A falência dessa espécie de bolsa de ativos digitais indica que nenhuma companhia, no ambiente livre e desregulado do mundo cripto, está imune à crise
David Cohen
Se fosse uma personagem de ficção, não poderia haver nome mais apropriado. No mundo real, é apenas um detalhe intrigante que o jovem americano Sam Bankman-Fried, de 30 anos, tenha se tornado, no início de novembro, um “banqueiro frito”.
O problema é que o óleo da fritura que consumiu a FTX, uma espécie de bolsa de valores do mundo das criptomoedas que se supunha valer 32 bilhões de dólares, está respingando e contaminando várias outras empresas do setor.
“A comparação que vem à cabeça é com o Bear Stearns e com o Lehman Brothers”, diz o professor Raul Ikeda, coordenador do curso de Engenharia de Computação no Insper. Os dois bancos investiram muito em créditos hipotecários de categoria duvidosa, enfrentaram problemas de liquidez e sofreram um colapso — que acabou contaminando o mercado financeiro como um todo e deflagrando a crise econômica global de 2007-2008.
Isso não quer dizer que vamos ter outra crise daquelas proporções, uma vez que o mercado de criptomoedas tem alcance bem mais restrito. “Mas há um possível efeito dominó, até porque as instituições que mexem com criptomoedas investem muito umas nas outras”, afirma Ikeda.
As primeiras peças do dominó, aliás, já deram suas balançadas. Na última quarta-feira, dia 17 de novembro, a corretora Genesis suspendeu os saques em reação ao que descreveu como uma quantidade “anormal” de pedidos de retirada de ativos após o colapso da FTX. A plataforma de criptomoedas Gemini Trust, dos bilionários irmãos gêmeos Winklevoss, também suspendeu saques do seu programa de empréstimos. As cotações das principais criptomoedas, a bitcoin e a ether, caíram cerca de 20% na semana após a falência da FTX. E há rumores de que a corretora crypto.com e a bolsa de criptomoedas AAX também estariam em risco.
Definitivamente, este não está sendo um bom ano para as criptomoedas. Se é verdade que o cenário de inflação pós-pandemia, rupturas na cadeia de fornecimento das indústrias e a guerra na Europa atingiu inúmeros setores da economia, notadamente as empresas de tecnologia, o mundo cripto parece ter sofrido um abalo maior. Em maio, quando uma crise de confiança fez com que a suposta moeda estável terra atingisse a suprema estabilidade da morte, o movimento de depuração provocado pelo medo dos investidores reduziu o mercado em dois terços: de um total de cerca de 3 trilhões de dólares, o setor passou a valer cerca de 1 trilhão de dólares.
Por maior que tenha sido o prejuízo, no entanto, ele não ameaçava o âmago do mundo cripto. “O par terra-luna era um mecanismo para fazer com que uma criptomoeda (a terra) se mantivesse estável em relação ao dólar, transferindo a volatilidade para uma moeda associada, a luna. Este mecanismo fracassou”, afirma Ikeda. “Mas representava um projeto que não deu certo. Desta vez, é diferente: a terceira maior bolsa de critpoativos faliu.”
Uma das grandes ironias do colapso da FTX é que seu executivo-chefe, Bankman-Fried, conhecido pelas iniciais SBF, era tido como um dos esteios do mercado. Em maio, em plena onda de pânico dos investidores, ele surgiu como um salvador. Emprestou 485 milhões de dólares à Voyager Digital, uma financeira de criptomoedas, e estendeu uma linha de 400 milhões de dólares de crédito para sustentar a BlockFi, uma plataforma de empréstimo de criptomoedas.
Desconhecido há pouco mais de um par de anos, SBF passou a ser comparado a John Pierpont Morgan, o banqueiro que durante a recessão americana de 1907 organizou uma série de resgates privados por parte de financistas para evitar a quebra de bancos ante a corrida para resgatar os depósitos.
No ápice, em janeiro deste ano, quando estava com 29 anos de idade, sua fortuna pessoal foi estimada pela revista Bloomberg em 26 bilhões de dólares. Sua FTX era afeita a negócios arriscados, de um tipo que é proibido pelas autoridades financeiras nos Estados Unidos: ela atuava no mercado futuro de criptomoedas. Em resumo, os investidores pegavam dinheiro emprestado para fazer apostas sobre o valor futuro de criptomoedas.
