializaram os temores. A opinião pública contrária aos riscos fez com que os países do Ocidente praticamente parassem de construir reatores. Uma exceção foi a França. Com a crise do petróleo a partir de meados dos anos 1970, o país decidiu investir nas usinas nucleares como principal fonte de energia.

No novo milênio, os ânimos pareciam ter se acalmado e a defesa da energia nuclear ganhava força, especialmente ante as necessidades energéticas crescentes. Mas o acidente em Fukushima, no Japão, em 2011, voltou a assustar a opinião pública mundial.

Se uma usina moderna e construída com o máximo rigor de segurança podia provocar aquele desastre, espalhar radiação e tornar a área inabitável por mais de cem anos, quem estaria seguro? Os defensores da energia nuclear afirmam que a usina foi projetada para resistir a terremotos de grande magnitude, mas não a ondas resultantes de maremotos, como foi o caso, e que houve falhas humanas — mas o ponto é justamente que sempre podem ocorrer eventos não previstos e erros de operação.

“O custo de qualquer tipo de desastre nuclear é alto demais”, diz a física Ana Carolina de Magalhães, professora de Engenharia do Insper. “E, como os materiais permanecem radioativos por centenas, até milhares de anos, a chance de haver acidentes em algum momento é muito alta.”

Na sequência do desastre de Fukushima, o avanço da energia nuclear foi mais uma vez estancado. Os Estados Unidos aumentaram o rigor das regulações; a Alemanha decidiu fechar todos os seus reatores, uma medida que deve ser completada este ano; diversos outros países suspenderam, adiaram ou cancelaram planos para expandir sua rede nuclear.

Ao mesmo tempo, ocorria uma revolução do gás nos Estados Unidos, com a descoberta e exploração de enormes reservas de gás de xisto (encontrado dentro de rochas sólidas e extraído por fraturamento). A produção americana quase dobrou entre 2005 e 2020 e suas exportações quadruplicaram entre 2015 e 2020, de acordo com a Secretaria de Informação Energética do país. Entre as produções dos Estados Unidos e da Rússia, que abastece boa parte da Europa, o mundo se viu com poucos incentivos para expandir suas fontes de energia nuclear.

De outro lado, as energias renováveis tiveram um avanço extraordinário. O custo da energia solar caiu para um nono do que era uma década atrás; o da energia eólica teve redução de 40%. E o custo das baterias necessárias para armazenar energia caíram 70%. No Brasil, os ventos já respondem por 8,8% da matriz elétrica, taxa que deve subir para 13,6% até o final de 2025, segundo o Operador Nacional do Sistema. Embora com participação ainda pequena, de apenas 1,7% da matriz elétrica nacional, a oferta de energia solar por grandes usinas cresceu 200%, e a de pequenas centrais, 2.000% — apenas nos últimos três anos.

Com tudo isso, as usinas nucleares pareciam condenadas a permanecer como, no máximo, uma fonte marginal de energia no mundo. Até que o cenário mudou.

 

A volta

A principal fonte do ressurgimento das apostas na energia nuclear é o aquecimento global. O consenso científico aponta que é essencial cumprir os acordos climáticos de Paris, que determinam limitar a quantidade de gases que promovem o aquecimento global, para que a temperatura do planeta não suba mais do que 1,5ºC acima das médias de antes da revolução industrial. Caso contrário, os danos ambientais podem ser catastróficos.

O problema é que, para atingir essas metas, a energia nuclear é provavelmente imprescindível. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU indicou quatro cenários que evitam o aquecimento acima de 1,5ºC. Três deles envolvem aumentar a oferta de energia nuclear no mundo, de 150% a 500%. O outro considera manter a oferta tal como estava em 2018.

