Michael França, coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, explica como as horas dedicadas ao estudo ajudaram a superar as limitações impostas pela desigualdade social e racial
Leandro Steiw
O ciclista e economista Michael França acredita que as escolhas e as oportunidades que os pais tiveram podem amplificar ou limitar os desenvolvimentos dos filhos. Em um país desigual e sem muitas oportunidades, como o Brasil, poucos são aqueles que conseguem escapar de trajetórias quase determinísticas, argumenta ele. Muito do que se convencionou chamar de mérito é apenas um reflexo das vantagens propiciadas pelo local de nascimento.
Até se tornar doutor em Teoria Econômica e coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, França teve que superar diversas barreiras. O desempenho escolar e a relação com os professores não eram um problema, mas ele não via muito sentido em estar na aula. “As escolas eram muito ruins onde eu morava, na periferia de Uberaba, em Minas Gerais”, afirma. “Os professores não conseguiam dar aulas direito, e os estudantes não tinham interesse. Naquela época, a minha ideia era somente terminar o ensino fundamental e nem fazer o ensino médio.”
Espedito, pai de Michael, é retirante nordestino. Nasceu em uma casa de pau a pique no sertão baiano e foi para São Paulo trabalhar como servente, fugindo da seca e da fome. Zila, a mãe, é empregada doméstica. A família de baixa renda vivia em um bairro cercado por favelas, onde a grande distração era brincar na rua. Faculdade não era uma opção. “Para ser bem sincero, nem sabia que existia ensino superior”, diz. “Uma vez, eu já estava no primeiro colegial e meu irmão me falou sobre essa possibilidade, mas não tinha ideia do que eram as universidades, porque os professores da escola não tratavam disso.”
A explicação mais simples é que, naquele ambiente de pobreza, os professores não imaginavam que algum dos alunos conseguiria ascender. Outra limitação que pode aniquilar com as escolhas e as oportunidades. França escolheu o curso de Economia porque gostava de história e geografia e assistia na TV a um pessoal engravatado conversando sobre economia, explicada com palavras bonitas. “Confesso que não tinha muita ideia do que se estudava na Economia”, conta. “Não tínhamos modelos sociais. Na periferia, os modelos são pedreiro, empregada doméstica. Normalmente, os serviços de baixa qualificação. Não conhecia ninguém com ensino superior.”
Brigas na escola eram comuns, por mais que ele buscasse se manter longe de confusões. “Minha escola era superperigosa, parecia mais uma prisão do que uma escola”, diz. “Várias vezes, cheguei em casa todo machucado por causa de brigas. A camisa toda cheia de sangue. Uma coisa terrível. Como na favela se é muito maltratado, as crianças e adolescentes tinham muito rancor relacionado à vida, e uma das formas de aliviar essa violência era gerando mais violência, infelizmente. Eu não queria brigar e era mais reservado, então virava e mexia sobrava provocação e confusão para mim.”
O cenário era esse quando o irmão mais velho, Diego, comentou o interesse no ensino superior. “Até então, basicamente, eu não estudava”, recorda. “Ia para a escola e ouvia o professor falar. Fazia as provas, que eram muito fáceis, não avaliavam quase nada. E aí eu resolvi sentar e estudar mesmo.” Motivos não faltavam para compartilhar o sonho da universidade com Diego. “O meu irmão é bem inteligente, tirava nota 10 em tudo, mas eu, de vez em quando, tirava 9,8, 9,7”, diz.
“Sentar e estudar” está apenas meio correto. França conta que, decidido a aprender, caminhava uma hora até uma biblioteca pública central de Uberaba e gastava outra hora para voltar para casa. Nessa rotina em busca de espaço e silêncio para os livros, acordava às 7h da manhã, começava a estudar às 8h e voltava às 23h para casa. Não raramente ficava sem dinheiro para o lanche. Anos depois, um colega pesquisador ouviu a história e disse que tinha uma biblioteca a cinco minutos da casa dele. “Só isso já mostra as desigualdades”, afirma. “São vários pequenos detalhes que fazem a diferença entre a pessoa ter um conjunto de vantagens e outras pessoas terem um conjunto de desvantagens.”
