Realizar busca

Quando a internet começou a se popularizar, no início da década de 1990, o clima era de otimismo. Havia a ideia de que, com ela, seria possível finalmente democratizar os meios de comunicação, criando um espaço em que todos poderiam circular livremente, ter acesso a informações antes restritas para poucos e, sobretudo, poder se fazer ouvir sem precisar da mediação dos grandes meios de comunicação.

 

Mas não foi bem isso que aconteceu, afirma Rodolfo da Silva Avelino, professor do Insper e autor do livro Colonialismo Digital, publicado no ano passado pela editora Alameda. “Privatizaram a internet”, diz Avelino. Segundo ele, a rede mundial de computadores opera hoje em uma lógica colonial, em que algumas poucas potências — as big techs — exploram o espaço online em proveito próprio, utilizando dados sobre comportamentos das pessoas coletados a cada instante e em volumes cada vez maiores nas redes digitais. 

 

Para Avelino, o avanço de ferramentas baseadas em inteligência artificial, em lugar de ser uma disrupção, tende a piorar esse cenário. “A IA vai ampliar cada vez mais essas diferenças entre quem tem o poder e quem é submisso aos modelos criados por essas grandes corporações”, afirma. Veja mais na entrevista a seguir.

 

Como surgiu esse conceito de colonialismo digital?

 

No meu doutorado, eu tentava compreender como uma grande economia com base em dados pessoais acabou se consolidando em pouco tempo e como nosso comportamento nas redes digitais acabou servindo de insumo para que as empresas, hoje chamadas de big techs, construíssem esse modelo de negócio. Já existiam pesquisadores que tentavam entender esse fenômeno como colonialismo de dados ou capitalismo de vigilância. Mas, para mim, ia além da coleta de dados. Tem uma coisa muito mais ampla, não é só calcada na vigilância. Essas empresas formaram um oligopólio em extração de comportamento a ponto de conseguirem interferir em processos democráticos. Foi um pesquisador sul-africano chamado Michael Kwet que estava pensando na mesma perspectiva que eu sobre o colonialismo digital, e pensei: “é isso”. 

 

 

Você poderia dar um exemplo de como essa prática colonial acontece?

 

Empresas que no início eram só de aplicação se tornaram plataformas gigantescas. Um exemplo é o Google, que era só uma ferramenta de buscas e que, com o tempo, começou a comprar empresas de IA, empresas de georreferenciamento. Hoje eles são donos da maior plataforma de entretenimento gratuito da internet, o YouTube, e de e-mail, com o Gmail. Eles têm um dos navegadores mais usados do mundo e o sistema de celular mais usado, que é o Android. Buscar a internet é usar o Google, ele indexa diariamente uma vasta quantidade de sites. Eles têm um poder muito grande de tecnologia e de publicidade, além do próprio Google Ads. As empresas e o marketing trabalham em torno das ferramentas do Google para divulgar suas marcas. Ou seja, eles construíram uma plataforma com várias ferramentas com o objetivo de coletar dados e modular comportamentos. Minha perspectiva do colonialismo digital é essa: como as tecnologias digitais são operadas por um pequeno oligopólio de empresas que se usam de práticas centenárias coloniais para manter seu modelo de negócio e influenciar democracias, influenciar relacionamentos...

 

 

 

Como saímos daquela visão utópica sobre a internet como um espaço livre para essa oligarquia das big tech?

 

Já no começo, os principais mentores que estavam dentro das corporações entendiam que a internet poderia ser uma grande ferramenta que potencializaria sobretudo o marketing. Obras publicadas em 1995 já trabalhavam a perspectiva do aprisionamento tecnológico: criar sistemas em que as pessoas dificilmente saíssem, criar ambientes cercados. Desde o início, então, já havia essa perspectiva de coletas dos dados para uso no marketing e propaganda. O que foi vendido como uma possibilidade democrática, como um canal de comunicação em que qualquer pessoa podia ter um blog, em pouco tempo caiu. Não tem mais blog, as plataformas fizeram com que elas mesmas fossem o canal das pessoas. Hoje, você entra na plataforma social e dificilmente sai para um site externo. A tendência é que você fique cada vez mais para que elas coletem cada vez mais dados e muito mais sobre seu comportamento.  

