Um debate amplo, técnico e urgente sobre a realidade dos supersalários no sistema de justiça brasileiro reuniu, no último dia 9 de junho, especialistas, pesquisadores e representantes de organizações da sociedade civil no Insper, em São Paulo. Intitulado “Supersalários em Debate: Justiça, Orçamento e Privilégios”, o evento foi promovido pelo Movimento Pessoas à Frente, pela Plataforma Justa e pelo Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper (CGPP), com o objetivo de aprofundar a análise sobre os impactos fiscais, legais e sociais desses vencimentos no serviço público — em especial nas carreiras do Judiciário e do Ministério Público.
A primeira mesa, intitulada “O Sistema de Justiça no Orçamento”, foi moderada pelo professor Gustavo Tavares, coordenador acadêmico do Núcleo de Pessoas no Setor Público no Insper, e trouxe à tona um retrato preocupante do orçamento das instituições de justiça nos estados brasileiros.
A economista Taciana Santos, coordenadora de pesquisas orçamentárias do Justa, apresentou os principais achados do relatório “Justiça e Orçamento”, com base em dados de 2023 de 18 unidades federativas — representando 84% do orçamento estadual total. Segundo ela, os tribunais de justiça, ministérios públicos e defensorias públicas consumiram, juntos, R$ 77 bilhões, com até 75,8% desse valor destinado à folha de pagamentos.
Ela destacou que, embora os orçamentos dessas instituições já sejam altos, todas extrapolaram os limites aprovados em lei por meio de créditos adicionais — muitas vezes concentrados justamente nas despesas de pessoal. “É uma escolha política que revela prioridades distorcidas”, observou. Taciana também alertou que, enquanto o Judiciário amplia seus gastos, funções essenciais como meio ambiente, trabalho e assistência social enfrentam cortes.
Vera Monteiro, presidente do Conselho do Movimento Pessoas à Frente e professora da FGV, traçou um histórico da tentativa de regulamentação do teto salarial no serviço público desde a Constituição de 1988, destacando que, apesar da previsão legal, a ausência de uma regulamentação efetiva gerou distorções que se intensificaram ao longo dos anos. Ela lembrou que, em 1998, a criação do modelo de subsídio em parcela única visava impedir manipulações e promover transparência, mas esse objetivo foi frustrado com a multiplicação de “parcelas indenizatórias” que burlam o teto e escapam da tributação. “O teto virou uma ficção”, afirmou, acrescentando que há hoje milhares de tipos de benefícios usados para driblar a regra constitucional.
Vera Monteiro também criticou a chamada “autonomia orçamentária abusiva” do Judiciário, que, segundo ela, se traduz em liberdade para ampliar gastos sem mecanismos eficazes de controle, com apoio frequente do Congresso. “É um sistema capturado, que opera em benefício próprio, sem vínculo com desempenho e sem transparência”, disse. Para ela, esse modelo ameaça a legitimidade democrática ao corroer a confiança pública nas instituições. “Precisamos de um Judiciário independente, sim, mas também responsável e conectado com o interesse público”, afirmou.
A pesquisadora Clara Marinho (Oxford/FGV) iniciou sua fala com uma anedota pessoal para ilustrar como a imagem de riqueza associada ao Judiciário já está naturalizada até mesmo entre crianças. Segundo ela, isso se explica pela realidade dos dados: apenas dois estados cumprem os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal para gastos com o Judiciário. Clara defendeu que o sistema de justiça adote práticas modernas de gestão, com foco em efetividade, resultados e prestação de contas. “Não basta gastar mais com pessoal; é preciso saber se isso resulta em justiça efetiva para a população”, disse, citando falhas como a lentidão nas medidas protetivas para mulheres e a baixa resposta institucional a casos de racismo.
Ela também destacou dados de um relatório internacional que mostram que o Brasil gasta 2,7% do PIB com a função “ordem pública e segurança”, frente a uma média de 1,7% nos demais países analisados — um custo elevado que não se traduz em maior segurança. Clara criticou a falta de transparência e a resistência das instituições em responder a esse tipo de dado com evidências concretas. Concluiu defendendo o fortalecimento do controle social: “A sociedade precisa exigir que esse orçamento reflita justiça, e não privilégio.”
Encerrando a primeira mesa, a professora Ursula Peres (USP) chamou atenção para o alto volume de recursos destinados ao sistema de justiça, especialmente ao Judiciário, sem a devida reflexão pública sobre seus impactos. Ela destacou que o Brasil gasta cerca de 2,7% do PIB com a função “ordem pública e segurança”, valor próximo ao investido no SUS e muito acima da média internacional de 1,7% — diferença atribuída majoritariamente aos custos do Judiciário. Nos estados, esses gastos já superam os das polícias e, em alguns casos, até os da saúde. “Estamos gastando mais com justiça do que com segurança pública, mas sem resultados proporcionais. A população segue insegura e insatisfeita”, afirmou.
