Realizar busca

Saúde mental da população negra: desafios e caminhos para a equidade

Evento no Insper debateu os impactos do racismo e da desigualdade na autoestima e no bem-estar de pessoas negras

Evento no Insper debateu os impactos do racismo e da desigualdade na autoestima e no bem-estar de pessoas negras

Patricia Gonçalves, Frederico Félix, Mafoane Odara e Bruna Arruda
Patricia Gonçalves, Frederico Felix, Mafoane Odara e Bruna Arruda

 

Bárbara Nór

 

Se a saúde mental é um tema importante para toda a sociedade, as formas de sofrimento e as possibilidades de acesso a tratamento não são iguais para todos. Para as pessoas negras, por exemplo, conviver com o racismo, a desigualdade e as marcas de séculos de exclusão e violência tem repercussões sobre fatores como autoestima e bem-estar e afeta a saúde mental como um todo.

Esse foi o mote do evento “Saúde Mental da População Negra”, que aconteceu no Insper em 6 de novembro e contou com a presença de Frederico Felix, médico psiquiatra e segundo-tenente médico de Infantaria;  Mafoane Odara, mestre em Psicologia pela Universidade de São Paulo, consultora, professora e executiva da área de Recursos Humanos; e Patricia Gonçalves, terapeuta, escritora e neuropsicopedagoga. A conversa teve a mediação de Bruna Arruda, professora da Engenharia e Educação Executiva e embaixadora de diversidade no Insper.

O encontro é parte de uma série de iniciativas que o Insper vem promovendo para fomentar a diversidade e a inclusão tanto internamente quanto na sociedade em geral. “Chega-se a um ponto em que, se você realmente quer mudar, precisa ser mais incisivo nas mudanças”, afirmou Guilherme Martins, presidente do Insper, na abertura do evento. “Então, trazer esse tema e fazer com que todos — alunos, funcionários e professores — possam debater é parte desse esforço.”

Exemplos dessas iniciativas no Insper são a Comissão de Diversidade, que tem papel consultivo, e uma área de diversidade para fazer o acompanhamento de diversos projetos voltados ao tema, com levantamento de métricas e com metas incluídas na estratégia do Insper, além de letramento de diversidade para os funcionários e uma newsletter exclusiva sobre o tema. “Sabemos que diversidade não se constrói sozinha. Por isso, estamos à disposição para crescermos juntos”, disse Bruna Arruda, na abertura do bate-papo. “Hoje é um evento relacionado ao mês da consciência negra, mas não é só nessas datas que temos que fazer evento. Temos que trazer à tona esse tema ao longo de todo o ano.”

 

Os grandes desafios

Ao longo da discussão, os convidados e a plateia expuseram alguns dos principais desafios em saúde mental da população negra no Brasil. Para Frederico Félix, um dos principais entraves é justamente o acesso a diagnóstico e tratamento. Em parte, afirmou, isso se deve à psicofobia — o preconceito em relação ao adoecimento mental e a resistência em buscar atendimento por medo de ser tachado de “louco” ou de viciado em medicamentos. “Essa psicofobia existe na sociedade de modo geral, mas também de modo particular na população negra”, disse. Por trás disso estaria, segundo ele, a ideia de que o homem negro, assim como a mulher negra, tem de ser forte e “aguentar” — um dos estereótipos que mais prejudicam a busca por tratamento em saúde mental.

Além disso, a desigualdade social faz com que as possibilidades de tratamento sejam muito díspares. Félix, que atende em seu consultório privado e no SUS, contou perceber uma diferença grande entre o público dos dois serviços. “No meu consultório tenho uma paleta de cores mais clara, e no SUS tenho uma paleta mais escura”, disse. “O acesso à saúde mental é diferenciado também, são desafios bastante pungentes.”

Mesmo quando existe o acesso aos serviços, o racismo opera de forma a que determinados dispositivos não funcionem tão bem para a população negra, afirmou Mafoane Odara. “Não é que intencionalmente sejamos ou tenhamos ações racistas, mas a sociedade foi construída de modo a não funcionar para essa população”, afirmou. “Independentemente de a gente querer ou não, isso acontece.”

Para ilustrar como esse racismo acontece no dia a dia, ela relatou uma história de seu irmão, um homem negro que foi levar a filha, também negra, mas de pele mais clara, para visitar o avô. Na volta, a filha não queria voltar e começou a chorar na rua. Foi então que uma senhora parou e perguntou para a criança se ela precisava de ajuda — ela suspeitou que ele pudesse ter raptado a criança. “Isso é a estrutura do racismo”, disse Mafoane.

Assim, para ela, não adianta as pessoas apenas quererem fazer diferente — é preciso que as estruturas mudem. “Não é que os médicos queiram tratar diferente, mas acontece”, comentou. As mulheres negras, por exemplo, recebem 50% menos anestesia e são menos tocadas pelos médicos durante exames físicos. “Se não mexo na estrutura intencionalmente, não adianta nada eu mudar como indivíduo. Tudo isso precisa acontecer ao mesmo tempo.” É por isso que, como executiva de RH, Mafoane vem tentando construir programas que transformem a maneira como as pessoas agem, em vez de só focar em mudá-las individualmente.

