Como um cubo de tungstênio de quase uma tonelada se tornou o símbolo da devoção de um grupo de investidores em criptoativos
David Cohen
O mercado das criptomoedas tem enormes semelhanças com uma religião. Para começar, tem o seu profeta: Satoshi Nakamoto, o misterioso escriba incógnito do artigo de 2008 que deu base para a criação do bitcoin. Tem também seus ritos esotéricos, que envolvem a compra de moedas em corretoras e, para os mais intrincados nos ritos de iniciação, uma operação de mineração de moedas via computadores (hoje em dia, megacomputadores). Em terceiro lugar, tem um evangelho que confere sentido a todas as ações no mundo cripto, uma espécie de elo espiritual que atende pelo nome de blockchain (a cadeia de transações virtuais que substitui a autoridade central para validar os negócios).
Finalmente, como toda religião que se preze, há as seitas dissidentes: a partir do credo original no bitcoin, o mundo já conta hoje com cerca de 9.000 criptomoedas de todos os tipos. Uma das mais recentes é o maricoin (brincadeira com a palavra maricón, termo para designar homossexuais em espanhol), criado no bairro Chueca, em Madri, que desde o 1º dia de 2022 pode ser utilizado para pagar contas em algumas dezenas de estabelecimentos amigáveis à comunidade LGBTQ em cidades da Espanha (quem sabe, mais para a frente, do mundo todo).
A religião tem inclusive um efervescente mercado de amuletos, as NFTs (do inglês non-fungible tokens, ou símbolos não fungíveis) — basicamente um código digital que pode ser um áudio ou imagem ou vídeo que, ao contrário das criptomoedas, não é fungível, ou passível de troca.
Só faltava mesmo haver um monumento, algo como a Caaba, em torno da qual os muçulmanos dão voltas em sua peregrinação a Meca, ou o Gólgota, em Jerusalém, onde supostamente Jesus foi crucificado. Não falta mais.
No início de novembro de 2021, um cubo de tungstênio se tornou o símbolo da devoção dos investidores em criptomoedas. A peça, de 37 centímetros de cada lado (um cubo com os lados mais ou menos do tamanho da tela do seu computador), pesa quase uma tonelada. Foi arrematada em leilão por 56,9 ethers (a segunda criptomoeda mais valiosa desse universo, da plataforma de blockchain Ethereum), ou cerca de 250.000 dólares, na cotação do dia.
O cubo, em princípio, nem sairá do lugar. Ficará numa sala da empresa Midwest Tungsten Services (MTS), que o construiu. O que os compradores levaram foi um NFT, um código armazenado em blockchain que assevera a posse do objeto. Ah, sim, com uma imagem em gif do cubo.
Mais ou menos como a Caaba, os novos proprietários do NFT terão direito a visitar seu cubo, na empresa, uma vez por ano, quando poderão tocá-lo e fotografá-lo. Serão as únicas pessoas do planeta com autorização para entrar na sala. Se o NFT que certifica a propriedade do bloco for vendido, os novos proprietários só poderão visitá-lo no ano seguinte. Se o NFT for destruído pelo dono (o termo usado nesses casos é “queimar”), a empresa deve ser alertada com antecedência para que o proprietário encontre um modo de levar o cubo embora.
O leilão foi a culminância de um processo iniciado no dia 12 de outubro de 2021, quando um comentário jocoso no Twitter entre os fiéis da comunidade cripto levou a um pico de interesse em cubos de tungstênio. Há alguns anos, essas peças do metal são vendidas como lembrança de fim de ano, um curioso objeto de decoração, às vezes com inscrições da empresa para seus clientes.
Aos poucos, os pequenos cubos foram ganhando importância para os aficionados do mundo digital em geral, e para os criptos em particular. A palavra tungstênio significa pedra pesada, em sueco. Sua densidade é 70% maior que a do chumbo (e praticamente igual à do ouro). O metal, descoberto em 1783, foi a princípio chamado de Wolfram (como ainda é denominado nos países nórdicos e de onde vem seu símbolo na tabela periódica, W). É o mais resistente de todos os metais e só se funde a mais de 3.400ºC. Todas essas características transformam os pequenos cubos em objetos peculiares.