Não é que essa modalidade de investimento seja inteiramente nova. Os derivativos são contratos que permitem ao investidor garantir um certo preço no futuro, livrando-o dos riscos de altos e baixos. Eles são um avanço e uma garantia para negócios como aviação — esses contratos protegem a empresa de uma súbita elevação dos preços do petróleo, por exemplo — ou agricultura, em que a falta ou excesso de chuva pode inviabilizar uma colheita.
No mundo cripto, entretanto, o mercado futuro se tornou um instrumento meramente especulativo. Já não é preciso sequer comprar moedas como o bitcoin, o ether ou a dogecoin; você pode simplesmente apostar se elas vão subir ou cair num futuro próximo.
Para atuar mais livremente, SBF fundou a FTX em Hong Kong e, no ano passado, transferiu-a para as Bahamas, onde a regulação lhe era mais favorável (ou seja, havia menos regras). Ele tinha, contudo, uma subsidiária nos Estados Unidos, e fazia lobby para regulamentar alguns tipos de negócio com criptomoedas.
Também neste ponto SBF começou a ficar conhecido. Deu 5 milhões de dólares para a campanha que elegeu o presidente americano, Joe Biden; comprou espaço comercial durante a apresentação do Super Bowl, a publicidade mais cara dos Estados Unidos; foi capa de revistas, personagem de extensas reportagem ou entrevistas em toda a imprensa — e tinha quase 1 milhão de seguidores no Twitter.
Os problemas de SBF começaram no início de novembro, quando um site especializado em criptomoedas, o CoinDesk, teve acesso a um balanço da empresa Alameda Research e reportou que seus ativos — a garantia de solvência da firma — consistiam em grande parte de FTTs, uma moeda criada pela FTX para facilitar negócios em sua plataforma. Isso era um baita problema.
A Alameda foi a primeira empresa que SBF criou, em 2017, em Berkeley, nos Estados Unidos, não muito longe de onde ele morou durante a infância com seus pais, professores de Direito na Universidade Stanford. Ela funciona como uma corretora – cobra uma porcentagem das operações que realiza para os clientes. E depois investe, tanto seus lucros quanto os ativos que custodia dos clientes.
A questão, com qualquer instituição financeira, é que ela precisa ter capacidade de pagar suas dívidas caso algum investidor queira sacar seu dinheiro. Nenhum banco deixa seu dinheiro guardado no cofre à espera do momento em que o cliente resolva sacar. Afinal, eles ganham dinheiro movimentando o dinheiro (dos outros). Em condições normais, eles sabem que uma parcela ínfima dos clientes vai pedir resgate do dinheiro. Portanto, precisam que apenas uma fração do dinheiro seja líquida, ou seja, disponível para devolver aos credores praticamente da noite para o dia.
Ora, se a garantia que uma instituição tem a oferecer caso tenha que devolver o dinheiro dos depósitos é uma moeda que ela própria (ou, no caso, sua irmã) inventou… aí tem algum problema. Quem garante que, quando for ao mercado, esse ativo terá o valor que você definiu? No balanço vazado para a imprensa, o valor total das FTT da Alameda constava como 5,8 bilhões de dólares — quase o dobro do que as moedas valiam a preço de mercado.
Se aquele balanço se apoiava em valores inflados, quem garantiria a solvência das empresas que listavam a FTT como seus ativos? Não só a Alameda era um risco, a FTX também. Com esse raciocínio básico, outro magnata das criptomoedas, Changpeng Zhao, conhecido como CZ, resolveu vender as FTTs que ainda tinha. CZ, principal dono da Binance, a maior bolsa de criptomoedas do mundo, havia sido um dos financiadores da FTX, mas SBF comprou sua parte de volta, pagando com a moeda da firma.
CZ não apenas decidiu vender o que tinha da moeda. Ele postou comentários no Twitter sobre sua desconfiança, e comparou a FTT à falecida luna. Há uma boa dose de suspeitas de que CZ, que há tempos não se dava bem com SBF, tenha enxergado uma oportunidade de fustigar um rival (a FTX está logo atrás da Binance na lista das maiores bolsas de criptomoedas). Há quem vá mais longe e acredite que CZ estivesse por trás do vazamento do balanço da Alameda.