O primeiro choque sobre a desigualdade brasileira foi bem antes, no 2º ano do ensino médio, depois que tanta disciplina rendeu uma bolsa de estudos numa escola particular em Uberaba. “Como os professores conseguiam dar aula e todo mundo se respeitava, parecia que estava entrando em outro universo”, diz. França diverte-se ao lembrar como se indignou ao ficar em segundo lugar no simulado para o vestibular organizado pela nova escola: “Depois daquele simulado, fiquei todos os outros em primeiro”.
O ritmo não diminuiu na vida acadêmica. Terminou Economia na Universidade Estadual Paulista (Unesp) como melhor aluno da turma e fez o mestrado e o doutorado na Universidade de São Paulo (USP) — com período de pesquisa na Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos. Nem sempre a relação tempo e dinheiro, como insiste certo provérbio, é diretamente proporcional. Com o orçamento apertado durante o mestrado e o doutorado, França morava na favela São Remo, a cinco minutos a pé do campus da USP, e tomava café da manhã, almoçava e jantava no bandejão da universidade. Dava uns 4,50 reais por dia, sustentado pelas bolsas de pesquisa e pelas monitorias de disciplinas na graduação e na pós-graduação.
Em 2020, França defendeu a tese Fecundidade, Identificação Racial e Desigualdade. Preferiu permanecer no Brasil, embora tivesse convite para trabalhar no exterior. Entre outros motivos, queria retomar o fôlego. “Quando terminei o doutorado, estava exausto, pois havia anos que estudava a semana toda, sábado e domingo inclusive”, afirma. “Na USP, assustava meus amigos pela quantidade de horas que ficava por lá, tão focado e concentrado que eu era. Frequentemente, o pessoal começava a fazer uma lista de exercícios, e eu já tinha terminado.”
Convidado pelo professor Sergio Firpo, França entrou no Insper e coordenou a criação do Núcleo de Estudos Raciais. Simultaneamente, assumiu a coluna na Folha de S. Paulo. Assim, entrou de vez no debate público sobre questões de renda, raça e gênero. “Recebo muitas mensagens de jovens desfavorecidos e jovens negros”, diz. “Você acaba virando certo modelo social, e é um trabalho a mais que tenho que meus colegas muitas vezes não têm. Fora que também tenho que pagar, pelo resto da minha vida, o custo da discriminação social e racial, do preconceito. A quantidade de barreiras que se tem que transpor para chegar aqui é impressionante.”
O ponto é que muitos não fazem ideia das dificuldades que as pessoas desfavorecidas enfrentam para ascender socialmente. “Para a elite brasileira, tudo é muito automático e natural”, afirma. “Em meio a isso tudo, acho que um dos meus papéis é trazer essas vivências e barreiras distintas e tentar o máximo possível no meu trabalho ajudar na equalização das oportunidades. Porque, quando olho para o meu meio, para onde nasci, várias pessoas ficaram para trás e não conseguiram atingir seu potencial. E eram pessoas com muito potencial. Tem gente que está presa, tem gente que está morta. Morta pela violência. Eu quase perdi minha vida por causa violência também.”
As palavras carregam a inconformidade com a desigualdade, escancarada em uma sociedade na qual os resultados da vida dependem de origem, classe social, cor da pele e gênero, entre outros. O recém-lançado livro Números da Discriminação Racial, com textos de diversos pesquisadores, é um resumo deste Brasil. Um retrato com dados e evidências. Hoje, os convites profissionais fluem. França diz que tem recusado ofertas tentadoras de empregos dentro e fora do país.
Na época do mestrado, trabalhou com precificação de ativos e recebeu propostas muito boas no mercado financeiro — ganharia em um mês o que o pai não ganhava em dois anos de salário. O desafio, no entanto, não é monetário. “Tento sempre pensar onde posso causar mais impacto com o meu trabalho e conseguir mais liberdade para correr atrás das coisas em que acredito”, diz. “Estou muito, muito interessado em tentar quebrar essa estrutura com o qual não concordo. Estrutura que premia demais as pessoas que nasceram em berço de ouro e se esquece daquelas que nasceram na periferia.”