Alguns fãs afirmam que segurar um cubo feito desse material traz vibrações positivas; outros dizem que tocá-lo evoca a sensação de levantar o martelo do deus nórdico Thor, ou retirar a espada do rei Arthur da pedra em que estava encravada. Também é comum que investidores digitais atribuam aos cubos a qualidade de mantê-los focados, um contraponto físico (exageradamente físico, dada sua densidade extraordinária) às suas experiências virtuais.
Há até quem os considere um objeto mágico capaz de induzir uma revelação. “É louco, você pensa que vai ser leve, mas é tão pesado”, disse Meltem Demirors, chefe de estratégia da CoinShares, uma assessoria de investimentos digitais, ao site NBC News. Após ter segurado um cubo de tungstênio pela primeira vez na vida, em outubro do ano passado, ela tuitou que sua vida “mudou para sempre”.
Outra explicação, menos pomposa, é que a fascinação revele apenas o comportamento de manada de uma comunidade ansiosa por criar sentido para um mercado essencialmente etéreo, irreal — mas com a incrível possibilidade de transformar seus crentes em milionários.
Um dos primeiros colecionadores desses cubos foi Nic Carter, sócio de uma firma de investimentos com base em blockchain, a Castle Island Ventures, que os comprava para si mesmo e para dar de presente. “Nós lidamos com commodities sintéticas e NFTs, que têm valor financeiro, mas são completamente etéreas”, afirmou à revista GQ. “Então, é bom voltar aos átomos.”
Tudo caminhava normalmente, como um objeto de desejo restrito a um pequeno nicho, quando Neeraj Agrawal, diretor de comunicações da CoinCenter, uma entidade sem fins lucrativos que promove a adoção de moedas virtuais, fez um comentário no Twitter sobre uma “escassez global de tungstênio”. A mensagem, amplificada por Carter e outros, virou o estopim de uma corrida aos objetos de metal.
De repente, a MTS, uma empresa de Willowbrook, subúrbio de Chicago, no estado de Illinois, se viu em meio a uma onda de pedidos. Como numa profecia autorrealizada, em um mês sua receita da venda de cubos subiu 700% — e o estoque que anunciava na plataforma da Amazon ficou zerado. O serviço, que respondia por menos de 15% da receita da companhia, passou a quase metade, de acordo com a revista Fortune.
A MTS existe desde 1958. Produz materiais com metais raros como tungstênio, tântalo e molibdênio, na forma de escudos contra raios X, placas para uso industrial, lastros para carros de corrida e aeronaves (a Nasa é um de seus clientes), eletrodos para fundir metais e outras peças. De uma hora para outra, estava com 15 trabalhadores temporários ajudando a embrulhar cubos para entrega.
A venda de cubos começou em 2015, quando a empresa viu que outras firmas vendiam o produto. Os preços variam de 30 dólares, por um cubo minúsculo (1 centímetro cada lado) até 3.500 dólares, para cubos com 4 polegadas de cada lado. Mas aquela procura, eles jamais tinham visto.
Havia notícias na mídia, e a comunidade interessada em criptomoedas no Twitter não deixava o assunto morrer. Foi então que o diretor de comércio eletrônico da empresa, Sean Murray, teve a ideia de fazer um gif, uma imagem animada de um cubo de tungstênio, depois um NFT que representava um cubo muito maior, de quase uma tonelada, o máximo que conseguiriam produzir. E colocou o certificado à venda no site de leilões OpenSea, com lance mínimo de 200.000 dólares (em ethers), o tanto que custaria produzir um objeto daqueles.
O site do leilão ficou parado por vários dias, segundo o site de notícias The Verge. De repente, nas horas finais de oferta, um grupo anônimo chamado TungstenDAO fez seu lance — que foi o preço final da venda. DAO são as iniciais em inglês de organização descentralizada autônoma, um tipo de entidade para cooperação entre pessoas — vá lá, chame de empresa, se quiser —, cujas regras estão inscritas… já adivinhou?, sim, claro, num blockchain.
O grupo afirmou que se estabelecerá como um estúdio experimental de incubação de memes, para “juntar uma coleção de bens que tenham alto potencial de virar memes, e então criar conteúdo que reforce seu significado social”. Faz sentido, de acordo com James Vincent, do The Verge. Num mundo em que a atenção cria valor (como demonstram o sucesso assombroso de Google e Facebook), uma fábrica de memes pode ser a evolução natural das criptomoedas e dos NFTs.
