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O papel, o poder e as “jabuticabas” do Supremo Tribunal Federal

Em entrevista, o professor Diego Werneck Arguelhes fala sobre seu recém-lançado livro “O Supremo – Entre o direito e a política”, que mergulha no funcionamento do órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro

Em entrevista, o professor Diego Werneck Arguelhes fala sobre seu recém-lançado livro “O Supremo – Entre o direito e a política”, que mergulha no funcionamento do órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro

 

O Supremo Tribunal Federal é uma instituição de grande relevância na vida política e jurídica do Brasil, mas seu funcionamento, muitas vezes, permanece obscuro para o público em geral. Como são definidas as pessoas que ocupam as 11 cadeiras do Supremo? Qual o papel da política na escolha dos ministros e como isso influencia suas decisões? Por que alguns casos são julgados rapidamente e outros demoram anos? O que poderia ser feito para aprimorar o funcionamento do órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro?

Diego Werneck Arguelhes, professor do Insper, responde a essas e muitas outras perguntas no livro O Supremo – Entre o direito e a política, lançado recentemente pela Editora Intrínseca com o selo História Real. No Insper desde 2019, Arguelhes é graduado e mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, fez seu doutorado na Universidade Yale, nos Estados Unidos, e foi pesquisador visitante no Instituto Max Planck para Direito Internacional e Direito Público Comparado, na Alemanha.

Na entrevista a seguir, o professor comenta alguns pontos importantes sobre o Supremo, incluindo sua crescente influência no Brasil, as peculiaridades do tribunal em comparação com outros países e algumas mudanças que considera necessárias na instituição.

 

Como começou o seu interesse em estudar o funcionamento do Supremo Tribunal Federal?

Na minha geração, era comum estudar Direito Constitucional de forma desconectada das decisões dos tribunais. No entanto, nos primeiros anos da minha formação para ser professor, percebi que era essencial entender como essas instituições tomam decisões e como esses processos impactam e às vezes alteram as regras constitucionais ao longo do tempo. O Supremo Tribunal Federal estava passando por uma transformação significativa nos anos 2000. De um tribunal no geral pouco relevante para a vida política brasileira, nos anos 1990, ele se tornou uma instituição central, muitas vezes o foco principal da atenção nacional — por exemplo, no julgamento do “Mensalão”, em 2012 e 2013. Acompanhar o tribunal ao longo da última década me fez repensar as coisas que eu tinha aprendido sobre seu funcionamento, confrontando-as com a realidade. Entender como a instituição funciona. Isso se tornou algo muito interessante e importante para mim, dada a distância entre a visão que eu tinha do tribunal e a realidade de seu funcionamento.

 

E como surgiu a ideia de transformar seus estudos em um livro?

Eu escrevo sobre o Supremo Tribunal Federal para o público em geral há mais de uma década. No julgamento do “Mensalão”, por exemplo, escrevi artigos para a imprensa explicando o que estava acontecendo e, eventualmente, critiquei alguns aspectos do funcionamento do tribunal. Alguns anos antes,  esses temas já haviam começado a ocupar minha agenda de pesquisa acadêmica. Ao longo desse tempo, minha geração produziu bastante conhecimento sobre o Supremo. Recebi um convite da Editora Intrínseca para escrever um livro sobre o Supremo para o público em geral, para o selo História Real, uma vez que não havia ainda uma obra sobre o tema que posicionasse as pessoas no debate público. Senti que era hora de reunir tudo isso em um livro, que reflete as minhas ideias e pesquisa sobre o tema, mas também os resultados do trabalho de muitos outros pesquisadores e pesquisadoras. Tento apresentar e conectar em um argumento completo sobre temas que estavam dispersos em minha produção e na de outros estudiosos da área.

 

Por que o STF adquiriu tamanha influência no Brasil? Seu poder é similar ao que se observa nos tribunais em outros países ou as condições brasileiras são diferentes?

Boa parte do que tento fazer no livro é pegar algumas coisas que as pessoas acham estranhas e mostrar que talvez sejam normais, quando olhamos para fora, para outros sistemas. Algumas comparações que faço mostram que o Supremo não é tão diferente, em várias dimensões, de outros tribunais de cúpula em democracias constitucionais. Em outros aspectos, porém, procuro fazer o contrário: há coisas que as pessoas se habituaram a achar normais, mas tento mostrar que, na verdade, são peculiares em termos comparativos. Vale ressaltar que “peculiar” não quer dizer necessariamente ruim, mas é algo que nos faz questionar o motivo de ser tão diferente.

