Tratamentos contra gripe, zika vírus, câncer, aids e diabetes estão na gama de possibilidades da tecnologia
David Cohen
Pode até ser que a chegada de vacinas proteicas tire um pouco do brilho (e do potencial de lucro) das vacinas que utilizam o RNA mensageiro, como as da Pfizer e da Moderna, no combate à covid-19. Ou pode acontecer a melhor das hipóteses: o vírus se tornar inofensivo. Ainda assim, o futuro das vacinas de RNAm é promissor, porque essa tecnologia é um passo revolucionário.
No início de 2020, quando a pandemia da covid-19 se tornou uma realidade, havia vacinas em estágio mais avançado. A Corbevax, por exemplo, do Hospital Infantil do Texas, estava a meio caminho andado, com uma vacina pronta desde 2003 para um outro coronavírus, da epidemia de Sars.
Mas a maior parte dos investimentos do governo americano foi para o desenvolvimento da vacina de RNAm — especialmente a da Moderna. Calcula-se que, contando os recursos aportados por diversas agências do governo, a Moderna tenha recebido 2,5 bilhões de dólares. Parte disso veio antes mesmo da pandemia: o Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas já trabalhava com a Moderna no desenvolvimento da tecnologia. O governo dos Estados Unidos também garantiu a compra, com pagamento antecipado, das vacinas que ainda não existiam.
Para além do dinheiro, cientistas do governo americano contribuíram no desenvolvimento de mecanismos de dosagem da vacina e criaram o processo pelo qual se conseguiu estabilizar a proteína spike do vírus, um componente fundamental da vacina.
Até então, os resultados dos estudos para fabricar vacinas de RNAm haviam ficado aquém do esperado. Avanços significativos estavam empacados pela ausência de investidores que se dispusessem a colocar dezenas ou centenas de milhões de dólares nas pesquisas. Foi então que surgiu a pandemia — e a disposição para o investimento.
A aposta parece ter sido correta. Afinal, as vacinas foram desenvolvidas em tempo recorde. Cerca de dois meses após a China ter divulgado o código genético do vírus, a Moderna aplicou a primeira dose de sua vacina em um estudo de fase 1. Levando em conta que o cronograma de desenvolvimento de uma vacina é de 10 a 15 anos, foi uma rapidez extraordinária. Em parte, a velocidade se deveu à simplificação de processos e exigências das autoridades sanitárias. Mas as vacinas de RNAm chegaram ao mercado mais cedo que as demais porque têm uma grande vantagem: usam as células do nosso próprio corpo como “fábrica”, o que economiza várias etapas delicadas do desenvolvimento da vacina.
Para entender o avanço que as vacinas de RNAm representam é preciso recapitular um pouco quais são os tipos de vacina que existem.
O princípio de todas elas é essencialmente o mesmo: inocular no organismo um antígeno, uma molécula estranha ao organismo que lhe permita se preparar contra o invasor com antecedência. Quando a bactéria ou o vírus atacar, o corpo reconhecerá a agressão mais rapidamente e já terá experiência na produção de células de defesa. O grande desafio na produção de uma vacina é induzir essa resposta sem produzir a doença.
Nas vacinas comuns, mais antigas, esse alerta é dado com uma versão enfraquecida ou inativada do vírus agressor (que chamamos de patógeno), uma técnica que data do século XIX. O vírus é inativado com produtos químicos, ou com uso de calor ou radiação. As vacinas anuais para gripe são desse tipo, bem como a vacina que previne a poliomielite. A vacina da Sinovac (no Brasil, chamada de coronavac) usa este conceito.
Nos anos 1950, surgiu uma alternativa: em vez de matar o vírus (inativá-lo), apenas atenuá-lo. A vantagem é que a resposta imune é mais poderosa e uma dose da vacina pode ser suficiente para a vida inteira. É o caso da vacina contra sarampo, caxumba e rubéola. Mas não é todo patógeno que se presta a essa técnica.
Uma vacina um pouco mais sofisticada é a proteica (ou subunitária). Em vez de usar o patógeno inteiro, inoculam-se apenas alguns componentes (ou antígenos) dele. No caso da covid-19, foi usada a proteína spike, responsável pela adesão do vírus às células do corpo.
