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O fenômeno da “grande renúncia” exige que as empresas repensem o trabalho

Doutora em Administração de Empresas, a professora Tatiana Iwai diz que as práticas de gestão de equipes da pré-pandemia não serão suficientes para o trabalho híbrido

Por que milhões de americanos pediram demissão voluntariamente? Para a professora Tatiana Iwai, não dá para simplesmente dizer que a pandemia acabou e voltar às práticas de gestão anteriores à crise

 

Leandro Steiw

 

A expressão The Great Resignation será uma das lembranças agridoces de 2021: prazer para uns, amargura para outros. Foi o psicólogo e professor americano Anthony Klotz quem cunhou o termo para descrever a onda de demissões voluntárias desde o início da pandemia da covid-19 nos Estados Unidos. Em abril deste ano, o Bureau of Labor Statistics (Escritório de Estatísticas de Trabalho) contabilizava 4 milhões de americanos que haviam deixado seus empregos voluntariamente. A tendência prevista pelo doutor em comportamento organizacional da Universidade Texas A&M se confirmou. No acumulado até outubro, esse número havia subido para 20 milhões. Entender o funcionamento da “grande renúncia” (na tradução mais habitual no Brasil) tornou-se relevante para as empresas do mundo todo, uma vez que o fenômeno se consolida à medida que caem as restrições ao trabalho presencial.

Para Tatiana Iwai, doutora em Administração de Empresas e professora do Insper, os dados mostram que as demissões não estão limitadas aos setores da economia que sofreram maior esgotamento durante a pandemia, como os serviços de saúde. “É um fenômeno multissetorial, em um nível muito mais alto de desligamento voluntário, reportado pelas áreas de RH. O que diferencia este momento de outros passados, nos quais houve esses movimentos de turnovers mais altos, é que um percentual significativo dessas pessoas que saíram não tem qualquer posição em vista. Ou seja, elas não estão simplesmente mudando de trabalho”, diz Tatiana, coordenadora do Núcleo de Comportamento Organizacional e Gestão de Pessoas do Insper.

Tatiana atenta para uma informação dos relatórios sobre a “grande renúncia”: o número de trabalhadores que pretendem largar o emprego nos próximos meses. Pesquisadores da consultoria McKinsey entrevistaram assalariados na Austrália, no Canadá, em Cingapura, nos Estados Unidos e no Reino Unido: 40% deles admitiram a possibilidade de largar o emprego nos seis meses seguintes. Reforçando a magnitude da tendência, a consultoria EY estima que 54% dos funcionários estão propensos a se demitir caso não lhes seja oferecido um trabalho flexível.

 

O mito da produtividade

Como o processo da grande renúncia está em andamento, muitas explicações para o volume de demissões podem surgir no futuro. Tomada como certa, porém, é a influência da pandemia e da adoção do trabalho remoto — e a consequente alteração na rotina profissional. “Durante esses quase dois anos que passamos trabalhando em casa, alguns mitos e receios que existiam sobre o trabalho remoto não se realizaram. Por exemplo, não houve queda de produtividade”, diz Tatiana. No entanto, as jornadas ficaram mais extensas, porque não ficaram bem definidos os horários de trabalho, que acabaram se espalhando para os fins de semana e além do expediente habitual, e foram adotados canais de comunicação alternativos além do e-mail, como aplicativos de videoconferência e mensageiros instantâneos. “A força de trabalho chegou ao final desse período exausta”, afirma a professora. Esse cansaço depende de alguns fatores, como a infraestrutura que havia dentro de casa, as necessidades dos coabitantes, o tamanho da família e as tarefas compartilhadas no ambiente doméstico. “Foi um período difícil, que permitiu a muitas pessoas refletir sobre o que elas queriam e não queriam.”

A boa adaptação de alguns ao trabalho remoto pode ter incentivado a desistência à volta ao escritório. “Com o arranjo de trabalho híbrido, parcialmente remoto e parcialmente presencial, criaram-se certas expectativas na força de trabalho que muitas vezes não se traduzem em práticas concretas para o retorno. Não digo que é fácil desenhar um retorno bem-feito ou um arranjo de trabalho híbrido que dê conta de satisfazer as várias necessidades das pessoas. Primeiro, há gente que quer muito voltar ao escritório, trabalhar ali todos os dias, mas tem gente que não quer mais e tem gente que quer alguns dias sim, outros dias não”, diz Tatiana. “Mas existem inúmeros detalhes no desenho do modelo híbrido que vão causando muita frustração e, principalmente, há empresas que realmente querem que toda a força de trabalho dela retorne como era antes. Só que as pessoas que nós somos hoje, as pessoas que saem desse período de dois anos de trabalho remoto, não são as mesmas pessoas que entraram, não têm as mesmas preferências de dois anos atrás. Então, não dá simplesmente para falar ‘acabou a pandemia, podemos retornar ao escritório’ e voltar a usar as mesmas práticas. Não é essa a expectativa do colaborador. Quando ele não vê essa expectativa atendida, potencializa-se a chance de turnover voluntário. A propensão de ele sair aumenta.”

