A contração do crédito causou um baque na criação de empresas com valor estimado em mais de 1 bilhão de dólares no mundo. Mas a verve empreendedora vai bem, obrigado
David A. Cohen
Um bicho que nunca existiu pode estar ameaçado de extinção? Essa é a curiosa situação em que se meteram os unicórnios — obviamente não os seres mitológicos, mas as empresas com avaliação privada acima de 1 bilhão de dólares, que ganharam esse apelido em 2013 e, nos últimos cinco anos, vinham proliferando em ritmo frenético.
Vinham, não vêm mais, porque aparentemente os unicórnios se alimentam de capital privado obtido em generosas rodadas de investimento e essas não têm sido tão fartas quanto na época dos juros baixos, quando os grandes fundos não tinham muitas alternativas senão as opções de risco.
“O apelido de unicórnio foi criado para apontar que era um fenômeno muito raro”, lembra Andrea Minardi, professora de Finanças nos cursos de graduação, mestrado e educação executiva do Insper. Ele acontece quando uma startup vende uma participação no negócio para investidores privados e o preço que obtém faz supor que a empresa como um todo tenha um valor acima de 1 bilhão de dólares. Algo bastante difícil. “Mas o excesso de liquidez fez brotar unicórnios de todo canto”, aponta Andrea.
A pandemia deu um impulso ainda maior à tendência, porque a economia toda ficou mais digital, o que alavancou as startups e fez de 2021 um ano recorde para os unicórnios. No ano seguinte, porém, a queda foi estrondosa. No Brasil, as rodadas de investimentos acima de 100 milhões de dólares caíram de 40, em 2021, para 16 em 2022, de acordo com cálculos da plataforma de inovação aberta Distrito do início deste ano.
Na Europa, a empresa de análises de mercado Pitchbook calculou que o valor total dos unicórnios do continente caiu em 2023 pela primeira vez em cinco anos. “Os aportes nos estágios iniciais das startups permaneceram basicamente iguais”, afirmou Shikha Ahluwalia, a presidente da Balderton, uma empresa de venture capital de Londres, ao site Sifted, especializado em informações sobre startups. “Mas as generosas atribuições de valor de mercado que costumavam acontecer a partir da série A de rodadas de investimentos murcharam. As startups agora vão precisar de mais tempo para crescer antes de ter acesso a mais capital.”
Os dados da Crunchbase, companhia que compila informações sobre empresas no mundo inteiro, ratificam essa avaliação. De acordo com seu Quadro de Unicórnios, das 47 startups que tiveram avaliação de mais de 1 bilhão de dólares de janeiro a julho deste ano, apenas 18 o fizeram nas primeiras rodadas de investimentos (semente, série A e série B). Para dar uma ideia da queda: em 2021, houve 107 unicórnios formados nas rodadas iniciais; mesmo em 2022, quando o crédito começou a apertar, foram 77.
Além de estar mais difícil alcançar o status de unicórnio, ficou mais fácil perdê-lo. A perda do título ocorre quando a startup faz uma nova rodada de investimentos ou recebe um aporte único de alguma empresa com base numa estimativa de valor mais baixa. Por exemplo, se numa série A ela vendeu 10% do seu negócio por 150 milhões de dólares, seu suposto valor total seria de 1,5 bilhão de dólares (suposto porque o mercado para empresas fechadas é bem menos líquido), o suficiente para qualificá-la como unicórnio. Mas, se numa rodada posterior ela vende outros 5% de participação por 45 milhões de dólares, seu valor estimado agora é de 900 milhões de dólares, abaixo do patamar de unicórnio.
Em 2022, várias empresas rebaixaram sua própria estimativa de valor. Algumas, como a Brex, dos brasileiros Henrique Dubugras e Pedro Franceschi, tinham uma avaliação tão alta que, mesmo perdendo quase metade dela, segundo uma avaliação da revista Forbes em janeiro (de 12,3 bilhões de dólares para 6,4 bilhões de dólares), ainda estava na lista com bastante folga. Mas mais da metade dos mais de 1.200 unicórnios da lista da CB Insights, uma plataforma de informação e análise de negócios, tem avaliação entre 1 bilhão de dólares e 2 bilhões de dólares.