No cenário da Agência Internacional de Energia para zerar as emissões de carbono, a oferta de energia nuclear teria que dobrar até 2050. Há alguns poucos cenários alternativos, como um recentemente traçado pela Universidade Stanford, que mostram um caminho para a emissão zero sem recorrer à energia nuclear. A maioria, no entanto, aponta extremas dificuldades para isso. Pesquisadores da Universidade Princeton avaliaram uma gama de opções para a descarbonização da economia mundial e concluíram que o caminho mais barato exigiria triplicar a geração de energia nuclear.

Um segundo impulso para as usinas nucleares veio da recente invasão da Ucrânia pela Rússia, que demonstrou aos países europeus as inconveniências de depender do gás russo. “O processo de acabar com a dependência do gás russo não pode ser realizado sem aumentar a parcela nuclear na matriz energética”, disse Alena Mastantuono, do Comitê Econômico e Social Europeu, à rádio pública americana NPR.

Não é que a Europa tenha acordado apenas agora para os riscos de depender da Rússia. A demanda global por gás e problemas no fornecimento já causavam volatilidade no mercado de energia há alguns anos, levando à busca de alternativas.

A confluência dessas duas razões — o aquecimento global e as questões político-econômicas — fez com que a União Europeia propusesse, em fevereiro, a inclusão da energia nuclear entre os investimentos considerados verdes, uma medida combatida por grupos ambientalistas.

 

Os problemas

“Considerar a energia nuclear como limpa… depende de como você entende o termo”, diz Ana Carolina Magalhães, do Insper. “Se não considerar o lixo radioativo, nem as dificuldades de descomissionamento dos reatores, só o aquecimento global, pode ser. Mas isso é um erro.”

Investir em energia nuclear, alerta ela, é contratar uma produção enorme de lixo radioativo — o material que já não serve para as reações químicas necessárias para produzir energia, mas ainda mantém um nível de radiação perigoso à vida.

De fato, o mundo ainda não tem solução para isso. E já há 263.000 toneladas de combustível gasto (e radioativo) em depósitos provisórios pelo mundo, segundo estimativa da Agência Internacional de Energia Atômica.

A Finlândia está preparando o primeiro sítio permanente de descarte de lixo atômico do mundo. Sob a floresta de Olkiluoto, uma ilha na costa oeste do país, o Onkalo (buraco ou poço, em finlandês) fica 430 metros abaixo da terra, 420 metros abaixo do nível do mar. Lá serão guardados os materiais ainda radioativos, dentro de grandes tubos de cobre lacrados, que precisam resistir durante… cerca de 100.000 anos.

Especialistas dizem que os depósitos permanentes são a melhor solução. Difícil é encontrar esses locais. Além das exigências geológicas (precisam ser estáveis, não ter risco de ser alcançados pela água etc.), há o desafio de convencer comunidades locais a aceitar a presença de material radioativo em sua vizinhança, ainda que supostamente protegido. Protestos na França fizeram o governo suspender a criação de um depósito permanente no país, bem como nos Estados Unidos, em 2009, o governo de Barack Obama recuou dos planos de criar um no estado de Nevada.

“Não é só a preocupação com a blindagem desse material”, lembra Magalhães, do Insper. “É preciso ter as devidas advertências do que o local guarda. E como se pode garantir que essas advertências vão ser mantidas durante centenas, milhares de anos?”

 

As soluções

Ambientalistas e muitos especialistas preferem claramente outras fontes de energia, especialmente as renováveis. “O Brasil não necessita desses investimentos em energia nuclear”, disse Antônio Martins, físico e professor do Departamento de Engenharia Ambiental do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) da Unesp Sorocaba, ao jornal da Unesp, em janeiro deste ano. “Estamos longe de esgotar nossa capacidade de geração de energia solar e eólica.”

O argumento soa como irrefutável. Enquanto as preocupações com segurança e a necessidade de lidar com o lixo nuclear tornaram as usinas atômicas mais caras ao longo do tempo, as energias eólica e solar passaram a custar menos.