Para Ursula, o sistema de justiça opera de forma isolada, fragmentada e pouco transparente, sem articulação entre União, estados e municípios. Com 92% das despesas voltadas para salários, o modelo se mostra “capturado” por dinâmicas corporativas que o fazem crescer de forma automática e sem controle efetivo. “É um sistema que se retroalimenta, cresce sem entregar e que, ao contrário da saúde e da educação, permanece fora dos principais debates sobre ajuste fiscal.”
Na segunda mesa, “Gestão de Pessoas e Transparência no Sistema de Justiça”, a mediação ficou a cargo de Juliana Carvalho, coordenadora executiva do Núcleo de Pessoas no Setor Público do Insper, e o foco foi a gestão de pessoas e a transparência.
Jessika Moreira (diretora-executiva do Movimento Pessoas à Frente) ressaltou que o tema dos altos salários no Judiciário e no Ministério Público está no centro da agenda de gestão de pessoas no setor público. Segundo ela, apenas 0,3% dos servidores recebem acima do teto constitucional. No entanto, 93% dos juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores e 91% dos membros do Ministério Público, no agregado em 2023, receberam supersalários — muitas vezes por meio de remunerações classificadas indevidamente como indenizatórias para driblar o teto e evitar a tributação.
Ela destacou o contraste com a realidade da maioria dos servidores públicos, que recebem em média R$ 3.300, como professores, agentes de saúde e assistentes sociais. “Defendemos uma remuneração justa e compatível com as responsabilidades do cargo, mas o que se observa no Judiciário não é meritocracia, é privilégio”, afirmou.
O pesquisador Rafael Viegas (FGV) observou que os chamados supersalários estão concentrados em uma pequena elite do Judiciário e do Ministério Público — especialmente juízes, procuradores e promotores — e não representam a totalidade dos servidores. “Não estamos falando de todo o funcionalismo, mas de um grupo específico que tem poder para capturar o orçamento em benefício próprio”, afirmou. Segundo ele, esse cenário é resultado de uma dinâmica corporativa fortalecida ao longo das últimas décadas, com associações de classe influenciando diretamente decisões administrativas e orçamentárias.
Essa lógica, segundo Rafael, se reflete na composição dos conselhos superiores, como o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), que deveriam exercer controle, mas estão hoje dominados por representantes dessas mesmas corporações. “De 2005 a 2020, 77% dos membros do CNMP haviam atuado na direção de associações de classe do MP”, exemplificou. Para o pesquisador, qualquer reforma administrativa séria precisa incluir mudanças nesses conselhos, com mais participação de servidores e da sociedade civil. “Sem democratizar essas estruturas, não há como romper o ciclo de privilégios.”
Juliana Sakai (Transparência Brasil) apresentou os resultados do projeto DadosJusBR, que desde 2018 coleta e organiza dados dos contracheques do Judiciário e do Ministério Público, com o objetivo de torná-los abertos, comparáveis e acessíveis. No entanto, ela destacou que a realidade ainda está distante disso: sua equipe precisa baixar manualmente informações de dezenas de sites, devido à ausência de padronização e ferramentas automatizadas. A partir da análise de 3.300 tipos de penduricalhos, foi possível consolidá-los em 60 categorias — e um dos achados mais preocupantes é que uma regulamentação frouxa da lei dos supersalários pode permitir que até R$ 7 bilhões em verbas remuneratórias escapem do teto ao serem reclassificadas como indenizatórias.
Juliana também alertou para a multiplicação de benefícios como a “licença compensatória”, que concede folgas com impacto indireto sobre a remuneração. Segundo ela, esse movimento cria uma “corrida por vantagens” entre instituições, onde o Ministério Público, o Judiciário e até a Câmara dos Deputados replicam práticas sem critérios claros. “Sem constrangimento público e pressão da sociedade civil, isso não vai parar”, afirmou.
Luciana Zaffalon, diretora-executiva do Justa, abordou a relação direta entre gestão de pessoas, falta de transparência e os supersalários nas carreiras jurídicas. Para ela, o problema está enraizado em um modelo institucional que trata eleições internas como privadas, mesmo sendo públicas: chefias, corregedorias e conselhos são escolhidos sem registro formal de candidaturas, propostas ou alinhamentos políticos. “O que resta é entender que o capital político nessas eleições se baseia na promessa de mais recursos para as corporações.”
Luciana argumentou que esse ciclo cria uma lógica perversa de gestão, onde os eleitos têm como prioridade ampliar o orçamento para seus próprios grupos. Ela também criticou o papel do Legislativo na aprovação orçamentária, ao permitir que o Executivo redistribua fatias significativas do orçamento por meio de créditos adicionais, muitas vezes negociados a portas fechadas com os próprios órgãos que deveriam ser fiscalizados. “Isso neutraliza completamente os mecanismos de freios e contrapesos”, disse.
Em síntese, o encontro no Insper reforçou a urgência de enfrentar as distorções salariais e a falta de transparência no sistema de justiça, com propostas que vão da modernização da gestão à reforma das estruturas de controle. Para os participantes, é hora de romper o ciclo de privilégios e recolocar o interesse público no centro do serviço público.