Premeditada ou não, a ação de CZ teve efeito quase imediato. Vários investidores começaram a sacar o que tinham investido em FTTs.
No dia 7 de novembro, quando os saques passaram de 650 milhões de dólares, a FTX parou de honrar os pedidos de retirada. Estava claro que a FTX não tinha liquidez suficiente; e havia uma forte desconfiança de que ela não tivesse solvência — ou seja, não apenas os recursos não estavam disponíveis no tempo necessário, eles possivelmente não estariam disponíveis em tempo nenhum.
Bankman-Fried, segundo relatos de pessoas que ele procurou, tentou convencer financistas a socorrer a FTX. Mas ele precisava de dinheiro demais: 8 bilhões de dólares. Logo, surgiu um salvador: o próprio CZ se prontificou a comprar a FTX.
A esperança não durou um dia. Assim que seus representantes tiveram acesso aos números e planilhas da FTX, ele postou uma mensagem no grupo online que discutia o negócio, segundo apuração do jornal The New York Times: “Sam, desculpe, mas não vamos ser capazes de continuar com o acordo. Problemas demais”.
A partir daí, a crise de confiança virou uma avalanche e a FTX não teve alternativa a não ser pedir falência.
Uma hipótese para a desgraça da FTX é que ela tenha sido vítima de um rival poderoso e astuto, que soube se aproveitar de um momento de fragilidade (ou criou esse momento). Em mensagem aos funcionários da empresa, Bankman-Fried disse: “Provavelmente, eles (a Binance) nunca quiseram de verdade seguir com o negócio”.
Uma outra hipótese é que a FTX tenha exagerado no direito de cometer exageros. Uma bolsa é basicamente um intermediário entre um comprador e um vendedor; sendo assim, não deveria ser fácil levá-la à falência, pois ela apenas conserva os ativos de propriedade dos investidores.
Mas, se a bolsa opera alavancada, permitindo que os clientes comprem “na margem”, apenas apostando na alta ou na baixa de uma criptomoeda, ou se ela usa os recursos em sua custódia para aplicar em outros lugares…
Aparentemente, isso ocorreu: a FTX cedia recursos à Alameda para que investisse — e aqui vale novamente a analogia com Lehman Brothers e Bear Stearns, porque ela investiu mal.
Em princípio, não poderia haver ligação entre as empresas. Mas parece que SBF jamais se afastou inteiramente da Alameda. Ele colocou na presidência da empresa uma moça de 20 e poucos anos que tinha apenas um ano e meio de experiência em corretagem (e ainda assim era uma das pessoas que mais entendia no assunto entre todo o pessoal). Esta moça, Caroline Ellison, tinha ou teve um romance intermitente com SBF. Mais que isso, os dois, e outra meia dúzia de executivos da FTX, moravam num espaçoso apartamento nas Bahamas, supostamente no estilo de vida de poliamor — algo que não deveria ser da conta de ninguém além dos envolvidos, mas que toca em questões como a relação entre duas empresas que potencialmente traz conflitos de interesses.
O resultado da confusão ainda não é definitivo, mas está razoavelmente claro. Em entrevistas nos últimos dias, SBF disse que ainda tenta levantar dinheiro para pagar os clientes da FTX. Isso será, contudo, uma tarefa quase impossível.
Ele admitiu que tentou abraçar mais atividades do que deveria, que sua empresa estava mais alavancada do que deveria; até admitiu que entrar em conflito com CZ não foi muito esperto de sua parte.
As empresas que a FTX tinha salvado da crise de maio voltaram ao ponto inicial, com poucas chances de sobrevivência. Outras podem sucumbir nesta nova e mais renitente crise de confiança. Agora vai acontecer o que acontece nas grandes crises — na Argentina, na crise do subprime: quem está bem calçado sobrevive, os demais viram vítimas da depuração do mercado.
Bankman-Fried era um desses agentes do mercado de criptomoedas com vários ideais. Mesmo bilionário, levava uma vida simples, dizia dormir em saco de dormir ao lado do computador, andava de bermuda e camiseta; era atuante num movimento de filantropia “efetiva”, que buscava doar dinheiro para causas em que ele fizesse mais diferença. E prometeu que um dia doaria toda a sua fortuna.
Bem, essa última promessa ele já está em vias de cumprir. Só não está se livrando dela da forma que imaginou.