A nova geração da web, baseada na tecnologia de blockchain, traz a expectativa de mais privacidade e segurança para os usuários, mas há desafios técnicos pelo caminho
A World Wide Web (www) — o conjunto de páginas na internet, a rede mundial de computadores — foi criada em 1989 pelo cientista da computação britânico Tim Berners-Lee, inicialmente para atender à demanda de compartilhamento de informações entre cientistas de universidades e institutos em todo o mundo. No estágio inicial da internet, hoje conhecido como Web 1.0, as atividades online consistiam basicamente na leitura de páginas estáticas individuais — como consultar uma enciclopédia, ler uma notícia ou visitar o site de uma empresa. Nesse modelo, a comunicação ocorria em uma só direção — do emissor para o receptor. Não havia feedback nem interatividade.
O segundo estágio, no qual ainda estamos mergulhados atualmente, é chamado de Web 2.0 e começou por volta dos anos 2000. A Web 2.0 criou uma série de ferramentas e plataformas para permitir que as pessoas compartilhem suas ideias, opiniões e experiências, resultando em um conteúdo mais dinâmico e interativo. Esse modelo foi projetado para ajudar os usuários a criar conteúdo, e não apenas consumi-lo. Exemplos disso são as redes sociais e as wikis (como a Wikipedia), uma coleção de páginas interligadas e colaborativas que podem ser editadas por qualquer pessoa.
A Web 2.0, no entanto, centralizou os dados e o poder em um número reduzido de grandes corporações. Estima-se que, em 2019, 43% do tráfego global na internet tenha fluído por meio das ferramentas de Google (Alphabet), Amazon, Facebook (Meta), Netflix, Microsoft e Apple. Esse domínio é mais acentuado ainda em algumas categorias — o Google controla quase 87% do mercado global de buscas na internet, enquanto a Meta tem 3,6 bilhões de usuários únicos — quase metade da população do planeta — em suas quatro principais plataformas (Facebook, WhatsApp, Messenger e Instagram).
Essas corporações utilizam os dados coletados dos usuários com pouca transparência, vendendo as informações para anunciantes e outras corporações. Nesse modelo, os usuários geram conteúdo, mas não são recompensados por isso.
Agora, segundo especialistas, estamos entrando em uma nova fase na evolução da internet, a Web 3.0, ou simplesmente Web3. O termo foi cunhado em 2014 por Gavin Wood, cientista da computação inglês que ajudou a desenvolver o Ethereum, uma plataforma descentralizada capaz de executar contratos inteligentes e aplicações descentralizadas usando blockchain, a tecnologia que está por trás de quase todos os criptoativos, como o bitcoin e o ether.
Diferentemente dos modelos anteriores, a Web3 não depende de autoridade e servidores centralizados. Em vez disso, os dados são armazenados em milhões de computadores espalhados pelo mundo e acessíveis por meio de links criptografados. É um modelo mais democrático, que usa softwares de código aberto, não requer o suporte de um intermediário confiável e não dispõe de uma governança central.
As plataformas e os aplicativos criados na Web3 não serão de propriedade de um “porteiro” central, mas sim dos usuários, que ganharão uma participação por ajudar a desenvolver e manter esses serviços. Esse modelo descentralizado permite que os usuários sejam remunerados por suas contribuições — por exemplo, se uma pessoa escrever um artigo ou enviar uma foto em alguma plataforma de mídia social, será recompensada com tokens (um tipo de criptoativo) por sua contribuição.
A Web3 significa o fim da Web 2.0? Não necessariamente, segundo o professor Raul Ikeda, coordenador do curso de Engenharia de Computação do Insper. “Embora a Web3 não substitua o que comumente chamamos de Web 2.0, ela representa um ecossistema de diversos sistemas, incluindo redes blockchain, realmente decentralizados, alguns sem governança claramente definida”, diz Ikeda. “No fundo, a Web 2.0 e a Web3 devem coexistir, mantendo as melhores características de cada uma.”
A tecnologia que possibilita a Web3 é a blockchain, uma espécie de banco de dados digital que contém informações que podem ser usadas e compartilhadas simultaneamente em uma grande rede descentralizada. A vantagem da blockchain é que nenhuma pessoa ou autoridade tem controle sobre ela. As transações são verificadas e confirmadas pela comunidade online, o que a torna descentralizada.