O desafio é recativar esses funcionários. A possibilidade imediata são salários mais altos, horários flexíveis no escritório ou expediente parcial e integral em casa. A pesquisa da McKinsey, entretanto, indica que o dinheiro ou a porção de horas não são a maior queixa dos que abandonam o emprego. Eles disseram que não se sentiam valorizados pela empresa e pelos seus chefes, logo, não tinham um sentimento de pertencimento no trabalho. Conforme um estudo da BetterUp, empresa de treinamento e coaching, nove em dez profissionais de carreira sacrificariam, em média, 23% dos seus salários por um trabalho mais significativo para suas vidas. No desenrolar da pandemia, dinheiro não é tudo.

 

Meu trabalho, minha vida

Sabe-se que as demissões em massa foram detectadas nos Estados Unidos e, na sequência, nos países que abriram rapidamente a sua economia depois das primeiras ondas da pandemia. O que fazer se e quando esse fenômeno chegar ao Brasil? Para Tatiana, antes de tentar estancar problemas dessa natureza, é importante entender os motivos pelos quais eles estão acontecendo. Não é só liberar ou não a presença no escritório. “De fato, a força de trabalho chega exausta, mas o retorno ao escritório pode melhorar algumas dessas coisas. Por exemplo, uma das grandes preocupações dos trabalhadores, mostradas em pesquisas mais recentes, é um balanço melhor entre vida pessoal e trabalho. Por isso, o remoto pode ajudar ou pode bagunçar ainda mais essa questão, porque o remoto nos dá flexibilidade num nível que nós não tínhamos. Nós realmente conseguimos encaixar mais facilmente as demandas da nossa vida pessoal na jornada de trabalho remoto. Por outro lado, se não houver uma organização mínima sobre como esse trabalho remoto vai acontecer, pode-se ter uma flexibilidade desorganizada com impacto negativo, gerando aquela sensação de ‘eu tenho que estar sempre disponível’. E isso esgota qualquer pessoa.”

Segundo Tatiana, uma questão que causou muita frustração durante o período do trabalho remoto, e que pode agora ser minimizado com o retorno do escritório ao modelo híbrido, é que as pessoas sentem falta das conexões sociais. “A qualidade das nossas interações realmente caiu. Porque parte da qualidade das nossas relações depende do face a face”, afirma Tatiana, que se dedica a pesquisas sobre relacionamentos produtivos e colaborativos entre líderes e colaboradores. “Então, por mais que a gente até tenha conseguido coordenar o trabalho remotamente, a gestão da qualidade dessas interações sociais nunca ficou bem resolvida no remoto. O retorno aos escritórios e essa facilidade de conexão podem, de novo, energizar parte da força de trabalho.”

A experiência recente demonstrou que o trabalho pode acontecer fora do escritório. Logo, uma pergunta básica é para que serve o escritório e como ele pode ser redesenhado para explorar todo o potencial do trabalho presencial e das relações interpessoais. “Para alguns tipos de encontros de trabalho, principalmente naqueles momentos de criatividade, de ideação, de troca de ideias e conhecimentos, as reuniões presenciais podem facilitar. As empresas precisam redesenhar fisicamente o escritório para facilitar esses encontros, para ser um lugar estruturado para receber as reuniões que rendem mais no presencial. E, ao mesmo tempo, mais do que só a parte física, conseguir repactuar e repensar como vai gerir os seus times. Decidir que tipo de trabalho vai ser feito no escritório e o que pode ser feito em casa. A coisa mais frustrante que pode acontecer para um funcionário é ele ir para o escritório e pensar por que está lá, se poderia fazer o serviço de casa. Porque você quer ver se eu estou trabalhando? Isso vem causando uma fricção muito grande na força de trabalho.”

 

Um novo pacto profissional

A dimensão do trabalho híbrido não está perfeitamente definida, mas é fundamental já começar a pensar a respeito. “As lideranças precisam repactuar como vão trabalhar com times híbridos, o que exige a criação de algumas normas sociais. Por exemplo, como gerenciar essas reuniões quando parte do time está em casa e parte não está? Como delimitar a jornada de trabalho das pessoas que estão em casa e em que momentos do dia elas precisam estar disponíveis? E se cada um aparecer em determinado dia ou horário no trabalho, como sincronizar o encontro da equipe? Esse é o tipo de ajuste fino que não é feito em cima de uma política organizacional, será feito em nível de time”, diz Tatiana.

Ou seja, aparando as arestas, dá para acreditar no modelo híbrido, na flexibilidade do remoto e na interação da copresença. “Quando esse ajuste fino não é feito, contribui-se para o menor comprometimento da força de trabalho e, portanto, aumenta a propensão de ela sair. Não é simplesmente decidir que voltará todo mundo ao que era há dois anos. Temos que realmente repensar o escritório e repensar como fazer a gestão desses times híbridos, que não é trivial, mas é outro fator que pode colaborar para enfrentar o fenômeno da grande renúncia.”