 

 

A introdução de novas ferramentas baseadas em IA pode ajudar a quebrar esse monopólio?

 

A IA, para que você tenha uma tecnologia funcional, exige dados. Se pensarmos que desde o início da internet quem acumula dados — seja em fotos, mensagens e textos — é esse grupo de empresas, então a concorrência para uma nova empresa entrar e conquistar grandes bases de dados é muito difícil. Quem está sendo, talvez, uma pedrinha no sapato são os chineses, que conseguiram atingir um público jovem, como a ByteDance, com o TikTok. Mas a fatia de mercado da China é ainda tímida — e, em todo caso, essas empresas seguem a mesma lógica colonialista. Até encontramos soluções alternativas, mas faltam recursos. Precisamos de infraestrutura — porque tudo que você acessa está hospedado em datacenters. Os Estados Unidos têm mais de 2.700 datacenters, a capacidade deles de infraestrutura é muito maior, por exemplo.

 

 

E essa infraestrutura também está concentrada nas mãos de poucas empresas?

 

A internet é organizada basicamente em camadas: a de conteúdo, que é onde o usuário interage; a de provedores da internet; e a infraestrutura de telecomunicações, que é o que faz a internet como um todo rodar. As big techs começaram a comprar as camadas de baixo. O Google atua nas três camadas, do varejo à infraestrutura, e a Amazon é a mesma coisa. Eles têm projetos de satélite para entregar internet do espaço, assim como a Meta. Então a prática colonial se dá com essa apropriação de todas as camadas da internet. E é por isso também que a IA vai ampliar essas desigualdades, porque quem tem a capacidade de desenvolver tecnologias de alto desempenho são as empresas que possuem dados, infraestrutura. E, aliás, é muito difícil encontrar isso fora dos Estados Unidos. No Brasil, por exemplo, não temos nenhum computador quântico capaz de executar tarefas de pesquisas complexas. Então, quando temos alguma pesquisa em universidade brasileira, temos que usar a infraestrutura dessas empresas, que fornecem como um serviço. 

 

 

Quais as implicações disso para nossa capacidade de inovar?

 

A inovação é muito confundida como sendo aplicativo — mas o APP só funciona porque existe uma infraestrutura da qual ele depende. A IA vai ampliar cada vez mais essas diferenças entre quem tem o poder e quem é submisso aos modelos criados por essas grandes corporações, que têm de fato a infraestrutura necessária para criar essa inovação. Então não existe inovação nos países subdesenvolvidos tecnologicamente — o que vai restar dessa fatia de mercado é consumir os dados que essas empresas fornecem para que o nosso APP funcione. Por exemplo, um APP de mobilidade, para funcionar, precisa consumir a nuvem do Google. São pessoas, empresas e Estados nas mãos dessas empresas.

 

 

Diante desse cenário, quais seriam possíveis saídas?

 

A regulamentação, que é o que muitos Estados vêm tentando fazer, não resolve tudo, mas pode mitigar alguns dos problemas. Mas é importante a gente rever o processo de construção dessas grandes corporações, e é o que meu livro traz. A maior parte dessas empresas foram financiadas por fundos de Estado, governos. E o Estado é fundamental dentro dessa perspectiva de rompimento de dependência, não só em promover um ambiente de investimento interno local para que novas empresas surjam, mas também na questão de investimento em infraestrutura. Os poucos datacenters que estão sendo projetados no Brasil, por exemplo, são de empresas como Microsoft e Amazon. Não ajuda em nada. Acho que o governo precisa fomentar alternativas de infraestrutura, propor linhas de crédito, para que pelo menos os serviços sociais sejam hospedados dentro de uma estrutura soberana. 

 



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