Workaholic, o dono da Tesla é a mais veemente voz a exigir o retorno dos empregados aos escritórios, com jornadas mais extensas
David Cohen
Goste-se ou não do sul-africano, canadense e americano Elon Musk, apontado como o homem mais rico do mundo, suas visões são normalmente associadas a uma orientação futurista: energia mais limpa, viagens espaciais, comunicação via redes sociais, entusiasmo pelas criptomoedas… No que tange ao trabalho, no entanto, ele já deu vários indícios de estar preso a doutrinas antigas.
Sua mais recente declaração polêmica sobre trabalho foi uma mensagem de email em junho para os funcionários de nível gerencial da montadora Tesla, afirmando ironicamente que, sim, eles poderiam continuar trabalhando remotamente — desde que fizessem isso após 40 horas semanais presenciais. No mínimo.
“É menos do que pedimos aos trabalhadores de nossas fábricas”, acrescentou. De fato, a Tesla é conhecida por estender as horas de trabalho dos empregados fabris quando o cronograma de entregas aperta. O próprio Musk já passou várias noites dormindo na fábrica, em turno contínuo, para “dar exemplo”. Aparentemente, considera que esses momentos de exceção deveriam se tornar a regra.
Em uma única mensagem, Musk tocou em duas das questões mais sensíveis do mundo do trabalho atualmente: a flexibilidade de poder exercer suas funções em locais e horários não determinados; e a quantidade de horas que se exige de dedicação à empresa.
Após dois anos de uma pandemia que teve impacto transformador nas práticas de trabalho, está em curso uma reacomodação das empresas. E esses dois temas estão no centro dos debates.
Ao justificar a exigência do trabalho presencial, Musk afirmou: “Quanto mais sênior é o seu cargo, mais visível deve ser a sua presença. É por isso que vivi na fábrica durante tanto tempo — para que o pessoal na linha de montagem me visse trabalhando ao lado deles. Se não tivesse feito isso, a Tesla teria falido há muito tempo”.
É claro que, se um chefe impõe esforços extraordinários para os outros e não para si mesmo, muito provavelmente afetará negativamente o moral da equipe, por ofender o senso de justiça. Mas a ideia de que um gestor deve estar perto dos funcionários, para inspirá-los, tirar dúvidas e informar-se sobre o que estão fazendo, um conceito conhecido como managing by wandering around (administrar passeando por aí, em tradução livre), ficou ultrapassada.
Ela era moderna nos anos 1970, quando os fundadores da Hewlett-Packard a aplicavam, e foi amplamente difundida pelo guru de gestão Tom Peters nos anos 1980 e 1990. Na época, ela se contrapunha ao estilo militar, de comando e controle, em que o burocrata ficava trancado em seu escritório e se informava sobre a empresa por meio de planilhas. Representava, portanto, um enorme avanço.
No novo milênio, no entanto, as organizações funcionam com hierarquias em matriz, trabalho em equipe, decisões rápidas tomadas na ponta, especialização. Em ambientes assim, a figura de autoridade que aparecer para perguntar como estão as coisas será provavelmente vista como um intruso e um atraso.
Há algumas boas razões para que as empresas desejem a volta dos funcionários aos escritórios — mas esta não é uma delas. Entre os motivos mais válidos estão a preservação da cultura da empresa, o fato de que algumas pessoas trabalham melhor em contato com colegas ou sem interrupções rotineiras em casa, o estímulo à inovação que advém de contatos fortuitos (o conceito de serendipidade).
Há dez anos, a então executiva-chefe do Yahoo, Marissa Mayer, teve uma posição semelhante à de Musk. Após analisar os registros de uso da rede de computadores pelos funcionários remotos e descobrir que não ficavam online o tempo esperado, ordenou que todos voltassem ao escritório. Segundo ela, o trabalho a distância estava corroendo a cultura criativa e prejudicando o desempenho da empresa. Mas Marissa não foi bem-sucedida em reverter a crise do Yahoo, fosse com trabalho remoto ou presencial.
Há quem esgrima o argumento oposto, de que o trabalho remoto elevou a produtividade. Um estudo da Universidade Stanford concluiu que as pessoas são mais produtivas quando podem trabalhar em casa pelo menos uma parte do tempo. Há até números para comprovar. Nos Estados Unidos, dados do governo mostram que a produtividade cresceu a uma taxa anualizada de 3,8% a partir do segundo trimestre de 2020, bem mais que a média de 1,4% ao ano entre 2005 e 2019. A explicação mais convincente, entretanto, é que a onda de demissões dos primeiros meses da pandemia atingiu em especial os setores de mais baixa produtividade, elevando assim a média da nação.
