A professora Ana Diniz fala sobre desigualdade de gênero e as oportunidades de ampliar a representatividade feminina em diferentes áreas
O Brasil ficou em 57ª posição entre 146 países analisados no mais recente Global Gender Gap Index. O levantamento anual, realizado pelo Fórum Econômico Mundial, analisa a evolução da paridade de gênero em quatro pilares: educação, saúde, economia e política. Embora tenha avançado em relação ao ano anterior, quando ficou em 94º lugar, o Brasil se encontra atrás de países como Peru, Bolívia e Colômbia, para citar alguns vizinhos da América do Sul.
Para a professora Ana Diniz, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Diversidade e Inclusão no Trabalho do Insper, os principais desafios estão em áreas como a economia e a política. “Quando falamos de participação feminina, nos referimos à sua presença em espaços públicos de maneira geral e, em especial, em postos de poder e decisão. E elas são sub-representadas nessas posições, tanto em organizações públicas quanto privadas”, afirma.
Na entrevista a seguir, a docente e pesquisadora do Insper analisa os fatores que contribuem para a desigualdade de gênero e sua interconexão com raça, classe, entre outros eixos de desigualdade. Diniz destaca a importância da estruturação da Política Nacional de Cuidados – que visa conectar Estado, mercado e sociedade civil na temática do cuidado – e comenta o papel do setor privado para promover a equidade no trabalho.
Como avalia a representatividade das mulheres em posições de poder e decisão no Brasil? Em que situação se encontra o país?
Eu diria que estamos mal. Nos últimos anos, observamos um desmonte das estruturas institucionais voltadas para políticas para as mulheres, o que resultou na piora de alguns indicadores relacionados à igualdade de gênero. As mulheres têm menor participação no mercado de trabalho e enfrentam maiores índices de desemprego, sobretudo as que têm filhos.
Um estudo relevante é o Global Gender Gap Index, do Fórum Econômico Mundial. Esse índice compara países em termos de igualdade de gênero, avaliando educação, saúde, economia e política. De acordo com os dados do relatório de 2023, o Brasil se encontra em boa posição em oportunidades educacionais e acesso à saúde, mas apresenta um desempenho muito ruim em participação e oportunidades econômicas e em empoderamento político.
Mas, quando falamos de participação feminina, nos referimos à sua presença em espaços públicos de maneira geral – em especial, em postos de poder e decisão. Elas são sub-representadas nessas posições, tanto em organizações públicas quanto privadas. Essa temática é central nos estudos de gênero e na pesquisa Panorama Mulheres, que o Núcleo de Estudos sobre Diversidade e Inclusão no Trabalho do Insper vem realizando a cada dois anos em parceria com o Talenses Group [que atua na área de recrutamento e capital humano].
Por que o Brasil vai bem em algumas áreas e mal em outras no Global Gender Gap Index?
A posição geral do Brasil é influenciada positivamente pelo acesso à educação e à saúde e é prejudicada pelas áreas econômica e política. No levantamento de 2023, o Brasil ficou na 57ª posição no ranking geral, entre 146 países. Na área da educação, ficou na 73ª posição, enquanto em participação econômica e oportunidades econômicas ficou em 86º lugar. No que diz respeito ao empoderamento político, ocupou a 56ª posição. Já na área de saúde, o país ficou entre os primeiros lugares, por causa da pouca disparidade no acesso à saúde entre homens e mulheres.
O fato de o Brasil apresentar desempenho relativamente melhor em saúde e educação sugere a existência de políticas mais eficazes nessas áreas em comparação com economia e política?
Sim, acredito que esses são resultados decorrentes de políticas específicas. De maneira geral, as mulheres têm mais anos de escolaridade formal do que os homens, permanecendo na escola por um período mais longo. Por outro lado, enfrentamos um fenômeno significativo de evasão masculina, sobretudo no ensino médio. Esse fenômeno está ligado a dinâmicas de gênero e classe, refletindo a saída precoce dos homens da educação em busca de inserção no mercado de trabalho. Isso está associado à construção da imagem do homem como provedor, responsável por trazer recursos para casa, entre outros papéis. Na área da saúde, as mulheres têm uma expectativa de vida mais longa do que os homens, o que contribui para a posição de destaque ocupada pelo Brasil nesse aspecto.
Por que o Brasil não alcança uma posição mais favorável também nas frentes econômica e política?
Na análise da participação econômica, a primeira métrica considerada é a taxa de participação na força de trabalho. Nos últimos anos, observamos certa estabilidade na taxa de atividade das mulheres, ainda que tenha sempre estado abaixo da dos homens. Após avanços no início dos anos 2000, a crise de 2014 a 2016 causou uma piora, seguida por uma retomada, mas a pandemia intensificou significativamente essa situação, levando a uma taxa de inatividade feminina um pouco acima de 50%. Esse é um indicador crucial em que o Brasil figura de maneira desfavorável. Além disso, estima-se que as mulheres ganhem em média 23% menos que os homens na mesma função, diferença que sobe para 38% quando se consideram posições gerenciais e de diretoria.
Na frente política, a questão está relacionada à baixa representatividade em cargos eletivos, como no Parlamento. O Brasil enfrenta sérias desigualdades nesse aspecto, conforme indicado por rankings como o da IPU Parline, uma organização do terceiro setor. O Brasil ocupa a 131ª posição mundial em representatividade feminina nos Parlamentos, com uma participação inferior a 18% na Câmara, cerca de 15% no Senado e apenas 12% nas Prefeituras. Essa falta de representatividade também se estende a posições ministeriais e de liderança, contribuindo significativamente para a posição desfavorável do Brasil em termos globais.