Por exemplo, uma peculiaridade do Supremo Tribunal Federal é a ausência de prazos para tomar decisões. Um caso pode ficar tramitando anos a fio, às vezes décadas. Exemplo recente disso é o caso da descriminalização das drogas. O processo, se não me engano, chegou ao Supremo em 2013. Outros tribunais podem demorar para enfrentar certos temas, mas normalmente não levam 10 anos com o mesmo processo. Essa ampla liberdade do Supremo de pegar um caso, mantê-lo em espera por longos períodos, às vezes apenas porque o relator não considera oportuno decidir no momento, é uma peculiaridade que considero disfuncional. Outros tribunais tipicamente têm o poder de se recusar a julgar este ou aquele caso, mas geralmente precisam definir isso em um período razoável. Precisam dar alguma resposta, mesmo que seja “não vou decidir isso”. Mas não podem ficar anos e anos sem dizer nada.

No livro, menciono outros exemplos como esse. Há, no entanto, aspectos que, embora muitas pessoas possam achar estranhos, eu não apenas considero normais em termos da frequência com que ocorrem, mas também justificados. Exemplo disso é a indicação de ministros do Supremo por políticos eleitos. Não é que um sistema assim seja perfeito, mas procuro explicar que, nesse caso, as alternativas seriam piores. No livro, exploro a razão pela qual, em uma democracia, é bom que as pessoas responsáveis por tomar decisões judiciais dessa magnitude passem por algum crivo democrático, mesmo que indiretamente. Embora não haja eleições diretas para os ministros do Supremo, é positivo que os eleitos para cargos públicos assumam a responsabilidade pela indicação dessas pessoas. Precisamos levar em conta que, com nosso voto, estamos indiretamente ajudando a escolher ministros e ministras do STF.

 

Essa demora que você mencionou para o Supremo tomar certas decisões tem a ver com o fato de, no Brasil, o órgão máximo do Judiciário ter que julgar sobre muitas questões que poderiam ter sido resolvidas em instâncias inferiores?

Sim, mesmo após a reforma do Judiciário, milhares de processos continuam chegando ao Supremo, embora não mais como no pico de 2006, quando esse número passou de 100 mil processos. O STF decide a maior parte dos temas que recebe e, nos últimos anos, conseguiu manter um turnover razoável por ano. Ele não acumula muita coisa. Mas há um conjunto de casos que fica no Supremo por anos. Hoje em dia o tribunal consegue, especialmente graças ao plenário virtual, decidir colegialmente com mais rapidez sobre casos que são mais simples (os casos realmente simples ou repetitivos acabam sendo em sua maioria decididos monocraticamente). No entanto, quando se trata de casos complexos, há outras limitações que afetam a capacidade do tribunal de lidar com muitos temas desafiadores. Por exemplo, as sessões do tribunal podem ser demoradas, com cada ministro lendo seu voto, o que torna improvável a realização de vários julgamentos em uma única tarde ou sessão do plenário.

Em um trabalho com Guilherme Almeida, meu colega aqui do Insper, e Thomaz Pereira, da FGV Direito Rio, observamos uma tendência interessante no período de 1988 a 2019. Constatamos que a capacidade de julgamento do plenário do tribunal permaneceu mais ou menos constante, independentemente de flutuações significativas no número de processos ocorrendo no mesmo período. Em outras palavras, embora o tribunal tenha conseguido lidar com um volume maior de processos, o número de decisões tomadas durante as sessões plenárias (quando os ministros estão fisicamente presentes para debater e decidir de maneira síncrona, em tempo real) manteve-se mais ou menos estável.

É importante dizer também que o grande volume de processos pode ser útil ao Supremo, por dois motivos. Primeiro, aumenta as oportunidades que o tribunal tem de se pronunciar sobre questões emergentes na política e nas instâncias inferiores do Judiciário. Segundo, esse grande volume  torna menos custoso para o tribunal justificar a não apreciação de determinados casos. Apontando para a sobrecarga de processos, os ministros podem, de certa forma, diminuir nossa atenção para o fato de que os casos são decididos em velocidades e momentos muito diferentes. Quando cobrados, podem sempre dizer: com tantos processos assim, como esperar que fôssemos decidir este ou aquele caso específico? Mas, no fundo, o fato é que há casos e temas que são julgados muito rapidamente, enquanto outros levam anos.