Transparência e imutabilidade
A blockchain é considerada uma das formas mais seguras de armazenar dados, já que os registros são imutáveis. A tecnologia funciona como um livro contábil digital que permite que as informações sejam vistas por qualquer pessoa, mas não podem ser alteradas, copiadas ou excluídas.
“Na prática, para o usuário, o efeito imediato da Web3 é a transparência e a imutabilidade das informações. O fato de ser decentralizado faz com que seja mais robusto às alterações”, diz o professor Ikeda. “Outra característica é a transformação dos processos, possibilitando mais agilidade e eliminação da intermediação.”
A imutabilidade da blockchain significa que, uma vez postados na web, os dados não podem ser apagados. Conforme Ikeda, essa característica “é boa sob a ótica da veracidade e confiança dos fatos registrados, mas talvez não tão boa para opiniões” — é o caso, por exemplo, de um comentário racista ou ofensivo à honra de alguém. “Contudo, a imutabilidade também traz implícito o fato de que a opinião emitida não pode ser apagada, gerando consequências incontestáveis”, diz Ikeda.
Exemplos de aplicações
A Web3 ainda está na primeira infância, mas já existem algumas aplicações disponíveis no mercado. Para citar alguns exemplos, o Steemit é um site de blogs e redes sociais descentralizado que usa a tecnologia de blockchain para recompensar todos os que participam de sua plataforma, seja criando, seja fazendo curadoria de conteúdo na rede. O Brave é um navegador de web descentralizado que afirma proteger a privacidade dos usuários bloqueando rastreadores e anúncios. O Gitcoin é um site que permite que os desenvolvedores sejam pagos em criptoativos por participarem de ações relativas ao código aberto. O Filecoin quer substituir os atuais provedores de armazenamento em nuvem, como Dropbox e Google Drive, criando um sistema de armazenamento descentralizado de arquivos seguro e privado. O Livepeer é um protocolo de streaming de vídeo descentralizado no qual as emissoras podem ganhar tokens de seus espectadores para compartilhar conteúdo de qualidade.
Outro exemplo que vale destacar é o Odysee, uma plataforma de compartilhamento de vídeos que quer se tornar uma alternativa ao YoutTube na Web3. Como ocorre no YouTube, os usuários podem compartilhar seus vídeos no Odysee. Mas, diferentemente do que acontece no YouTube, os vídeos não são enviados para um servidor central. Eles são hospedados em uma blockchain e armazenados em muitos nós, de modo que nenhuma autoridade pode controlar ou censurar o conteúdo.
O Odysee promete remunerar (com criptoativos) os usuários que produzirem conteúdo, indicarem pessoas ou simplesmente assistirem aos vídeos na plataforma. Embora a proposta pareça atraente, o Odysee, lançado no fim de 2020, provoca polêmica por ter virado refúgio de alguns influenciadores extremistas que foram banidos do YouTube por violar suas regras. O YouTube foi a primeira rede social a banir vídeos com conteúdo supremacista. Isso inclui vídeos que promovam ideias nazistas ou qualquer outro de ideologia que pregue que uma pessoa é superior a outra em função de gênero, cor, idade, religião, orientação sexual ou por qualquer outro motivo.
Em casos como esse, um sistema autogovernado, sem uma autoridade central para responder eventualmente pelos atos que violem a lei, pode ser um problema. “Um ponto contra a Web3 é justamente a falta de suporte legal para algumas possíveis aplicações, em consequência da falta de governança clara sobre as redes”, diz Ikeda.
O professor aponta também alguns desafios técnicos para que a Web3 ganhe escala e se torne realidade. “A Web3 não foi projetada, em sua maior parte, para ser escalável ou barata. Hoje apresenta custos elevados para se tornar mais abrangente, um custo decorrente da descentralização”, diz Ikeda. Segundo ele, algumas novas iniciativas tentam melhorar esse cenário, principalmente com a chegada do Ethereum 2.0, que vai aumentar a velocidade, a eficiência e a escalabilidade da rede blockchain Ethereum e possibilitar a criação de mais aplicações descentralizadas.