É difícil, porém, determinar quais empresas saíram da lista — a não ser em casos de colapso, como o da bolsa de criptomoedas FTX ou, alguns anos antes, da empresa de análises de sangue Theranos. Isso porque os negócios privados muitas vezes são cercados de sigilo. Quando se trata de elevar uma empresa à categoria de unicórnio, os investidores de venture capital (VC) são mais propensos a divulgar valores; afinal, a onda positiva os ajuda a mais tarde recuperar seu investimento original. No caso de rebaixamento, no entanto…
Ainda assim, há sinais. A vida não andou fácil para ninguém no ano passado, especialmente no setor de tecnologia, e os planos ambiciosos de crescimento tiveram que ser revistos, muitas vezes com extensos cortes de pessoal. Foi o caso nas grandes empresas de tecnologia, como Amazon, Meta e tantas outras. No Brasil, uma lista razoável de unicórnios teve que demitir funcionários, desde iFood e 99 até MadeiraMadeira, Dock, QuintoAndar e Ebanx.
Acabar, o entusiasmo dos investidores não acabou. Em 2017, os consultores Gary Hamel e Michele Zanini previram, em artigo na Harvard Business Review, que o fenômeno de criação de unicórnios iria definhar. O motivo, diziam, era que as grandes oportunidades para fundar startups bilionárias giravam em torno da plataforma de comunicação aberta pela invenção do iPhone. “Uma década depois de seu lançamento”, escreveram, “as maiores oportunidades já podem ter sido encontradas”.
O argumento estava errado. De fato, os smartphones impulsionaram modelos de negócios como as fintechs, aplicativos de transporte e startups de comunicação como Whatsapp ou TikTok — e essa janela ficou mais estreita. Mas outras se abriram. Em especial o campo de inteligência artificial (IA).
No ano passado, mesmo em meio à desvalorização do setor de tecnologia, startups de IA e biotecnologia atraíram enorme interesse de investidores. Outras indústrias, ligadas a carregamento de baterias elétricas e solares, armazenamento de energia e extração mineral — atividades ligadas à iminente mudança de matriz energética mundial — também testemunharam a criação de unicórnios.
Apesar da falha no argumento, a previsão de Hamel e Zanini pode estar certa. A criação de unicórnios pode efetivamente se estabilizar num patamar muito mais baixo; não por falta de ideias inovadoras e revolucionárias, mas porque o dinheiro está mais escasso.
De acordo com o site de análises de negócios The Information, mesmo no mercado efusivo da IA está ocorrendo uma correção. “Vimos sinais de freio neste mês, quando nosso time reportou que a Jasper, cuja série A da rodada de investimentos atingiu 125 milhões de dólares em outubro e inaugurou o frenesi de aportes no setor, cortou sua avaliação interna da empresa em 20%, e suas projeções de receita anual para este ano em 30%”, disse o site.
“O aumento na dificuldade de criar unicórnios não é uma notícia ruim”, avalia Andrea Minardi, do Insper. “É um ajuste. Quando a gente vê unicórnios que atingem esse status ainda na fase de PowerPoint, sem praticamente nenhum resultado operacional, alguma coisa está errada.”
É certo que o modelo de empreendedorismo e investimentos passou do ponto nos últimos anos. “Na lógica que vinha vigorando até recentemente, era importante não diluir demais a participação dos criadores da empresa”, explica a professora. “Ninguém queria que o empreendedor ficasse com menos de 50%, 60%. do negócio, para manter o pessoal motivado.”
Ora, isso implicava que, numa segunda rodada de investimentos, era necessário que a empresa tivesse crescido muito para manter a avaliação do negócio (e poder vender uma parte menor da companhia por ainda mais dinheiro do que havia sido obtido na rodada anterior). “Nessa ânsia de crescimento, havia o risco de pegar atalhos ruins: fazer uma aquisição indevida, procurar outras linhas de negócio adjacentes…”
Nem sempre esse modelo dá certo. Em agosto, por exemplo, a startup londrina Hopin, uma plataforma de eventos virtuais que em 2020 atingiu o exuberante valor de 7,75 bilhões de dólares numa rodada de investimentos da série B, foi vendida… por 50 milhões de dólares. O mundo dos unicórnios tem histórias fantásticas, como o Uber ou a Coinbase, mas tem uma dose bem maior de decepções. Basta pensar no modismo de aluguel de patinetes ou nas startups de criptomoedas que se revelaram, digamos, menos que sólidas.
Num mundo com menos dinheiro sobrando, os investidores estão menos dispostos a correr tantos riscos. Daí que se está dando menos ênfase agora ao crescimento acelerado, mais à lucratividade e ao fluxo de caixa positivo.