A defesa da energia nuclear se baseia, no entanto, na estabilidade. Tanto a luz solar como os ventos são fontes voláteis de eletricidade, que necessitam do apoio de usinas alternativas (em geral a carvão) ou de armazenamento de eletricidade (em baterias).

Além disso, há uma questão de autonomia energética. O urânio é um elemento razoavelmente comum e seu preço não é suscetível a tantas alterações quanto o do gás. O volume necessário para fazer um reator funcionar é muito menor do que o requerido para combustão de material fóssil: a energia obtida com uma tonelada de carvão é equivalente à de 5 gramas de dióxido de urânio. Assim, os países podem facilmente estocar material suficiente para vários anos, o que contribui para estabilizar os preços e não depender de algum fornecedor específico.

As vantagens da energia nuclear ficaram evidentes no ano passado na Europa. Enquanto os preços do gás e do petróleo subiam, o continente experimentava ventos excepcionalmente fracos e chuvas mais esparsas que o normal, o que diminuiu a oferta de energia renovável. Nesta crise energética, as usinas atômicas mantiveram o fornecimento de energia livre de carbono a um preço estável.

Para os defensores das usinas nucleares, elas não deveriam ser comparadas apenas às fontes de energia renovável, mas também às fontes de energia fóssil. Afinal, são essas que, primariamente, irão substituir. Quando a Alemanha iniciou o abandono da energia nuclear, recorreu principalmente a usinas termoelétricas, que usam carvão. Isso não apenas atrasou as metas de neutralidade de carbono do país, também levou à morte de cerca de 1.100 pessoas por ano, vítimas da poluição extra provocada pelas usinas de carvão, de acordo com um estudo do Birô Nacional de Pesquisas Econômicas, feito em 2019.

Quem combate a energia nuclear, dizem seus proponentes, esquece que ela é muito menos danosa à saúde pública do que a energia fóssil.

A aposta exclusiva em energias renováveis também tem seus problemas. Um deles é a estabilidade, para a qual ainda não há solução satisfatória, no nível necessário (apesar dos avanços na tecnologia de baterias). Outro é o uso de terras. Tanto a energia eólica quanto a energia solar requerem propriedades muito maiores do que uma usina atômica. Além disso, estão muitas vezes distantes dos centros de consumo. Um estudo da Universidade Princeton estima que, nos Estados Unidos, para usar primordialmente energia renovável, seria preciso quintuplicar a rede de transmissão de eletricidade.

Paradoxalmente, esse uso extensivo de terras costuma ser combatido por… grupos ambientalistas. Há poucos meses, três dos mais destacados grupos verdes do estado do Maine, nos Estados Unidos, fizeram campanha (bem-sucedida) contra uma linha de transmissão que teria trazido energia de uma hidrelétrica do Canadá, em nome da preservação da beleza natural de sua região.

Curiosamente, nesta questão os ambientalistas se alinham com o ex-presidente americano Donald Trump, feroz crítico da energia eólica desde que um projeto britânico implementou hélices em frente a um campo de golfe de sua propriedade na Escócia, “estragando a vista”.

A contradição entre defender a energia renovável e combater projetos de construção de usinas eólicas ou solares ganhou o apelido de Nimby, acrônimo de not in my backyard, ou “não no meu quintal”. Quer dizer, todos querem as usinas, mas não aqui.

É claro que as usinas nucleares também têm de lidar com o Nimby, com rejeição até mais forte. Porém, como a produção de energia é muito maior, precisam encontrar muito menos lugares que aceitem sua presença.

 

Avanços e retrocessos

Quanto às questões de segurança, os defensores da energia nuclear afirmam que as regulações se tornaram muito mais exigentes que no passado. Apontam, também, que os vaivéns na indústria atrasaram a evolução tecnológica.

Os reatores atuais foram sempre encarados como uma “primeira geração” da tecnologia nuclear. É de esperar que em pouco tempo surjam avanços não apenas de segurança como de eficiência.