Como em qualquer religião, o sucesso das criptomoedas depende da legião de fãs. E elas estão vindo. Ou, pelo menos, estão vindo em grande número os candidatos a sacerdote.
Diversos executivos e engenheiros de empresas digitais como Google, Amazon e Apple têm largado seus bem remunerados empregos para abraçar o que consideram ser uma dessas oportunidades únicas na vida. Enxergam na onda cripto as mesmas características do início da era dos computadores e do início da internet: uma tecnologia primeiro ridicularizada, em seguida adotada em larga escala (e tornando milionários os que a adotaram no início). Claro, também há paralelos possíveis com a bolha da internet na virada do milênio ou os investimentos em dívidas subprime que provocaram a crise mundial de 2007-2009; ou mesmo com a febre das tulipas, a famosa bolha no mercado holandês do século XVII.
Seja como for, os investidores estão animados. Aplicaram mais de 28 bilhões de dólares em startups de criptomoedas e blockchain em 2021, quatro vezes mais que no ano anterior, de acordo com a firma de análises de investimentos PitchBook, citada pelo jornal The New York Times. Desse total, mais de 3 bilhões de dólares foram para companhias especializadas em NFTs.
Em dezembro de 2021, o chefe de finanças da empresa de transporte por aplicativo Lyft, Brian Roberts, pediu demissão para se unir à startup de criptomoedas OpenSea. “Já vi suficientes ciclos e mudanças de paradigmas para perceber quando algo tão grande está emergindo”, disse ao New York Times. Um mês antes, Jack Dorsey, um dos fundadores do Twitter, deixou o posto de executivo-chefe da empresa para se dedicar à empresa de pagamentos Square —’ que em seguida rebatizou de Block, uma alusão, entre outras coisas, ao blockchain. Dorsey andou, inclusive, brincando com a ideia de que o novo nome é uma alusão aos cubos de tungstênio.
Não há uma estatística de talentos que migram para o cripto, mas a sensação é tão forte que o Google, segundo alguns relatos, começou a oferecer bônus em ações adicionais para funcionários das áreas mais visadas pelo novo setor. Talvez seja pouco. Essa turma é movida pelos acrônimos Yolo e Fomo: you only live once (você só vive uma vez) e fear of missing out (medo de ficar de fora). Conhecem histórias de milionários o suficiente para quererem arriscar.
Nem é só ganância. Há, também, a atração ideológica. A crença é que o blockchain seja capaz de criar uma internet mais diversificada, porque a tecnologia prescinde do tipo de controle que faz a fortuna de grupos como o Google e o Facebook. Sem falar nas perspectivas libertárias que o blockchain abre: a possibilidade de prescindir de autoridades centrais, ou seja, menos dependência da burocracia estatal.
Não é que não haja riscos. Se, de um lado, autoridades centrais são propensas ao estabelecimento de castas com acesso ao poder, à corrupção e à lentidão associada aos mecanismos da burocracia e da regulação, de outro lado o blockchain pode levar a problemas de falsa identidade, transações falsas, fraude na entrega de bens, problemas técnicos em sites de armazenamento ou mesmo a chance de falência de algum site que detenha o histórico de transações. De qualquer modo, esse alvorecer revolucionário tem apelo para muita gente.
O recado que se pode tirar deste movimento em direção ao tungstênio, no entanto, é essencialmente positivo. Se há uma coisa chamada comoditização, a capacidade de unir economias de escala e avanços tecnológicos para baratear os produtos e ganhar mercado, o que esses cubos no final das contas demonstram é que o processo oposto é ainda mais fantástico: a capacidade de sacralizar objetos, engendrar a escassez… e criar mercados.
Tanto assim que os cubos já podem até estar ameaçados. A MTS, por exemplo, já está expandindo sua coleção de objetos. O primeiro dos novos designs é uma pirâmide de tungstênio.
Uma pirâmide. Para o bem de todo o metaverso de pessoas que investem em criptomoedas, vamos torcer para que a forma não tenha nada a ver com a essência desse mercado.