Autores, pesquisadores e representantes do terceiro setor participaram do lançamento do livro Ciência da Primeira Infância, do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (CPAPI). O evento, realizado no dia 26 de maio, no Insper, evidenciou o tamanho do desafio para o Brasil. Ao mesmo tempo em que diversas políticas públicas se consolidaram, as populações mais vulnerabilizadas ainda não têm acesso integral a saúde, educação e assistência, pilares do desenvolvimento da primeira infância. Todos os convidados reforçaram a importância das evidências científicas e da avaliação de impacto na implantação de políticas públicas. O ebook pode ser baixado gratuitamente neste link.
O professor Sérgio Lazzarini, vice-presidente acadêmico do Insper, destacou a relevância do tema e a interdisciplinaridade do projeto, dois aspectos que são essenciais nas atividades da escola. “É difícil imaginar um tema mais relevante, porque os estudos têm mostrado consistentemente que a primeira infância tem muito impacto no desenvolvimento humano futuro”, disse Lazzarini. “E fiquei surpreso ao ver a quantidade de pesquisadores e pesquisadoras de áreas distintas do conhecimento colaborando nesse tema. Tenho certeza de que o livro vai reforçar e condensar vários ensinamentos.”
Organizador da obra, o economista e professor do Insper Naercio Menezes Filho, ressaltou que este é um dos primeiros livros que abordam aspectos científicos da primeira infância. “Cada capítulo faz uma revisão dos achados mais recentes e importantes de cada uma das áreas, cobrindo a importância do sono, nutrição, cuidados nos primeiros meses de vida, epigenética, desigualdade, parentalidade e efeitos adversos na primeira infância e fechando com políticas públicas intersetoriais para a primeira infância”, disse Menezes.
A primeira mesa, “Múltiplos olhares para a primeira infância”, começou com o depoimento da nutricionista Juliana Araujo Teixeira, professora da Universidade de São Paulo (USP). Coautora do capítulo sobre os impactos da alimentação e da nutrição no desenvolvimento infantil, ela lembrou que a formação da criança depende do período pré-concepcional e dos hábitos da mulher que gesta. Depois do nascimento, o contato pele a pele, a amamentação na primeira hora de vida, a amamentação exclusiva até os seis meses de idade e continuada até os dois anos de idade ou mais são fundamentais para a saúde e o desenvolvimento da criança.
O livro também discorre sobre a importância da segurança alimentar. “Por motivos óbvios, uma família em insegurança alimentar não é incapaz de prover o que aquela criança precisa de alimentação”, disse Juliana. Apesar das evidências em relação à importância da amamentação e da alimentação, o desafio brasileiro continua enorme. Na década de 1970, por exemplo, as crianças menores de 2 anos eram amamentadas, em média, por apenas dois meses e meio. A taxa aumentou nas décadas seguintes para 14 meses em decorrência de políticas públicas de apoio à amamentação, da ampliação da licença-maternidade e da regulamentação de alimentos para lactantes. Mesmo assim, esse aumento está desacelerando. Dados indicam que 81% das crianças entre 6 e 23 meses consomem alimentos ultraprocessados regularmente, em detrimento de alimentos saudáveis e nutritivos.
O neurocientista Fernando Louzada, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), é coautor do capítulo sobre sono e desenvolvimento infantil. Usando os despertadores como alegoria de “ladrões de sono”, ele disse que, diante do estresse da vida moderna, as pessoas estão dormindo mal e menos, com consequências para a saúde mental. “As crianças não passam ilesas a isso”, afirmou. O livro tenta convencer o leitor de que o sono é importante para o sistema imunológico, o metabolismo energético, a cognição, a memória e a regulação emocional.
O tempo de sono esperado tem grande variabilidade. Segundo Louzada, as crianças nascem com padrões muito distintos de sono e começam a exibir um padrão semelhante ao dos adultos somente dos 3 aos 10 anos. “É difícil falar o que é normal e o que não é normal no sono da criança em função dessa variabilidade”, disse o neurocientista. Uma maneira de saber se a criança está dormindo bem é observar o período de vigília – como ela se comporta quando está acordada. No capítulo, são apresentados alguns instrumentos para avaliação simples do sono e alternativas para melhorar o repouso da criança, que passam por rotina de alimentação, higiene, comunicação e contato físico.