Há algumas apostas neste sentido. A TerraPower, uma companhia fundada pelo bilionário Bill Gates, propõe o uso de urânio encapsulado em um líquido à base de sal derretido. Este reator seria mais simples de construir por não necessitar operar em altas pressões. Outra startup, X-energy, propõe o uso de bolas de grafite do tamanho de bolas de sinuca em seu reator.

Ambos os projetos estão em seus passos iniciais e exigiriam o desenvolvimento de um novo tipo de combustível nuclear, o urânio enriquecido de baixo teor, que nunca foi usado em escala comercial. Estão, portanto, a vários anos de distância.

O que está mais perto são os reatores modulares (SMRs), uma esperança de agilizar e baratear a produção, porque podem ser construídos em partes, nas fábricas, e depois montados no local da usina, em vez de serem construídos integralmente no local onde ficarão.

A Rolls Royce diz ter desenvolvido um projeto de SMR cujo custo é de um décimo do reator convencional. Outras empresas, nos Estados Unidos e na Europa, têm também seus projetos. SMRs estão já licenciados ou em construção na Argentina, no Canadá, na Rússia, na China, na Coreia do Sul e nos Estados Unidos.

Segundo a pesquisadora Lindsay Krall, no entanto, trata-se mais de um retrocesso do que de um avanço. Liderando equipes das universidades George Washington e Stanford que estudaram três projetos diferentes de SMRs, ela concluiu que eles produzem até 30 vezes mais lixo radioativo que os reatores tradicionais.

“Por ser menor, o SMR deixa escapar uma proporção maior de nêutrons gerados em seu núcleo; por isso é mais difícil sustentar uma reação em cadeia”, ela afirmou ao site especializado Chemistry World. “Um método comum para lidar com a perda de nêutrons é adicionar refletores de nêutrons de grafite ou aço, mas eles acabam se tornando radioativos.” Os SMRs, portanto, produzem mais lixo de baixa ou média radioatividade, afirma a pesquisadora.

Depositar muitas esperanças na evolução tecnológica talvez seja uma demonstração de otimismo exagerado. De acordo com um estudo da revista científica americana Proceedings of the National Academy of Sciences, várias décadas de tentativas de desenvolver tecnologia nuclear mais avançada deram em praticamente nada.

Se houve movimento no Ocidente, foi para trás, de acordo com reportagem do jornal econômico The Wall Street Journal. Segundo o texto, “os países que deram luz à era nuclear estão sofrendo uma falta de trabalhadores especializados com experiência na construção de reatores, após desprezar a energia nuclear por tantos anos”.

Por causa disso, diversos projetos sofreram atrasos e prejuízos consideráveis. Na França, um reator que devia ter ficado pronto em 2012 ainda está, dez anos depois, necessitando de consertos em mais de 100 pontos por causa de soldas malfeitas em seu sistema de refrigeração.

Nos Estados Unidos, um projeto da Georgia Power de construção de dois reatores está atrasado e já ultrapassou o orçamento em bilhões de dólares. Um reator na Finlândia começou a gerar energia em pequena quantidade em março deste ano, 13 anos depois do contratado.

Ainda assim, os argumentos em prol da energia nuclear não são facilmente descartados. Como afirma o jornalista Eric Levitz em artigo na New York Magazine, “no curto prazo, a energia nuclear é necessária para compensar pela intermitência das fontes renováveis”.

No futuro, é mais provável que os avanços tecnológicos resolvam o problema do armazenamento de energia eólica e solar do que se consiga resolver as questões de segurança e do lixo radioativo. Nesse caso, a energia nuclear — mais cara e mais problemática — deverá naturalmente perder espaço no mundo.

Por ora, porém, ela pode ser uma das ferramentas para liberar o mundo dos combustíveis fósseis, que, segundo um estudo da Universidade Harvard de 2018, matam cerca de 8 milhões de pessoas no mundo, anualmente, pelos efeitos da poluição.

 

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