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A liberdade de expressão deve ser restringida?

A falibilidade, a prevenção ao dogmatismo e a incompletude de ideias mostram que censurar a expressão dos indivíduos é um ato possivelmente nocivo ao desenvolvimento social

A falibilidade, a prevenção ao dogmatismo e a incompletude de ideias mostram que censurar a expressão dos indivíduos é um ato possivelmente nocivo ao desenvolvimento social

 

Tiago Liberman                                                                                

 

“M**da, b**ta, car***o”. Ao ler as primeiras palavras deste texto, alguns leitores automaticamente o julgam. Não dão uma oportunidade ao escritor para se expressar, explicar o uso desses termos. Em segundos, muitos repudiam o texto, suspeitando do autor. Um acontecimento similar é apresentado no filme “O povo contra Larry Flynt”, no qual o protagonista sofre diversas críticas de setores da sociedade ao publicar sua revista pornográfica “Hustler”. Situações como essas nos fazem questionar: a liberdade de expressão deve ter limite? Isso é o que John Stuart Mill debate no segundo capítulo de seu livro, “On Liberty.”

Já no início do capítulo, o autor discute se pessoas ou grupos de pessoas devem ter o poder de limitar, ou até mesmo silenciar a opinião de outros. Ele logo diz que isso não pode acontecer. Mesmo se todo o mundo compartilhasse uma opinião e somente uma pessoa a contrariasse, o enorme grupo não poderia censurá-la. Mill parte da falibilidade humana para defender seu ponto.

É sabido que nenhum ser humano é perfeito, logo, todos são sujeitos ao erro. Assim, para Mill, as pessoas nunca podem ter certeza de que suas opiniões ou seus argumentos são verdadeiros. Então, apesar de muitos respeitarem um código tácito que diz que não se deve usar palavras pejorativas em textos acadêmicos ou vender pornografia explicita em bancas que podem ser acessadas por crianças, não há quem possa dizer irrevogavelmente que esse código está correto. Dessa forma, quem o desafia tem a mesma autoridade de quem o aceita. Mill exemplifica sua defesa por meio de Sócrates que, assim como Flynt, desafiou a opinião aceita pela maioria. Em sua época, ele foi condenado à morte por “negar os deuses reconhecidos pelo Estado” e por “corromper a juventude através de suas doutrinas e ensinamentos”. Incrivelmente, mesmo se opondo a todos e sendo morto por isso, o filósofo se tornou famoso, pois o que disse se mostrou verdadeiro posteriormente. Esse ponto trazido por Mill já poderia dar razão para o protagonista do filme, e os próximos argumentos dele fortalecem ainda mais sua defesa.

O escritor continua, declarando que se uma opinião parar de ser discutida e questionada, ela se torna um dogma morto. Ele traz à luz que, embora ainda existam pessoas que aceitam doutrinas sem questioná-las, a quantidade foi maior no passado. Nesse âmbito, é essencial relembrar, por exemplo, os acontecimentos da segunda guerra mundial. Com o poder da Alemanha em suas mãos, Hitler teve facilidade para disseminar suas ideias de que a raça ariana era superior a outras minorias, como judeus e negros, que deveriam ser perseguidos. Assim como o líder nazista transmitiu seus pensamentos, seria necessário que outras pessoas fizessem o mesmo para prevenir que o nazismo se tornasse um dogma. Nesse caso, a liberdade de expressão poderia ter impedido uma das maiores catástrofes da história. Infelizmente, prevaleceu a censura, mas, assim como os escritos de Mill, entender o contexto do surgimento do nazismo e a falta de um contraponto ideológico serve para mostrar que diferentes opiniões devem ser expostas e debatidas.

Finalmente, o autor de “On Liberty” parte para o seu último argumento: a incompletude de ideias. Para ele, no debate entre duas opiniões, é mais comum que ambas estejam mais longe da verdade do que uma terceira. Assim, a sociedade se aprimora ao encontrar um ponto de vista mais próximo ao correto. Porém, isso não acontece frequentemente, já que, de acordo com Mill, seres humanos estão acostumados a ver tudo somente por um prisma. “Por isso, mesmo em revoluções de opinião, uma parte da verdade submerge, ao mesmo tempo em que outra sobe à superfície”. Mesmo assim, a sociedade é favorecida, pois o fragmento da verdade que sobe à superfície é mais necessário naquele momento. Essa situação ocorre no filme “O povo contra Larry Flynt”, no qual, durante o julgamento do protagonista, a Suprema Corte considera a liberdade de expressão, protegida pela Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, preponderante em relação aos danos causados pela publicação da revista “Hustler”.

Portanto, os argumentos trazidos por Mill poderiam ser usados para defender Larry Flynt. A falibilidade, a prevenção ao dogmatismo e a incompletude de ideias mostram que censurar a expressão dos indivíduos é um ato possivelmente nocivo ao desenvolvimento social.

 


Referências bibliográficas

O povo contra Larry Flynt. Direção: Miloš Forman. Produção: Oliver Stone, Janet Yang, Michael Hausman. Estados Unidos: 1996. (129 minutos)

Mill, J. S. Sobre a liberdade. Editora Saraiva. Rio de Janeiro: 2011.


Este texto foi escolhido pelo Prêmio Pensamento Crítico 2023

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