Musk não é nem de longe o único a pregar a volta aos escritórios. A Alphabet, empresa-mãe do Google, está enfrentando alguma resistência, assim como a Apple. O executivo-chefe do banco de investimentos JP Morgan, Jamie Dimon, acredita que o trabalho vai voltar a ser “igualzinho ao que era antes” (da pandemia). Admitiu, porém, em uma carta aos acionistas, que o trabalho remoto “será algo mais permanente nas companhias americanas”.
Mesmo uma empresa que abraçou o trabalho remoto com sucesso, como a japonesa Fujitsu, na qual de 80% a 90% dos empregados agora trabalham de casa, está tomando medidas para facilitar a volta aos escritórios — por acreditar que a inovação necessária para enfrentar os desafios dos negócios será facilitada pelo contato físico. O escritório em Kawasaki, no Japão, foi remodelado: em vez de mesas individuais, o ambiente ficou mais parecido com um café; as pessoas podem trabalhar em qualquer canto e há espaços de reuniões com grandes quadros brancos.
A nova arquitetura favorece o que se está considerando como a principal tendência: um sistema híbrido, em suas diversas formas — parte da equipe em casa, ou alguns dias em casa. Essa tendência ganha força por vários motivos, sendo o principal deles a disposição das novas gerações.
Há alguns anos, o fundador da Microsoft, Bill Gates, já dizia que a competição para recrutar talentos na próxima década (esta em que estamos agora) aumentaria muito e que as empresas que oferecessem flexibilidade extra levariam vantagem. Já está acontecendo. Empresas que favorecem o trabalho remoto colocam isso em seus anúncios para contratação.
As pesquisas indicam que o trabalho flexível não é apenas um desejo, é uma exigência. De acordo com uma pesquisa da empresa Owl Labs, 32% dos trabalhadores afirmam que deixariam o emprego se não pudessem mais trabalhar remotamente.
Está certo que a Owl Labs, fabricante de equipamentos para videoconferência, pode ter uma amostra enviesada em relação ao assunto, mas a Apple, por exemplo, sofreu na pele essa tendência: seu mais destacado especialista em machine learning (uma área da inteligência artificial), Ian Goodfellow, que dirigia a área, transferiu-se para o Google, citando explicitamente que buscava uma empresa com maior flexibilidade para sua equipe.
Não à toa, o executivo-chefe da Apple, Tim Cook, admitiu em um evento da revista Time que a empresa precisa encontrar um modelo híbrido mais adequado e “o jeito que ele começou estava errado e necessita de ajustes”. Cook disse preferir a serendipidade dos encontros em pessoa — até a arquitetura da sede da Apple, influenciada pelo seu fundador Steve Jobs, favorece isso, por exemplo obrigando as pessoas a passar por outros setores para ir ao banheiro ou tomar café —, mas opinou que as reuniões por videoconferência são “diferentes”, não inferiores às presenciais.
Uma outra pesquisa, da Eden Workplace, aponta que o trabalho híbrido é a solução mais indicada. De acordo com a empresa, apenas 18% dos trabalhadores querem ficar longe do escritório o tempo todo, enquanto 34% preferem estar no escritório o tempo todo. Cerca de metade quer variar entre o trabalho em casa e no escritório. Para 95%, ter a possibilidade de escolher é fundamental, e quase dois terços dizem que, para trabalhar o tempo todo no escritório, o salário teria que ser pelo menos 20% mais alto.
A Eden também não é neutra em relação ao assunto (a empresa oferece plataformas para trabalho híbrido), mas diversas outras pesquisas vão na mesma direção. Segundo um levantamento da empresa de recrutamento Page Outsourcing, citado pela revista Época Negócios, dois terços dos brasileiros preferem trabalhar em empresas que permitam trabalhar remotamente, de forma parcial ou integral.
De acordo com pesquisa da consultoria McKinsey, quando a empresa oferece essa possibilidade, 87% das pessoas a aceitam. Nos Estados Unidos, 58% da força de trabalho diz ter essa oportunidade. No Brasil, segundo a consultoria de recursos humanos Korn Ferry, 85% das empresas adotaram o home office.
É natural que, com o arrefecimento da pandemia, o trabalho presencial volte. Mas não totalmente. “Durante a pandemia, as empresas compulsoriamente foram buscar recursos para tocar a vida para a frente”, afirma a psicóloga e consultora Maria Aparecida Rhein Schirato, professora de comportamento e gestão no Insper. “Foram bem-sucedidas. Nós produzimos muito. Agora, os recursos continuam à disposição. Não utilizá-los seria um desperdício.”