 

Há mais alguma “jabuticaba” no Supremo brasileiro que não faz muito sentido e precisaria ser modificada?

Uma questão que acho problemática, como explico detalhadamente no livro, é a extensão do “foro por prerrogativa de função”, geralmente chamado de “foro privilegiado”. Não que eu considere o foro, em si, injustificado. A ideia de que certas autoridades só podem ser julgadas por um tribunal superior, em vez de um juiz de primeira instância, possui justificativas razoáveis. Uma boa razão, em tese, é a de que os ministros do STF estariam menos sujeitos à pressão política do que um juiz de primeira instância. Esse argumento faz sentido, em princípio, e não acho um mecanismo como o foro privilegiado necessariamente não republicano ou injustificável.

Mas precisamos considerar o que aconteceu na última década, no uso desse poder pelo tribunal, e como ele foi recebido pela política e pela sociedade. Num tribunal em que você tem centenas de autoridades sujeitas à sua jurisdição — todos os deputados, senadores e ministros, mais outras autoridades listadas pela Constituição —, em contextos de crise política, o foro por prerrogativa de função coloca o tribunal em rota de colisão com atores políticos poderosos. E é difícil não ver, na atuação penal do tribunal, uma sensibilidade quanto à conjuntura política; contextos políticos diferentes parecem se associar a variações na formação da agenda, por exemplo (isto é, quando as ações penais serão ou não julgadas). Mesmo que a motivação dos ministros em muitos casos seja estritamente jurídica, ficou muito difícil, na esfera das ações penais, o tribunal convencer as pessoas de que não se está decidindo (ou ao menos definindo sua agenda e os casos que vai julgar em um dado momento) com base em considerações de conjuntura política, e não com base em regras jurídicas, provas etc.

É importante lembrar que a Constituição estabelece essa competência para o STF, e o tribunal não pode reescrevê-la totalmente; ele só pode interpretá-la de forma restritiva, como aliás vinha fazendo nos últimos anos. Mas é crucial considerar que esse poder é tão significativo que, para não entrar em guerra com os políticos, o tribunal não está totalmente livre para utilizá-lo sem considerar a conjuntura política em que esse poder é exercido.

Conforme as pessoas vão percebendo essa dinâmica em alguns casos, a percepção se generaliza para a atuação do Supremo em geral. Mesmo quando os ministros e ministras têm razões sólidas para absolver ou condenar em determinado caso, ou para tomar mais tempo para concluir um julgamento, esse poder se tornou algo tóxico, que acaba tensionando a legitimidade do tribunal. Curiosamente, o uso desse poder impulsionou um aumento de prestígio público do tribunal, a partir do escândalo do “Mensalão”, mas também gerou um alto grau de desconfiança. Ao mesmo tempo que mais pessoas aprovavam decisões como a do “Mensalão”, um número crescente de pessoas passou a monitorar de perto a instituição, por estarem insatisfeitas com as decisões em casos criminais, e começaram a perceber suas divisões internas e identificar episódios em que o comportamento de ministros dificilmente poderia ser explicado apenas a partir do direito vigente.

Penso que seria melhor que o tribunal encontrasse uma maneira de reduzir a aplicação do foro privilegiado ao mínimo necessário. Não há solução simples e factível para esse problema no horizonte, mas é importante que tenhamos clareza quanto à direção a ser seguida sobre esse aspecto.

 

No que diz respeito ao processo de escolha dos ministros do STF, o que poderia ser aperfeiçoado?

No livro, procuro explicar e reconhecer que, aqui, o cobertor é muito curto. Qualquer que seja o sistema que adotarmos, haverá algum problema. Mudando seus mecanismos de indicação, você resolve um problema e cria outros. Por exemplo, tentar remover a política de presidentes e do Congresso do processo de escolha dos ministros e substituí-la pela ação de corporações do sistema de justiça (por exemplo, adotando “listas” fechadas elaboradas pelo Ministério Público, pela OAB ou pelo Judiciário) não somente é perigoso, como parece também, em alguns sentidos, ilusório: as corporações do sistema de justiça também são espaços políticos, ainda que de outro tipo de política.