 

Dores herdadas e revividas

Por sua vez, a terapeuta Patricia Gonçalves chamou a atenção para a necessidade de as pessoas negras redescobrirem sua autoestima para conseguir lidar com essas dificuldades de uma outra forma e conquistar mais espaço. “Isso vem muito construído da infância”, disse. Para ela, materiais produzidos para crianças negras tendem, muitas vezes, a reforçar essa sensação. “Tem livros que às vezes eu não publico ou não faço prefácio para eles, porque reforçam uma condição estrutural”, afirmou. “Não é por um personagem ser negro que obrigatoriamente tem que se abordar a parte da periferia.” Segundo Patricia, só se ver nesse lugar de exclusão e opressão faz com que as crianças negras, desde pequenas, tenham a autoestima comprometida.

Na vida adulta, isso se traduziria em atitudes como ter receio de concorrer a posições mais ambiciosas, a se colocar em lugares de poder e de se arriscar mais. Foi essa percepção que motivou Patricia a criar rodas de acolhimento para mulheres negras. E é por isso também que ela defende, de forma geral, que as empresas criem grupos de afinidade e de acolhimento para que as pessoas negras possam discutir e compartilhar sua realidade. Além disso, comentou, é preciso que programas voltados especificamente para a saúde de pessoas negras sejam criados em escolas e empresas. “Os recursos disponíveis dentro das companhias precisam levar em consideração as diferentes realidades”, disse.

“De fato, o que se faz em saúde mental para melhorar o atendimento ou o acesso da população negra é justamente conseguir enxergar que existem necessidades que são especiais e específicas”, concordou Félix. “É tratar os diferentes como diferentes não no sentido de segregar, mas no sentido de falar: ‘opa, tem gente que está largando dessa corrida lá atrás e tem gente que está largando aqui na frente’.”

Félix lembrou de sua própria infância, marcada por sempre se sentir só nos ambientes que frequentava. “Não tive uma infância terrível, foi boa, mas eu era o único negro na minha sala”, contou. “Estou acostumado a lidar com o branco, mas é uma experiência solitária. De alguma maneira, experimentamos tristezas que muitas vezes são ancestrais.” Essas tristezas viriam dos chamados traumas vicários, isto é, traumas herdados de séculos de opressão e violência sofridas por pessoas africanas trazidas escravizadas ao Brasil, e que têm um impacto importante na saúde mental ainda hoje.

O sentimento de solidão e de viver dores que os não negros não entendem também tende a aumentar conforme as pessoas negras conseguem alcançar posições mais altas na hierarquia em empresas ou universidades, por exemplo, justamente porque há poucas pessoas como elas frequentando esses espaços. “É preciso saber se proteger”, disse Mafoane. “Você tem que saber com quem fala, o que fala, como cria uma rede de apoio para te ajudar, porque não é um ambiente pronto para a gente”, afirmou, lembrando-se de sua própria experiência como executiva.

Depois de alcançar determinadas posições em sua carreira profissional, Mafoane contou ter ouvido frases como, por exemplo, “você já é inteligente assim ou ficou depois de conviver com a gente [pessoas brancas]?”. “Nem sei quem é a pessoa que me disse isso. E mesmo assim ela se sentiu tão livre para dizer isso.” Situações como essas têm impacto direto no bem-estar e no sentimento de pertencimento e de valorização, tornando a convivência diária nos espaços muito mais desafiadora para as pessoas negras.

 

A luta precisa ser de todos

Outro ponto evidenciado durante o debate foi o fato de que combater o racismo e suas consequências precisa ser uma pauta de todos. Para Mafoane, a sociedade brasileira está chegando ao momento de compreender que o coletivo deve prevalecer sobre o individual.  “Todo o processo industrial foi formado para que você entendesse que, se você trabalhar, vai se dar bem. Essa lógica fez com que as pessoas fossem muito para esse lugar individual”, afirmou. “Aí veio a pandemia e mostrou que, por mais dinheiro que você tenha, isso não será suficiente. Vamos precisar trabalhar juntos. Não adianta eu ter muito dinheiro se grande parte da população não tem dignidade”, observou.

Perceber isso passa pela consciência de que enfrentar a questão é algo que beneficia toda a sociedade. “As pessoas não negras precisam entender que, quando for melhor para as pessoas negras, será melhor para elas também”, disse Mafoane. “Se for melhor para as mulheres, para as pessoas negras, para as pessoas com deficiência, vai ser melhor para todo mundo.”

Para Félix, o apoio de pessoas não negras é essencial na luta antirracista. “Por enquanto, muitas vezes quem tem a chave da porta é uma pessoa não negra”, disse. “Mas a gente não quer só que abram a porta para nós; a gente quer a chave também.” Isso envolve perceber as próprias atitudes — inevitavelmente derivadas de uma estrutura que favorece as pessoas brancas, mesmo que não intencionalmente.  “Você faz parte dessa engrenagem; 400 anos desse jeito geraram um modo de pensar em todos nós que precisa ser quebrado.”

 

Evento sobre saúde mental da populaçao negra
Participantes do evento no Insper

 

 

Este website usa Cookies

Saiba como o Insper trata os seus dados pessoais em nosso Aviso de Privacidade, disponível no Portal da Privacidade.

Aviso de Privacidade

Definições Cookies

Uso de Cookies

Saiba como o Insper trata os seus dados pessoais em nosso Aviso de Privacidade, disponível no Portal da Privacidade.

Aviso de Privacidade