Sabe aqueles economistas engravatados que falavam bonito na TV e que inspiraram a escolha do curso universitário? “Acabei indo para a Economia, me tornei um economista que aparece direto nos jornais e na TV, mas não gosto de usar terno e gravata”, afirma. Para a coluna da Folha, França escolheu uma foto com o cabelo black armado. Ele observa: “Se sou um economista que está tentando quebrar padrões, vamos quebrar com estilo. A diversidade na profissão de Economia ainda é pequena e represento a história de um negro que veio da margem do sistema e está contribuindo para sacudir as estruturas”.
Conheça um pouco mais sobre as atividades de Michael França fora da pesquisa
O primeiro parágrafo do texto identifica Michael França como ciclista e economista, tal qual aparece na descrição da coluna da Folha de S. Paulo. A apresentação não foi aleatória. Ele mesmo explica a ideia de destacar o ciclista, além de narrar outras preferências de atividades que ocupam o tempo entre os pedais.
“Por que eu coloco ciclista antes de economista na short bio da coluna da Folha? Somos muito mais do que trabalho. As pessoas têm várias outras identidades, que são importantes. Então, principalmente as pessoas mais favorecidas e ricas estão se colapsando, tendo burnout, porque estão resumindo a vida ao trabalho. Enfatizar o ciclista é uma forma de tentar romper com esse imaginário. É algo que eu realmente gosto de fazer.
A bicicleta é sempre uma imagem democrática em cidades que não são democráticas, que empurram a população mais desfavorecida para longe, para lugares sem equipamentos públicos, sem bibliotecas por exemplo. A bicicleta é uma forma de democratizar o acesso. Quando eu morava na periferia, para estudar na escola privada, tinha que ir pedalando. Para ir até a igreja — fui de igreja evangélica por muito tempo —, eu ia pedalando. Até hoje a bicicleta é meu meio de transporte favorito. Com ela, estou investindo na minha saúde, contribuindo para o meio ambiente e fugindo do trânsito caótico de São Paulo. Nos lugares onde todo mundo está extremamente estressado, estou superbem, com muita energia, superativo, esbanjando felicidade. Algumas pessoas têm muito dinheiro, mas vivem uma vida miserável.”
“Todo mundo acha sensacional eu colocar sugestões musicais nas colunas da Folha. Sendo bem sincero, a justificativa é simples. O meu período de estudos na universidade foi muito solitário, de ficar estudando muitas horas. Mas tem também o fato de sair da periferia, onde a cultura e a forma de lidar com as relações é muito diferente, e entrar em curso extremamente elitizado, como Economia na USP. Apesar de ter feito amigos fantásticos, tanto mais pobres quanto mais ricos do que eu, tem aquela coisa de transitar em vários mundos. Às vezes, você não se sente incluído nem em um, nem em outro. Mesmo com muitos colegas, nem sempre rolava aquela conexão profunda. Eu não era mais aquele cara da pobreza, mas também não era o cara da riqueza. E as músicas foram as minhas grandes companheiras. Acredito que é uma forma de retribuir aos músicos por tudo aquilo que eles falam. Sempre fui muito fã do Gilberto Gil. Ele é outro patamar. Gosto demais. Nos últimos três anos, também tenho escutado muito o Roberto Mendes e o Mateus Aleluia.”
“Faço aulas de forró há algum tempo. Sempre gostei muito de música. Mas, no caso do forró, acho que as letras são muito bonitinhas e expressam os valores da cultura do Nordeste. E tem a dança. Aprender a dançar tem uma questão pessoal também, que eu era muito tímido — agora bem menos. Então, era meio travado para chegar nas moças, e o forró me ajuda nisso. E acho que é uma forma de se expressar com o corpo, de socializar com pessoas de outras bolhas. Ao mesmo tempo, você faz interação social, escuta uma música legal e pratica atividade física. É um pacote legal.”
“Quando estava saindo do doutorado e resolvi ficar no Brasil, a minha ideia era ficar aqui, virar professor universitário e ter uma vida tranquila. Talvez em algum lugar que tivesse praia, para começar a minha carreira de surfista. Em algum lugar tranquilo também para ter um sítio, criar galinhas e porcos. Era um pouco dessa visão. Daí veio a pandemia da covid-19 e comecei uma trajetória totalmente diferente. Agora, estou tendo aula de surfe de vez em quando. Ainda estou na fase de levar mais caldos do que surfar. Mas estou investindo no surfe. Brinco que, se a economia não der mais certo no futuro, vou virar professor de forró ou de surfe.”