Pensar no lucro, aliás, talvez seja a melhor forma de crescer. Pelo menos é o que diz um estudo da Escola de Administração IESEG, na França. Companhias que priorizam a lucratividade sobre o crescimento, conclui a pesquisa, têm probabilidade 2,5 vezes maior de conseguir tanto a lucratividade quanto o crescimento num prazo de médio a longo, em relação a empresas que focam apenas no crescimento. E as empresas que focam primordialmente no crescimento têm chances 2,6 vezes maiores de apresentar mau desempenho não só em relação a lucros, mas ao próprio crescimento.
Uma alternativa em geral um pouco mais contida nos exageros do foco no crescimento são os fundos de investimento corporativos, os Corporate Venture Capital, ou CVC. Eles surgiram porque, de um lado, as empresas não queriam ficar para trás em algum movimento importante. É o que se vê agora com IA. A Microsoft investiu na OpenAI, que desenvolveu o ChatGPT, enquanto a Amazon está apostando pesado na rival Anthropic.
Para as empresas, não é apenas uma questão de aproveitar uma oportunidade; é principalmente evitar ameaças, ou incorporar os investimentos à sua estratégia de crescimento. “Os dois tipos de investimento são complementares”, afirma Andrea Minardi. “O VC independente está muito preocupado com o crescimento do empreendedor. O CVC está preocupado com o desenvolvimento da tecnologia — porque, além do investimento, tem interesse estratégico.”
A aposta em startups é um dos modos de as empresas investirem em inovação, dentro do conceito de inovação aberta (fora das fronteiras da própria companhia). A tendência é que cresça. No início do ano, uma pesquisa da Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCAP) indicou que mais de 80% das empresas de médio e grande porte do Brasil já possuem iniciativas para investimentos em startups.
Embora o volume de investimentos corporativos tenha caído no último ano, acompanhando o mercado como um todo, no mais recente congresso da ABVCAP, agora em setembro, a consultoria TTR Data apontou mais de 80 grandes empresas atuando com CVC e outras 40 trabalhando na estruturação de seus fundos.
Nos últimos anos, o CVC representou entre 20% e 25% de todos os aportes em startups (sendo o restante distribuído entre venture capital e private equity), de acordo com dados da consultoria Bain & Company.
Para o empreendedor, há vantagens e desvantagens no CVC. Entre as vantagens está o fato de que a saída do negócio pode ser dentro da própria corporação investidora. Aconteceu, por exemplo, com a Kangu, uma startup de logística que prestava serviço para o Mercado Livre, recebeu dele um investimento que a ajudou a multiplicar seu crescimento por 100 e acabou sendo incorporada ao grupo.
Entre as desvantagens está o fato de que a empresa tende a inocular pelo menos parte de sua cultura, metas e estratégias na startup. Foi o caso, por exemplo, do Instagram, comprado pelo Facebook; seus fundadores permaneceram na empresa até 2018, quando a discordância com os rumos exigidos pelo Facebook os levou a pedir demissão. “O VC blinda um pouco o empreendedor de ser massacrado na grande empresa”, avalia Andrea Minardi.
Uma outra desvantagem é seu aspecto cíclico. “O CVC tem ondas, é um processo de aprendizado”, diz a professora do Insper. “As empresas muitas vezes fazem negócio sem saber direito onde estão se metendo. Fica caro e, em períodos de crise, a primeira coisa que vão cortar é a inovação.”
Em suma, não existe mundo perfeito — nem investimento perfeito. Ainda mais quando o crédito em geral ficou mais restrito. Isso não significa que os unicórnios vão desaparecer. Muito menos que o empreendedorismo vá se retrair.
“O ímpeto empreendedor vai sofrer? Acho que não”, diz Andrea. “Com IA, com a necessidade de transformação rumo à sustentabilidade, que exige muita tecnologia… existem muitas oportunidades por aí.”
O sinal mais claro de que o fenômeno não se esgotou, porém, vem das salas de aula. “Antigamente, você perguntava para os alunos quem planejava abrir seu próprio negócio e, numa turma de 50, no máximo dois ou três levantavam a mão”, lembra a professora. “Hoje, em média a gente vê uns 40%.”
Os jovens empreendedores, em sua grande maioria, obviamente não vão se tornar unicórnios. Mas certamente já não são as ovelhas negras da turma.