O quadrinista curitibano José Aguiar reflete sobre a infância no Brasil, da colonização aos dias atuais, em projeto agora transformado em livro
Tiago Cordeiro
Em termos históricos, o conceito de infância é bastante recente. Surgiu ao longo dos últimos três séculos, em diferentes momentos, dependendo da região do planeta. O Brasil não foge a esta regra: ser criança no país, hoje, é muito diferente de experimentar a infância em outros momentos de nossa trajetória. Comparar essas diferenças é uma forma produtiva de olhar para o passado da nação. E, também, olhar para os desafios do futuro.
Essa é a base conceitual do projeto A Infância do Brasil, desenvolvido desde 2015 pelo quadrinista curitibano José Aguiar, nascido em 1975. A iniciativa teve início como uma webcomic (história em quadrinhos online), publicada em seis capítulos, em português, inglês, francês e espanhol, no site www.ainfanciadobrasil.com.br. Em 2017, ganhou uma edição impressa, indicada no ano seguinte ao Prêmio Jabuti. A obra impressa estava esgotada, até que agora, em março de 2022, ganhou uma reedição ampliada e revisitada.
O projeto foi realizado pela Quadrinhofilia Produções Artísticas, editora de propriedade de Aguiar, por meio do Programa de Apoio e Incentivo à Cultura da Fundação Cultural de Curitiba, com incentivo da Caixa Econômica Federal. Partindo do século 16, a cada capítulo o autor retrata uma época diferente da construção do país, sempre do ponto de vista de suas crianças.
O autor é quadrinista, roteirista e editor premiado. Já atuou na França, onde desenhou a série Ernie Adams, a respeito de um boxeador que resgata Gilda, a garota de um mafioso na Chicago da década de 1930. Também produziu os quadrinhos Folheteen: Direto ao Ponto, Vigor Mortis Comics 1 e 2 e Dom Casmurro. Aguiar publica diariamente, no jornal O Globo, a série de tiras Nada Com Coisa Alguma. Nas horas vagas, mantém viva a personagem adolescente Malu, de sua criação.
Na entrevista a seguir, o quadrinista comenta o projeto de retratar a infância, no Brasil, ao longo da história. E explica que o título, A Infância do Brasil, com “do” no lugar do “no”, também propõe uma reflexão sobre o momento que o país vive — afinal, ainda somos uma nação jovem?
Quando e como surgiu a ideia de apresentar a infância no Brasil, em diferentes momentos da história?
Depois que minha esposa [a professora de alemão Fernanda Baukat] e eu tivemos nosso primeiro filho, passamos a lembrar das nossas infâncias e, ao comparar relatos de família, ficamos intrigados com os contrastes geracionais. Nisso me veio que essa poderia ser uma perspectiva nova para recontar a história do Brasil. O processo de pesquisa e escrita trouxe a ideia de mostrar conexões entre cada século de nossa história oficial com o nosso cotidiano presente. Quanto mais mergulhava nos temas sobre abusos e abandonos, mais ficava evidente que essas questões, infelizmente, seguem longe de ser superadas. Traçar paralelos entre o agora e épocas remotas é a forma que encontrei para instigar leitores a refletir comigo sobre o que foi superado e o que insiste em permanecer errado em nossa sociedade.
Como foi o processo de pesquisa para a obra?
Como não tenho formação em História e queria realizar um projeto acurado, busquei a consultoria da historiadora Claudia Regina Moreira. A partir das minhas demandas, ela me trouxe uma bibliografia e contextos históricos para que eu pudesse reconstituir cada momento com credibilidade. Em paralelo, pesquisei livros e filmes que se passam nos períodos de cada capítulo. Também fotografei as ruas, pois o presente é componente importante na minha HQ.
O material de divulgação menciona que nos acostumamos a pensar que vivemos em um país jovem. O país está amadurecendo? Deixando sua infância para trás?
O título do meu livro é uma metáfora para essa questão, pois temos passado por tempos difíceis graças a políticas conservadoras e retrógradas resultantes de abusos históricos não confrontados e superados. No momento em que vivemos, entender de onde viemos para saber como chegamos aqui é mais do que necessário. Quem sabe assim poderemos superar nossas heranças complicadas, vencer o presente ruim e arriscar um futuro melhor. O Brasil deixar sua infância para enfim crescermos. Sempre estivemos sob a tutoria de alguém e, recentemente, nossa democracia tem tropeçado em nossos cadarços desamarrados. Creio que neste ano de eleições o Brasil vai dar um passo decisivo se escolher encarar o fato de que precisa assumir suas responsabilidades para, enfim, crescer saudável.
O que mudou na infância no Brasil, e o que permanece constante?
Temos hoje uma perspectiva mais plural do que é a infância. Crianças já foram encaradas como adultos em miniatura, mercadoria, mão de obra barata ou mesmo como um fardo. Hoje são pessoas. As mais importantes, e mesmo sendo muitas vezes negligenciadas. E essa negligência que as expõem a toda sorte de abusos é uma herança cultural que teima em não nos deixar.
Se pudesse ser criança em qualquer outro momento da história do país, qual você escolheria?
Sem nenhuma nostalgia por outra época ou pela minha infância em particular, digo que o melhor tempo para ser criança é o presente. Apesar das complexidades do mundo, hoje se tem mais oportunidades para se viver uma infância feliz. Desde que os pais e governos façam sua parte, claro. Pois o Brasil não é um paraíso homogêneo. Aqui ainda imperam ranços que nos atrapalham demais.
Como A infância do Brasil se encaixa em sua trajetória profissional?
Foi meu primeiro projeto mais maduro como roteirista e desenhista. Demorou anos para ser executado, lidou com temas fora da minha zona de conforto e gerou um resultado que reverbera desde 2015. Tenho recebido retornos incríveis não só de leitores de quadrinhos tradicionais, mas também de educadores e estudantes. A HQ, além de prêmios e da indicação ao Jabuti, foi até tema de dissertações de mestrado, o que me deixa muito orgulhoso e feliz.
Como vai a Quadrinhofilia? Há um bom mercado no Brasil para uma editora como esta?
O mercado para a publicação de quadrinhos nacionais retraiu muito por causa da pandemia e das políticas culturais vigentes que dificultam para um editor independente realizar novos projetos. A Quadrinhofilia é meu selo pessoal, mas nanico. Por isso tenho procurado novos parceiros, como a Editora Nemo, e também estou desenvolvendo projetos de séries para apresentar a produtoras e canais de streaming. Todas baseadas em meus trabalhos como A Infância do Brasil, Malu e Coisas de Adornar Paredes.
Apesar das dificuldades, sigo em produção: vou lançar, no segundo semestre, Debaixo D´Água, HQ em parceira com minha esposa. Nela, a partir de nossas vivências, nos aprofundamos em questões sobre gestação e parto humanizado em nosso país recordista em cesárias desnecessárias.