Em um mundo cada vez mais moldado por algoritmos, memes e bolhas informacionais, compreender a natureza das redes sociais tornou-se tarefa urgente. Com essa motivação, o Insper realizou, no dia 28 de maio, mais uma edição do Café com Políticas, com o tema “Redes sociais: decifrá-las ou ser por elas devorados”. O encontro, promovido pelo Centro de Gestão e Políticas Públicas (CGPP), teve mediação do cientista político e professor Carlos Melo, e contou com as participações de José Antonio Pinho, professor titular aposentado da UFBA, pesquisador da EAESP-FGV e autor do livro As Redes Sociais como Estado de Natureza: ódio, violência e fake news no Brasil – dialogando com Hobbes, Locke e Rousseau, e Natália Mazotte, consultora em dados e tecnologia, gerente de parcerias no Google e professora do Insper.
Na abertura, Carlos Melo sintetizou o dilema contemporâneo que cerca o uso das redes sociais: “Os reflexos deletérios a gente consegue perceber, mas a lógica do funcionamento é mais difícil de entender”. Embora os impactos dessas plataformas sejam visíveis no cotidiano, Melo destacou que os mecanismos que moldam comportamentos, relações e decisões permanecem opacos. Para contextualizar, recorreu à ideia de “onda tecnológica”, lembrando que invenções como o motor de combustão, a eletricidade, o fogo e a roda moldaram profundamente a organização da sociedade. As redes, segundo ele, seguem a mesma lógica, produzindo transformações radicais e, muitas vezes, consequências não intencionais. “Parece que é isso que estamos vivendo agora”, observou.
O pano de fundo da discussão é a constatação de que, embora as redes sociais tenham surgido como instrumentos poderosos de transformação — ampliando o acesso à informação e fortalecendo vozes antes marginalizadas —, também se tornaram palco de campanhas de desinformação, manipulação emocional e corrosão do debate público.
A primeira a falar foi Natália Mazotte, que apresentou uma visão abrangente sobre os efeitos ambivalentes das redes sociais. “Um dos efeitos mais conhecidos é o de ampliar as vozes no debate público”, afirmou. Movimentos como o #MeToo e a mobilização LGBTQIA+ ganharam visibilidade graças à abertura proporcionada pelas plataformas, o que democratizou o acesso à produção e circulação de conteúdo.
Por outro lado, essa ampliação trouxe o desafio da complexidade. A ausência de mediação estruturada facilitou o surgimento de narrativas simplificadoras e polarizadoras. “A desintermediação do debate, antes controlado por poucos atores, levou à emergência de discursos populistas e de uma extrema-direita fortalecida”, disse Mazotte. Embora não se possa estabelecer uma relação causal direta entre redes sociais e a ascensão do autoritarismo, ela apontou uma “correlação clara entre a simplificação das narrativas e o crescimento de soluções políticas radicais”.
José Antonio Pinho contribuiu com uma leitura teórica, ancorada na tradição contratualista da filosofia política. Inspirado em Hobbes, Locke e Rousseau, ele comparou o ambiente das redes sociais a um estado de natureza — um espaço anterior ao contrato social, onde faltam regras e instituições capazes de conter impulsos destrutivos.
“As redes são como uma cloaca aberta, uma selva sem leis”, afirmou, destacando a “brutalidade simbólica” presente nas práticas de cancelamento e linchamento virtual. Para Pinho, a dinâmica das redes é marcada por uma lógica de guerra constante — ou, como disse com ironia, “uma insanidade”.
Retomando os clássicos, explicou que se Hobbes via no Estado forte a única saída para conter a violência, e Rousseau apostava na vontade geral como base para o contrato social, o momento atual parece flutuar entre o caos hobbesiano e a ingenuidade rousseauniana. “Quando entrou o dinheiro, desandou tudo”, resumiu, referindo-se à colonização do ambiente digital pelo capital, que transformou um espaço antes idealizado em um campo de manipulações mercadológicas e políticas.
Um dos pontos centrais do debate foi a difícil equação entre liberdade de expressão e responsabilidade nas plataformas. Mazotte destacou o papel do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que isenta as empresas de responsabilidade prévia sobre conteúdos publicados por usuários, exceto mediante decisão judicial. Embora essa regra evite a censura prévia, pode ser lenta demais frente à velocidade da desinformação.
“Se a plataforma souber que pode ser punida, ela vai errar por excesso: vai apagar tudo que pareça suspeito. Isso pode matar o debate público”, alertou. Como exemplo, citou o caso da eleição na Romênia, anulada judicialmente após a comprovação de que influenciadores foram pagos para divulgar desinformação a favor de um candidato de extrema-direita. O episódio ilustra o dilema central: como responsabilizar campanhas e proteger o processo democrático sem ferir a liberdade de expressão?
Outro ponto discutido foi o impacto crescente da inteligência artificial na produção e circulação de conteúdo. Mazotte mencionou um meme recente de um “canguru de apoio emocional” com bilhete de embarque na mão — claramente falso, mas que muitos acreditaram ser real. “Se hoje já é difícil separar o real do falso, imagine com IA generativa sendo usada em períodos eleitorais”, alertou. Para ela, o desafio não é apenas regulatório, mas educacional, exigindo alfabetização midiática e desenvolvimento do senso crítico.
Ao fim do encontro, ficou claro que o desafio das redes sociais ultrapassa a mera questão técnica ou jurídica: trata-se de um dilema civilizatório. Como construir um novo pacto social capaz de preservar a liberdade de expressão sem abrir espaço para a destruição simbólica e institucional promovida pela desinformação? A resposta, segundo os debatedores, não está em soluções simplistas, mas em abordagens regulatórias sensíveis ao contexto e ao tempo da democracia.