Alguns países adotam cotas para cargos políticos, reservando determinado percentual para as mulheres. Esse seria um bom caminho?
Eu considero que existem diversos meios de ampliar essa participação. Atualmente, no Brasil, já adotamos um sistema de cotas, embora não seja especificamente para mulheres eleitas, mas para a participação no processo eleitoral. Temos algumas diretrizes que orientam a canalização de recursos dentro dos partidos para candidaturas femininas. No entanto, acredito que precisamos de mais.
O Insper, aliás, está preparando um curso de curta duração sobre Mulheres nas Eleições Municipais justamente para lidar com esse cenário de baixa participação feminina na política. O curso pretende mostrar como mobilizar ferramentas, instrumentos, dados e conhecimentos para aumentar as chances de sucesso das mulheres em campanhas políticas.
No entanto, é preciso reconhecer que também são necessárias mudanças dentro dos partidos. Há um trabalho cultural a ser realizado. Historicamente, a população, de maneira geral, foi ensinada que esses espaços de poder são reservados aos homens, o que demanda uma desconstrução desse pensamento. Além de criação de novas práticas e políticas internas, que promovam a participação efetiva das mulheres nesses espaços.
Na área de economia, trabalho e emprego, que medidas seriam mais eficazes para aumentar a participação feminina, especialmente em cargos de liderança?
Quando discutimos o Brasil, é essencial considerar os efeitos da interseccionalidade, ou seja, como a questão de gênero está interligada a outras questões, especialmente as econômicas, raciais, étnicas, etárias, geracionais e regionais. Essa interseccionalidade cria diferentes cenários para grupos distintos de mulheres. Mulheres negras e empobrecidas frequentemente enfrentam maiores barreiras para entrada no mercado de trabalho formal e, quando essa entrada ocorre, muitas vezes estão em postos de menor remuneração. O chamado “teto de vidro”, assim como a sub-representação em áreas específicas, como as tecnológicas, é enfrentado mais frequentemente por mulheres brancas, que tiveram acesso favorecido à educação formal. Mulheres com filhos, por sua vez, têm perda salarial expressiva e enfrentam maiores obstáculos para se manter no mercado de trabalho. E outras particularidades são identificadas quando considerados diferentes marcadores.
É preciso reexaminar as práticas de gestão dentro das organizações para compreender em que medida reproduzem desigualdades. Em nível mais estrutural, reconhecemos um elemento fundamental relacionado à atribuição do feminino a posições ligadas ao trabalho reprodutivo, seja no cuidado de pessoas, seja nas responsabilidades domésticas. Isso contribui para a menor participação de mulheres nesses cargos.
Existem experiências em outros países nessa área que poderiam sugerir possíveis caminhos para o Brasil?
O Brasil vive atualmente um momento crucial, com a estruturação da Política Nacional de Cuidados. A questão da divisão sexual do trabalho tem sido abordada principalmente por meio da discussão sobre o uso do tempo. Ao considerar as 24 horas do dia, sabemos que homens e mulheres utilizam o tempo de maneira diferente, deixando as mulheres sobrecarregadas com o trabalho doméstico e de cuidado. A pandemia trouxe à tona novamente essa questão, especialmente durante o isolamento social, quando as mulheres passaram a trabalhar em casa e continuaram a cuidar de suas famílias, ao mesmo tempo que perderam o acesso a serviços essenciais, como escolas e creches.
Essa situação reacendeu a discussão sobre a necessidade de estruturar uma Política Nacional de Cuidados. O simples fato de estarmos empenhados na elaboração dessa política representa uma conquista significativa. Essa tem sido uma demanda histórica dos movimentos feministas desde os anos 1950. No entanto, uma diferença importante é que, até então, o cuidado era abordado como parte de outras áreas de políticas públicas, como saúde, educação e assistência social. Agora, pela primeira vez, temos o cuidado em si como um foco específico da política pública, e isso marca uma mudança substancial.
E qual seria o papel do setor privado nessa questão? Mesmo que a Política Nacional de Cuidados demore a ser implementada, o que está ao alcance das empresas?
As empresas possuem uma gama de possibilidades de atuação nessa área. Uma política evidente é a implementação de licenças, como a licença-maternidade, a licença-paternidade e a parental. Surge, então, a discussão sobre a necessidade de compartilhamento de responsabilidades, destacando a importância da corresponsabilização parental, em que homens e mulheres compartilham igualmente o cuidado, especialmente quando se trata de crianças. Contudo, existe uma disparidade significativa entre a licença-maternidade, que geralmente é de quatro meses, podendo ser estendida para seis meses, e a licença paternidade, que, em muitos casos, é de apenas cinco dias, podendo se estender para 20 dias. Nesse cenário, iniciativas como o Programa Empresa Cidadã, que oferece incentivos fiscais para que as companhias ampliem as licenças, representam uma intervenção positiva das empresas.
Oferecer condições que facilitem o compartilhamento dos cuidados, como o trabalho remoto e jornadas flexíveis, é outra maneira de promover a equidade no trabalho. Além disso, incentivos, como o apoio à creche, desempenham um papel fundamental. Em síntese, há um longo caminho a percorrer para que, no âmbito das condições e relações de trabalho, as empresas facilitem que mulheres e homens exerçam o papel de cuidado em condições igualitárias.