O psicólogo e professor da USP Rogerio Lerner apresentou o capítulo sobre desenvolvimento infantil e parentalidade, do qual é coautor. O tema é abordado a partir da perspectiva da capacidade humana de aprender (cognição) e de lidar com relações e sentimentos, entre outras. O desenvolvimento infantil inadequado pode dificultar as transformações que se dão ao longo da vida da pessoa, com sequelas como dificuldade de aprendizagem e de relacionamento familiar, drogadição e violência. Simultaneamente, existem fatores de risco para a parentalidade, que também está sujeita a experiências mais ou menos favoráveis.
“A gente sempre trabalha no sentido de perceber o sofrimento, para chegar a ele e encontrar uma maneira de minimizá-lo e tornar possível a superação das suas ocorrências”, disse Lerner. O livro trata, brevemente, de questões ligadas à depressão e sua influência sobre a parentalidade, principalmente entre as mulheres, e menciona alguns instrumentos para avaliar a qualidade da interação entre mães e bebês e práticas de parentalidade. A caderneta da criança – documento no qual são registradas informações da criança desde a alta hospitalar até os 9 anos – é citada como instrumento de fortalecimento da parentalidade positiva, uma prática fundamentada no afeto e no respeito mútuo entre adultos e filhos.
Psicóloga e professora da USP em Ribeirão Preto, Maria Beatriz Martins Linhares falou das experiências adversas da infância e suas consequências para o desenvolvimento. A coautora do capítulo e pesquisadora principal do CPAPI lembrou que esse é um tema espinhoso, que leva ao ciclo intergeracional de violência. Experiências adversas em mulheres têm impacto negativo na relação parental depois que elas se tornam mães e precisam cuidar de crianças. “Têm a ver com as violências física, psicológica e sexual, as negligências, os conflitos familiares, a separação, os problemas de saúde mental, a criminalidade e o alcoolismo”, disse Maria Beatriz.
A questão da violência é um problema global e perpassa diferentes níveis socioeconômicos. Maria Beatriz citou um dado do “Anuário Brasileiro de Segurança Pública” que revela que 94% dos crimes de maus-tratos contra crianças e adolescentes são cometidos por um familiar. “Não podemos ter a infância roubada; nós precisamos ter uma infância protegida”, disse a psicóloga. “Quando você identifica fatores de adversidade na infância, é preciso romper esse ciclo. No capítulo, a gente trabalha um pouco com a questão das estratégias de prevenção. Há vários estudos sobre os impactos positivos para quebrar esse ciclo intergeracional.”
A puericultura é um dos pilares da atenção à saúde da criança, pois busca o acompanhamento contínuo do desenvolvimento e do crescimento. Conforme a enfermeira Débora Falleiros de Mello, professora da USP em Ribeirão Preto e coautora do capítulo sobre puericultura, esse processo garante a vigilância do desenvolvimento infantil desde o nascimento. “Os estudos apontam que a regularidade do acompanhamento oferece mais oportunidades para o cuidado integral”, disse Débora. Portanto, se o profissional de saúde estiver mais próximo das famílias, aumentam as oportunidades de avaliar a criança e agir adequadamente.
Entretanto, alertou Débora, as pesquisas também apontam que a vigilância do desenvolvimento infantil está acontecendo de modo precário, com pouca análise dos marcos do desenvolvimento infantil e orientações escassas às famílias sobre os estímulos adequados para cada fase da criança. “No capítulo, a gente abordou alguns desafios para o cuidado integral, discutindo a necessidade de incrementar a vigilância no desenvolvimento infantil e de fortalecer a atenção primária em saúde e a educação permanente em saúde, para que os profissionais de saúde realizem uma puericultura mais eficaz”, disse a enfermeira.