Com essa técnica, a produção da vacina fica mais fácil e o risco é menor, uma vez que o pedaço do vírus (a subunidade) não tem condições de se reproduzir. Uma dificuldade é que às vezes a proteína utilizada não consegue despertar uma resposta imune suficiente; por isso são utilizados adjuvantes — substâncias que dificultam o processamento do antígeno pelas células, dando mais tempo para o organismo produzir suas defesas. O adjuvante mais comum é o hidróxido de alumínio. A vacina da Novavax, feita por este método, utiliza um derivado de casca de árvore; a vacina da Sanofi-GSK utiliza um óleo chamado esqualeno, originalmente derivado do tubarão.
A vacina da AstraZeneca também é desse tipo. Por meio de manipulação genética, a proteína spike do Sars-CoV-2 é inserida em um vírus enfraquecido do resfriado comum (por usar um vírus como transportador, a técnica é também chamada de vetor viral).
Há cerca de 30 anos, alguns pesquisadores começaram a investigar um método mais simples de produzir os anticorpos. E se, em vez introduzir no organismo um pedaço do vírus, nós orientássemos as próprias células a produzi-lo? O código com as instruções para isso já era conhecido: o RNA mensageiro. Difícil era inseri-lo nas células. Isso levou três décadas.
O primeiro avanço foi estabilizar o RNAm, que é frágil. O segundo avanço foi desenvolver nanopartículas de gordura que impedem que ele seja destruído pelos elementos químicos no sangue. Depois, foi preciso descobrir como fazer com que as células “engolissem” a partícula contendo o RNAm e passassem a acatar suas instruções para fabricar a proteína desejada.
A recompensa desse processo é que, como esse tipo de vacina só precisa reproduzir uma pequena parte do vírus e não há necessidade de criar uma cultura de vírus, nem encontrar um hospedeiro para levá-lo ao organismo, o desenvolvimento é muito mais rápido. E o melhor: o processo pode ser adaptado para diversos tipos de doença. Basta saber o código genético que se quer produzir.
Os planos da Moderna para o pós-pandemia incluem o desenvolvimento de vacinas para a gripe e para o HIV, causador da aids. Não é tão simples. No caso do vírus da gripe, o desafio é manter-se atualizado com as mutações. Por possibilitar uma fabricação mais rápida, a vacina de RNAm pode levar a uma eficiência maior.
Quanto ao HIV, o vírus tem uma habilidade ímpar de se disfarçar para fugir do sistema imune. A dificuldade é achar um pedaço dele que funcione a contento para ensinar o corpo a combater a síndrome.
Mais para a frente, há esperança de que haja vacinas até contra o câncer. “Todo câncer é diferente porque eles surgem em parte de mutações genéticas, e as mutações podem variar muito de um tumor para outro. Cada pessoa tem o seu tumor”, disse John P. Cooke, cientista do Hospital Metodista de Houston e especialista na tecnologia de RNAm, ao site de notícias de saúde Healthline.
“Cientistas usando RNAm para tratar um câncer fariam o sequenciamento de um tumor e procurariam proteínas peculiares em sua superfície, que pudessem instruir o organismo a atacar”, ele disse. “Com o RNAm, é possível personalizar as vacinas de câncer.”
Segundo artigo da Harvard Health Publishing, da Escola de Medicina de Harvard, as vacinas de RNAm estão sendo testadas hoje para os mais diversos agentes infecciosos, como ebola, zika, influenza. No caso do câncer, já há progressos com os melanomas. Em tese, a tecnologia de RNAm poderia também “ensinar” o corpo a produzir proteínas ausentes em pessoas com certas doenças, como fibrose cística, anemia e diabetes (em vez de injetar insulina, inserir um código que ensine as células a produzi-la).
O fato de existirem tantas linhas de pesquisa não implica que a Moderna ou a BioNTech farão as próximas descobertas — e se firmarão entre as grandes da indústria farmacêutica. Mas, seja com elas, seja com outras empresas, é bastante provável que essa tecnologia virá.
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