O modelo híbrido, quando bem aplicado, potencializa o desempenho. “Se você tem uma reunião em outra cidade que vai durar metade de uma manhã, por que fazer uma viagem que afeta o meio ambiente, compromete a sua saúde, gera estresse, aumenta as despesas da companhia? É muito melhor fazer uma videoconferência”, diz Rhein.
No Brasil, o trabalho remoto também pode driblar dificuldades emergenciais. “Num dia de greve de ônibus, em que o trânsito estava particularmente ruim, optamos por realizar a aula online”, afirma.
Não é apenas que a estrutura já está montada para o trabalho a distância. Em muitos casos, as empresas inclusive trocaram suas sedes, adaptando o espaço físico para acolher menos gente. Além disso, lembra Rhein, a tecnologia permitiu às empresas ampliar seu raio geográfico na busca por candidatos a emprego. “Ampliamos o universo de recrutamento, saímos dos grandes centros. Há muitos contratados que não moram perto da companhia, em outras regiões do país.”
“O modelo de trabalho remoto veio para ficar”, afirmou Fernando Guimarães, diretor de estratégias organizacionais da Korn Ferry, ao site de notícias de negócios Infomoney. Mas será um modelo híbrido, diz. “A alta liderança não está pronta para adotar o sistema de vez. Quer ver como a empresa vai responder em resultados antes de tomar a decisão final.”
Estamos, portanto, em um período de negociação sobre quanto do trabalho pode ser feito a distância. E a volta ao escritório, ainda que parcial, traz mudanças para a relação com as chefias. “Os chefes que quiserem voltar ao sistema de vigilância e controle serão vistos como pessoas antiquadas, com modalidade de trabalho ultrapassado”, diz Rhein, do Insper.
É no mínimo curioso que Elon Musk, um empresário tão vinculado a ideias ousadas em tecnologia, seja identificado com práticas antiquadas nas relações de trabalho. Trata-se de um dos pontos fracos de suas empresas.
Ele não só exige a presença física, quer também uma jornada mais extensa. Uma de suas declarações mais antigas é: “Ninguém nunca mudou o mundo trabalhando 40 horas por semana”.
Talvez haja alguma verdade na frase, mas o mais comum é que as pessoas que trabalham demais acabem por destruir seu mundo particular — vida familiar, saúde, amizades.
“Freud ensinou que existe um princípio básico de distribuição da libido”, afirma Rhein. Essa energia vital não pode se concentrar em um foco só. “Se eu não tiver outros vínculos que me fazem aprender, conhecer, se eu não tiver uma realidade um pouco mais plural, vou ter uma deficiência afetiva e vou adoecer”, diz. Quem trabalha 10, 15 horas por dia está concentrando demais a sua energia e tem grande chance de ficar doente.
Este é, aliás, um dos problemas da Tesla. De acordo com uma reportagem de 2017 do jornal britânico The Guardian, as jornadas de trabalho tensas e extensas da empresa para cumprir cronogramas apertados levaram a um excesso de doenças e ferimentos no trabalho. A Tesla respondeu com melhoras nas condições de segurança, mas depois reguladores da Califórnia ainda apontaram centenas de acidentes não reportados pela companhia na fábrica de Fremont.
A era da valorização dos sacrifícios e da entrega total à empresa parece ter passado. As pessoas agora buscam equilíbrio entre vida pessoal e vida profissional e, além disso, bem-estar no trabalho. Entre o pessoal de escritório, especialmente os mais talentosos, que têm mais opções de emprego, a pressão se dá pela demissão. Para o pessoal de fábrica, pelo menos nos Estados Unidos tem-se notado um aumento na procura de representação sindical (como nos casos de Apple, Starbucks e Amazon).
“Os chefes que acreditam em esfolar o funcionário até o limite estão com os dias contados”, diz Rhein. Não é bom para as pessoas e não é bom para a empresa, que perde produtividade pelos afastamentos e pelo ambiente ruim, além de perder talentos. “Aquela política de retenção que se praticava nos anos 90, de dar plano de saúde, benefícios, carro da empresa etc… esquece. A política de retenção hoje é oferecer condições para que a pessoa usufrua de suas conquistas: tirar férias sem ser importunada, praticar seu esporte, ter vida social.”
Essa é a visão do atual executivo-chefe do Twitter, Parag Agrawal. Em mensagem aos funcionários, disse: “Onde quer que você se sinta mais criativo e mais produtivo é onde você vai trabalhar, e isso inclui trabalhar de casa para sempre”. Musk, que deve concretizar a compra do Twitter até o final do ano, não poderia discordar mais. Sobre quem trabalha remotamente, declarou: “Eles deviam fingir que trabalham em outra empresa”.
É provavelmente o que farão muitos dos funcionários mais talentosos.
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