Duas reformas, porém, podem ser implementadas com benefícios significativos. Primeiro, aumentar a idade mínima de nomeação dos ministros, atualmente de 35 anos, para pelo menos 45 anos, garantindo que os indicados tenham notável saber e reputação ilibada após uma carreira sólida no Direito. Embora ainda sejam relativamente jovens aos 45 anos, os indicados teriam acumulado mais de 20 anos de experiência no campo jurídico. Essa mudança, que teria custo pequeno, forneceria mais informações sobre os indicados, permitindo uma avaliação mais sólida de suas qualificações.

Segundo, introduzir mandatos fixos para os ministros. Considero um problema o fato de que alguns ministros do Supremo permanecem por apenas 10 anos, enquanto outros ficam por 35 anos (e que alguns presidentes indiquem oito ministros em dois mandatos, enquanto outros indiquem menos da metade disso). Isso gera um desequilíbrio dentro do tribunal em termos da influência de certos ministros (e dos presidentes que os indicaram). Com a passagem do tempo, a pessoa começa a achar que a cadeira é dela, além de se criar uma situação na qual certos eleitores,  que elegeram os presidentes que deram a sorte de ter várias vagas abrindo durante seu mandato, vão ter muito mais influência do que outros que ganharam as mesmas eleições em outros momentos. A introdução de mandatos fixos ajudaria a equilibrar as oportunidades que diferentes presidentes — e respectivos eleitores — têm para indicar ministros. Esses mandatos não precisam ser necessariamente curtos. Podem ser, digamos, de 16 anos. Nas últimas décadas, a média de permanência de ministros no STF não foi muito maior do que isso. Portanto, ao estabelecer um mandato fixo para todos, podemos igualar a influência dos ministros e dos presidentes ao longo do tempo. Evidentemente, o mandato não é perfeito e cria alguns outros problemas, que discuto no livro e que acho que podem ser resolvidos ou atenuados com outras reformas.

 

No livro, você apresenta um levantamento que mostra a falta de diversidade na composição do STF ao longo da história — basicamente, os ministros são homens brancos da região Sudeste. Qual a importância de ter uma diversidade maior no Supremo?

A falta de diversidade na composição do STF reflete desigualdades mais amplas que existem na sociedade. Isso serve como um lembrete claro das barreiras enfrentadas por mulheres, pessoas negras e outras minorias para alcançar posições de poder em instituições públicas e privadas. Eu não acho que o Supremo tenha que ser um espelho da população brasileira, e não vejo o tribunal como uma instituição representativa, em termos políticos. Mas acho que ele também não pode ser um retrato da nossa desigualdade. Isso vale para qualquer instituição, aliás, na democracia brasileira.

Além disso, há aspectos do funcionamento do tribunal que se beneficiariam com uma maior diversidade. No livro, menciono um estudo que conduzi em colaboração com colegas, incluindo um pesquisador do Insper, Henrique Wang, a economista Rafaela Nogueira, e uma professora de Direito na Áustria, Juliana Cesario Alvim Gomes, e que está aguardando publicação no Journal of Empirical Legal Studies. Nossa pesquisa investigou se as ministras mulheres no Supremo são mais frequentemente interrompidas durante os debates em sessões públicas do tribunal. Descobrimos que, de fato, as três ministras — Ellen Gracie, Carmen Lúcia e Rosa Weber — têm uma probabilidade significativamente maior de serem interrompidas.

Isso levanta a questão de como essas dinâmicas de poder dentro do tribunal podem influenciar o funcionamento da instituição, afetando a tomada de decisões, quais argumentos são considerados e quais ideias recebem destaque. Vale ressaltar que isso não implica necessariamente que as ministras decidirão de maneira diferente dos ministros homens; no caso do Supremo, não temos dados que confirmem essa hipótese. No entanto, nossos resultados sugerem que a presença de ministras pode provocar comportamentos distintos entre seus colegas, o que, por sua vez, pode influenciar o resultado final das decisões no tribunal.

Essa dinâmica não se limita ao gênero e provavelmente se aplica à questão racial também. No contexto do Supremo, que se supõe ser um espaço onde os argumentos são ouvidos e considerados independentemente de fatores como popularidade, maioria ou poder de quem apresenta esses argumentos, a promoção da diversidade se torna ainda mais relevante e necessária.

 


Capa do livro "O Supremo"

O Supremo, de Diego Werneck Arguelhes

Editora História Real (Intrínseca), 256 págs.

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