A educadora, escritora e psicanalista Janine Rodrigues, fundadora da edtech Piraporiando, mediou a segunda mesa, “Ciência da primeira infância e política da primeira infância”. Ela instigou os convidados a comentar a importância da pesquisa e dos dados para as políticas públicas e quis saber o que pode ser feito para ajudar os familiares a compreender a origem das informações científicas. “Quando a criança está brincando de ser pesquisadora, o que a gente está fomentando no imaginário sobre a importância da ciência?”, indagou Janine.
Para Mariana Luz, CEO da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal e autora do prefácio do livro, a crise em questões de políticas públicas e evidências científicas exige urgência da academia e da sociedade. “A gente tem 55% das crianças na pobreza, e esse número está aumentando de um ano para o outro”, disse. Trata-se de 18 milhões de crianças no Brasil. Os dados indicam ainda o crescimento da violência contra bebês e crianças até 4 anos. Mariana acrescentou o problema da violência aos três pilares intersetoriais da primeira infância (educação, saúde e assistência).
“Não existe desenvolvimento se existe violência”, disse Mariana. “O racismo é uma das formas mais violentas de se criar traumas e processos contra o desenvolvimento pleno da criança. A gente precisa fazer com que todas as crianças que estão nascendo já tenham uma atitude antirracista. As políticas públicas e as evidências precisam ser o caminho. O empoderamento de cada mãe, de cada pai e de cada responsável pela criança vai fazer a gente avançar.”
Priscila Cruz, cofundadora e presidente-executiva da organização Todos pela Educação, reconheceu os avanços em políticas para a primeira infância, mas mostrou-se preocupada com o contexto atual de desmoronamento das democracias e dependência da tecnologia móvel. “A política para a primeira infância, para a criança que mais precisa, só acontece em democracias”, disse. “Essa situação de proliferação das telas, que vem emburrecendo e aumentando a ansiedade das crianças, está terceirizando o cuidado das crianças, que seria dos pais, das escolas ou das creches, para as telas.”
Enquanto se expande o uso da inteligência artificial e das redes sociais, aumentam a pobreza, a desigualdade, o racismo e o negacionismo científico, argumentou Priscila: “As condições são mais difíceis para a população de maior vulnerabilidade, e a gente vai errar se fizer política pública pensando como nos anos 1990. A elite econômica e acadêmica tinha que radicalizar a mobilização e a junção de forças pela primeira infância. Ou a gente cria uma estratégia poderosa e radical de mudança desse tratamento da primeira infância, investindo no humano, ou as crianças que estão nascendo ou vão nascer daqui a pouco serão da renda mínima, não terão trabalho e viverão de um jeito precarizado”.
Diante das explanações dos sete convidados, Naercio Menezes enfatizou a riqueza de tópicos do livro. “A ciência pode ajudar no desenvolvimento das políticas”, disse. “Há 30 anos, quando comecei a fazer pesquisa, a mortalidade infantil no Brasil estava muito acima da taxa dos outros países. De lá para cá, a situação melhorou bastante. E as avaliações ajudam a solidificar as políticas. Muita gente era contra o Bolsa Família, mas as avaliações e os artigos científicos mostram que as mulheres não deixam de trabalhar ou têm mais filhos porque recebem o auxílio. Por que ninguém tem coragem de acabar com o programa? Por causa das evidências, que criaram um consenso.”
Na opinião de Menezes, é preciso comedimento na urgência e na radicalização das políticas públicas, algo que também foi defendido por Fernando Louzada. “A gente tem que entender que, às vezes, as coisas demoram a ser assimiladas pela população”, disse. “A política da primeira infância precisa agir na educação, na creche, na transferência de renda, no saneamento básico, na moradia, na justiça, na saúde. São várias políticas ao mesmo tempo. Então, torna-se um pouco mais difícil de mobilizar.” Esta é uma das intenções do livro em relação à primeira infância, complementou Menezes: por meio da evidência científica, expor o conjunto de políticas públicas para que a população as apoie e que ninguém tenha coragem de extinguir.