Com o aquecimento global, os incêndios florestais tendem a se tornar mais frequentes globalmente — inclusive no Brasil, que abriga, ainda, uma das maiores florestas do planeta. Além de devastar a fauna e a flora, os incêndios causam graves impactos na saúde, afetando até mesmo regiões distantes de onde ocorre o fogo. Nesse contexto, políticas e estratégias de gestão são essenciais. Com essa premissa, o Centro de Estudos das Cidades – Laboratório Arq.Futuro do Insper, promoveu o seminário “Princípios e estratégias para uma paisagem integrada: Gestão de incêndios por meio de governança colaborativa”, em 29 de junho.
Mediado por Rafael Gioielli, doutor em Ciências pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e conselheiro do Projeto Cidade + 2 Graus, do Centro de Estudos das Cidades, o evento contou com Tiago Oliveira, doutor em Engenharia Florestal e presidente da Agência para a Gestão Integrada do Fogo Rural (AGIF), em Portugal, e Paulo Saldiva, patologista e professor da Faculdade de Medicina da USP, além de coordenador do Observatório de Saúde Urbana doLaboratório Arq.Futuro do Insper. Ao longo do encontro, os participantes compartilharam suas experiências em torno da gestão e da análise do impacto dos incêndios nas florestas.
Gioielli destacou a complexidade da governança dessas ocorrências, afirmando que “o uso do fogo envolve diversos atores da comunidade, desde o individual e doméstico até o econômico e industrial.” Ele citou o exemplo de Tomé-Açu, no Pará, onde a queima de lixo e o preparo do solo para o cultivo refletem a falta de um sistema eficiente de coleta e regulação, resultando em problemas graves, especialmente quando tais práticas ocorrem próximas a áreas urbanas. “Observamos também o quão próximas essas incidências de uso do fogo estão da mancha urbana”, completou Gioielli. “Aí começamos a ter os diversos problemas oriundos desse manejo inadequado.”
Com quase três décadas de experiência, Tiago Oliveira sublinhou a importância da prevenção, observando que, “acima das 8, 10 toneladas por hectare em um dia muito mau, com vento seco e alta temperatura, não há como combater o incêndio.” Ele relacionou os incêndios em países como Portugal e Brasil à urbanização e ao êxodo rural, que deixam terras sem administração adequada, aumentando a proximidade do fogo entre áreas urbanas e vegetação. Embora o aquecimento global contribua para dias mais quentes e secos e, portanto, possa favorecer incêndios, a área atingida pelos fogos não tem aumentado ao longo do tempo. “O que acontece é que as sociedades percebem mais os incêndios, porque os fogos estão chegando mais às cidades”, disse Oliveira.
Após concluir seu doutorado em 2017, ele foi chamado pelo governo português para revisar o sistema de gestão de incêndios, implementando medidas como a interligação das ações de combate urbano e rural ao fogo e a profissionalização dos que atuam em tais ocorrências. Um plano nacional com quatro objetivos estratégicos e 97 projetos foi criado, enfatizando a gestão adequada das terras como forma de prevenção. Oliveira alertou, no entanto, para a necessidade de continuidade dessas iniciativas, criticando o foco político em soluções de curto prazo em detrimento da prevenção.
Já Paulo Saldiva abordou a questão das fronteiras borradas entre áreas urbanas e rurais, como na região metropolitana de São Paulo, onde incêndios em mosaicos de vegetação e ocupação desordenada dificultam a gestão. Ele lembrou que, no Brasil, as queimadas são uma prática antiga, utilizada desde as comunidades indígenas do cerrado, porém ampliadas pela agroindústria. “Esses ciclos eram controlados, limitados, mas isso se expandiu enormemente pela ocupação da agroindústria e com a queima de vegetação próxima de cidades”, explicou.
Saldiva também chamou a atenção para os impactos das queimadas na saúde, relatando estudos que mostram um aumento de poluentes atmosféricos, como na região do Mato Grosso, onde a queima de cana-de-açúcar elevava os níveis de material particulado muito além do limite estabelecido pela OMS, resultando em problemas respiratórios e cardíacos na população. “Em escala global, estamos falando de um aumento de mortalidade de 150%”, pontuou o médico. Ele mencionou ainda a presença de mutações celulares após queimadas, aumentando o risco de câncer.
“Esse é um tipo de trabalho de que me orgulho bastante, porque foram esses estudos que fizeram parte do decreto estadual que baniu a queima de açúcar no estado de São Paulo por motivos de saúde”, observou Saldiva. E a proibição não significou o fim da atividade produtiva: ao contrário, levou à mecanização e à evolução do processo produtivo, destacou o patologista, ressaltando: “Inclusive, com uma política exitosa de criação e qualificação de empregos — o cortador de cana passou a desempenhar outras funções derivadas do próprio negócio.”
Todavia, ele apontou que essa é uma exceção no Brasil, onde a gestão das queimadas ainda enfrenta grandes desafios, sobretudo em regiões menos influentes, configurando uma forma de racismo ambiental e uma violação dos direitos fundamentais das pessoas. “É um problema não só de saúde como também de cidadania e de direitos fundamentais das pessoas”, concluiu Saldiva.