 

Quem não é visto não é lembrado

Segundo a professora, estudos anteriores à pandemia alertavam que, dentro do nível de time, os funcionários que trabalham remotamente têm, no médio prazo, menos chances de serem promovidos em relação aos que estão no escritório. A copresença tende a deixar o funcionário em vantagem no que diz respeito às oportunidades profissionais, porque está mais perto, é avaliado distintamente, parece trabalhar mais. A penalização da promoção é grave porque, entre os que preferem trabalhar em casa, estão os que moram mais longe do escritório (porque evitam grandes deslocamentos) e as mulheres com filhos (porque podem administrar melhor a jornada dupla). Tatiana analisa: “Se esses estratos optarem por trabalhar mais em casa e as empresas não prestarem atenção a esse viés de presença, e no seu resultado decorrente de penalização da promoção desses colaboradores, significa que num futuro próximo podemos ter uma geração de promoção com viés, excluindo esses estratos, ou seja, mulheres e pessoas de baixa renda, que eventualmente podem ser penalizadas porque preferem trabalhar em casa”. Por isso, a decisão de flexibilidade total no regime híbrido deve ser alinhavada no nível de time, e não organizacional, pois o ajuste preventivo à penalização de promoção é mais fácil em grupos menores.

A clareza de critérios ajuda a minimizar as insatisfações e o sentimento de injustiça. Em princípio, os critérios deveriam considerar as necessidades pessoais, as demandas do cargo e os recursos que são necessários para o trabalho que a pessoa vai desempenhar. Afinal, algumas atividades só podem ser realizadas presencialmente. “Existem benefícios inegáveis da copresença, mas acho que vale uma provocação de perguntar o quanto isso é uma necessidade de controle e quanto é uma necessidade da posição, ou do trabalho que está sendo realizado. É uma reflexão essencial que a gestão precisa fazer. Porque é um fenômeno geral. Os funcionários querem xis dias e esses xis dias são um valor menor do que a empresa espera que os funcionários estejam no escritório. Acho que esse é o elefante na sala hoje em dia”, afirma Tatiana.

 

Benefício para quem?

A desistência dos trabalhadores também se deve à incapacidade dessas empresas de ouvir a sua força de trabalho e conseguir se comunicar e convencer sobre os benefícios do escritório. “Quando se advoga pela volta do escritório, se advoga em termos de isso é bom para a empresa, isso é bom para a nossa cultura. Quase como se o ganho para a empresa fosse o ganho coletivo. Os benefícios do remoto são individuais, porque sou eu que tenho individualmente mais flexibilidade, que consigo me livrar daquelas horas perdidas em deslocamento. Então, eu tenho os benefícios individuais do remoto e você quer me convencer a voltar ao escritório sinalizando benefícios coletivos, que eventualmente são menos atrativos. É óbvio que existem esses benefícios coletivos, mas tem um tanto de benefícios individuais que as empresas estão falhando em comunicar”, diz Tatiana.

A professora explica como as empresas falham na comunicação. “Por exemplo, a gente sabe que alguns tipos de aprendizados precisam da copresença, porque parte do nosso aprendizado é por observação. E o remoto não me permite isso. É um ambiente opaco onde eu não consigo ver. Olha que coisa interessante: um dos estratos da força de trabalho que mais sofreu no período remoto foram os novos funcionários, as pessoas que estavam fazendo onboarding, porque elas precisam se adaptar, precisam entender como as coisas funcionam na empresa e pedem ajuda com mais facilidade para quem está fisicamente ao lado. Uma parte importante do aprendizado tácito vem por observação, que o escritório facilita. E esse é um beneficio individual.

Outro apelo individual são as redes de relacionamento. “Durante o período de epidemia, é impressionante como essas redes encolheram. Sabemos que, naqueles países nos quais o retorno da força de trabalho foi mais rápido, as redes de relacionamento voltaram a se expandir. Porque as redes dependem da copresença, de a gente encontrar as pessoas. No remoto, você fala mais com as pessoas com as quais trabalha, naturalmente, e com aquelas das quais já era próximo. Mas com aquelas pessoas que você tinha laços mais distantes, você quase não falou com elas durante a pandemia. Esse é o processo de retração e expansão das redes quando a gente fala de remoto e presencial. E as nossas redes sociais, proporcionadas pelo escritório, nos trazem benefícios individuais”, observa a professora.

Tatiana enfatiza que o retorno é um processo de experimentação e adaptação. “Das regras que você estabeleceu hoje, várias não vão permanecer simplesmente porque as empresas verão que algumas funcionam e outras não. Quais? Saberemos ao longo do caminho. A melhor forma de voltar, de começar a desenhar o híbrido, é com esse espírito de experimentação e adaptação constante, lembrando que alterações de voo não serão exceções. No fundo, elas farão parte dessa jornada de se adequar ao novo modo de trabalho, que é o híbrido”, diz. “Uma parcela desse problema pode ser resolvida com uma comunicação mais efetiva dos motivos para a volta. Se os motivos não parecerem tão atrativos assim, deve-se repensar como a força de trabalho está sendo convencida a fazer esse retorno. Se você não tentar convencer, terá que fazer à força, e vai gerar atrito, frustração e insatisfação. E esse é o pior cenário.”

 

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