Esses ativos assumem diversas formas, pois podem representar uma grande variedade de coisas, como um valor mobiliário, um ativo real ou qualquer outro bem tangível ou intangível
Marson Cunha*
Os mercados globais estão constantemente sendo inovados. Essa é uma realidade que muitas vezes pode ser difícil de assimilar, porém, não a torna menos real. Empresas de todos os setores e portes atuam de forma proativa (para se manter à frente) e preventivamente (para se manter a par de seus concorrentes) em seus setores.
Os impactos das inovações e seus tipos foram estudados e catalogados para o melhor entendimento do que representam. Inovação disruptiva e inovação sustentável são duas modalidades distintas propostas por Clayton Christensen, acadêmico e consultor americano, autor do livro Dilema do Inovador, uma das principais referências no tema de inovação. Nessa estrutura ele trata de inovação do ponto de vista do mercado. A inovação disruptiva é vista em novos produtos e serviços que fundamentalmente mudam o mercado. Já a inovação sustentável (não confundir com sustentabilidade) é o aprimoramento de produtos e serviços existentes. Os ativos digitais são uma inovação sustentável.
Em outra estrutura, proposta por Rebecca M. Henderson e Kim B, Clark na obra Architectural Innovation: The Reconfiguration of Existing Product Technologies and the Failure of Established Firms, de 1990, os autores tratam de inovação do ponto de vista do produto ou serviço. Entre as formas, consideramos duas específicas: inovação incremental e inovação radical. A inovação incremental trata do refinamento de conceitos existentes, como um aprimoramento de um sistema existente. Já a inovação radical propõe uma nova construção para esse sistema. Do ponto de vista de produto, os ativos digitais são uma inovação radical.
A combinação das visões de mercado e produto constrói o argumento de que os ativos digitais são uma inovação sustentável e radical, trazendo uma nova construção para um produto existente. Simplificando, são uma nova forma de interagir com o que já existe.
Um ativo digital é uma representação digital de um bem existente. Embora tal explicação seja genérica, ela é importante para aclarar sua natureza inovadora. Esse bem já existe em sua forma atual, seja um valor mobiliário (leia-se: um ativo do mercado de capitais), seja um ativo real (imobiliário, infraestrutura ou participação societária) ou qualquer outro bem tangível (arte, carros, vinhos etc.) ou intangível (ingressos, experiências etc).
O ativo digital, na sua forma de inovação sustentável, aprimora a relação existente entre esse bem e o mercado. A representação digital proporciona uma experiencia amplificada por tecnologia. Desconsiderando a tecnologia empregada, essa amplificação gera mais valor e um uso de dados para que se confirme e comunique esse valor. Vale frisar que esses dados já existem, mas atualmente não são adequadamente empregados.
Do ponto de vista de produto, o ativo digital como uma inovação radical traz uma nova construção na forma que interage com o bem real. Novamente, considerando que a tecnologia permite uma relação sofisticada do bem com todos os seus dados, possibilita uma nova construção de produto.
Um ativo digital pode assumir diversas formas, pois pode representar uma enormidade de bens. Tokens de valores mobiliários, tokens imobiliários, tokens não fungíveis (NFTs), entre outros, contam com construções distintas e customizáveis. Todas elas com equivalentes no formato analógico, onde são regradas e orientadas por algum ente regulador. A construção desses bens nesse novo formato que dá início a um ativo digital continua sujeita às regras do bem analógico.
Sua função, como representação digital, é entregar mais valor. Embora a forma dessa entrega varie, a relação com os dados desse bem é uma das principais forças motrizes. Os ativos digitais podem ter maior quantidade e qualidade de dados de forma simplificada, clara e auditável. Isso tudo de maneira constante, permanente e recorrente.
O processo de construção de um ativo digital requer um conhecimento importante sobre os bens contidos. Afinal, um ativo digital é a evolução digital desses bens. Uma maneira cartesiana de construção desse ativo digital é desconstruir o que compõe o ativo real. Se for um valor mobiliário, considere no que consiste esse ativo. Seja uma taxa de juros, sejam as partes envolvidas, o prazo, as garantias, a gestão deste bem, e assim por diante. Com isso, desenhe os elementos e como estes podem ser representados digitalmente.
De forma exemplificativa, um contrato foi concebido para tratar de direitos e obrigações entre partes, assim como lidar com potenciais desvios de conduta (inadimplência, atrasos etc.) A gestão desses componentes foi arquitetada pelas partes e por seus advogados e contam muitas vezes com monitoramentos e uma recorrente entrega de dados. Ter esse processo construído e monitorado de maneira digital, para que o ativo digital tenha acesso aos dados e ao comportamento das partes, pode ser crucial. Consequentemente, um ativo digital que conta com uma construção que contemple esses elementos possui mais valor do que aquele que não tem.
De forma prática, um título de dívida que conta com dados, gestão e monitoramento de forma digital (dados para digestão imediata) tem mais valor do que o mesmo título de forma analógica, mas com os arquivos digitalizados (dados que precisam ser identificados e analisados para ser digeridos). A qualidade do ativo digital faz diferença.
O principal valor de um ativo digital está ligado aos seus dados. Esses dados, construídos conforme explanado, diminuem a assimetria. Tal assimetria cria um abismo entre quem possui acesso aos dados e sabe identificar e analisar e os que não sabem. Isso resulta em menor transparência, liquidez e valor (este último porque o número de interessados com capacidade de superar a assimetria é reduzido).
Os ativos digitais resolvem esse problema. Para cada tipo diferente de ativo digital, hoje existem participantes de mercado com soluções e construções importantes. No mercado imobiliário, a Growth Tech já vem há um bom tempo trabalhando com incorporadoras para construir ativos digitais (leia-se, tokenizar), que são depois vendidos para investidores e consumidores finais. No mercado de arte e colecionáveis, a Faaro atua tanto para organizar e gerir ativos reais e seus dados quanto para conectar esses dados às carteiras de investimento de seus clientes, para que possam auxiliá-los na tomada de decisões em investimentos. Adicionalmente, também atuam de modo a permitir a monetização desses ativos de forma criativa e temporal (pense no direito de uso de imagem de uma gravura que é cedido para uma marca lançar uma coleção de moda). Com dados, as possibilidades aumentam consideravelmente.
Certamente, existem diversas outras iniciativas para ativos reais diferentes. O processo de transição e evolução precisa de maior clareza e visibilidade em cada setor. As oportunidades para cada setor em cada país serão construídas por seus respectivos pioneiros. Estes precisarão contar com pessoas e empresas que enxergam a função que dados com transparência, confiança e rastreabilidade possuem nesta nova metamorfose.
*Marson Cunha é o managing director da Inveniam, Brasil e Peru Lead. Profissional de finanças com vasta experiência na liderança e planejamento de finanças estruturadas, fusões e aquisições e private equity real estate. É alumnus do MBA de Finanças no Insper, turma de 2009.