Que uma demissão provoca estresse, angústia e irritação, não há muita margem para dúvida. Trata-se, afinal, de uma situação que envolve não apenas perdas financeiras, mas também abalos na autoestima. O que pouca gente se dá conta, porém, é que esses aspectos negativos do desemprego reverberam para além do indivíduo, sobre sua família — e podem levar a impactos significativamente negativos nas crianças.
É isso que demonstra o estudo Economic Distress and Children’s Mental Health, de Luiz Felipe Fontes, professor de Economia do Insper, em colaboração com Matías Mrejen, do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, Beatriz Rache, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, e Rudi Rocha, da Fundação Getulio Vargas. Publicada em maio na revista acadêmica The Economic Journal, ligada à Universidade de Oxford [disponível aqui], a pesquisa mostra que crianças de lares em que um responsável perdeu o emprego têm maior probabilidade de desenvolverem problemas mentais.
Alguns estudos — em especial um de 2022, comandado pelo economista Diogo Britto, da Universidade de Milão — já haviam mostrado que a demissão de um pai ou uma mãe costuma levar a prejuízos educacionais para os filhos. Mas há também, indicam os autores, consequências negativas para a saúde mental das crianças: em média, a chance de uma criança ser diagnosticada com algum problema mental (depressão, ansiedade, déficit de atenção…) aumenta em 6 pontos percentuais quando um de seus responsáveis é demitido. Trata-se de um risco 24% maior do que a probabilidade de base de desenvolver problemas de saúde mental.
Para chegar a esse resultado, os pesquisadores se debruçaram sobre a base de dados da Coorte de Alto Risco para Condições Mentais (BHRC, na sigla em inglês), idealizado pelo Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes (INPD). A base acessou informações de 2.510 crianças em diferentes momentos a partir de 2010, selecionadas de um universo de 9.937 crianças entre 6 e 12 anos de idade inscritas em escolas públicas nas cidades de São Paulo e Porto Alegre — um dos maiores projetos já realizados na área de psiquiatria no Brasil. Os questionários e entrevistas foram aplicados em três ondas: 2010-11, 2013-14 e 2018-19.
"A grande vantagem da base de dados é que você consegue observar as famílias ao longo do tempo”, diz Fontes, do Insper. Isso permitiu comparar crianças de famílias em que o responsável perdeu o emprego com outras, de famílias muito parecidas, em que o responsável se manteve empregado; ao longo do tempo a situação em cada grupo mudou, mas, ao subtrair as diferenças sofridas por um grupo das diferenças do outro (o método DiD, de diferença nas diferenças), foi possível chegar ao efeito específico provocado pela demissão. “Essas crianças cujos pais no futuro iriam perder o emprego vinham numa trajetória muito parecida com as outras”, diz o professor. “A trajetória só muda depois da perda de emprego.”
Essa observação só se torna possível porque a base permite observar os grupos ao longo do tempo. Graças a isso foi também possível parear famílias que em 2010 tinham características similares: mesmas condições socioeconômicas, educação dos pais, renda familiar, histórico de saúde mental, desenvolvimento cognitivo, peso e altura da criança ao nascer, exposição à violência na primeira infância e cidade de moradia (a base de dados é concentrada em São Paulo e Porto Alegre). Dessa forma é possível isolar a perda de emprego de outras condições que poderiam afetar a saúde mental das crianças.
Encontrada a relação de causalidade entre demissão e aumento da probabilidade de problemas mentais, o próximo passo era tentar entender os mecanismos que poderiam explicar o resultado. Há três canais pelos quais a perda de emprego pode afetar a saúde das crianças, afirma o estudo. O primeiro é pela redução da renda familiar, que pode diminuir os investimentos em saúde importantes para a criança. O segundo é pelo aumento do tempo em que o responsável está presente em casa, potencialmente fornecendo maior cuidado parental; esse efeito, porém, depende da qualidade do tempo que a criança e seus cuidadores passam juntos. O terceiro canal, finalmente, é o estresse psicológico entre os adultos, “que pode afetar as crianças ao reduzir a qualidade e a quantidade dos investimentos parentais”.
A primeira hipótese, de que a perda de renda levaria a uma falta de recursos para investir na saúde da criança (com menos acompanhamento médico e menos remédios, por exemplo), não foi comprovada pela pesquisa. “A gente não encontrou diferenças entre quem tem mais ou menos recursos prévios”, diz Fontes. Como escreveram os autores: “os efeitos da perda de emprego parental na saúde mental da criança não variam significativamente de acordo com a composição familiar; o mesmo acontece para casas com renda acima e abaixo da mediana — com resultados até ligeiramente mais pronunciados em famílias com maior renda”.
Resta a segunda hipótese, de que a presença mais assídua do responsável em casa tenha efeito (positivo, no caso de mais atenção, ou negativo, por estresse e brigas) sobre as crianças. Infelizmente, parece que os efeitos negativos sobrepujam os positivos.
A literatura recente já traz evidências de que a perda de emprego de um responsável leva a um nível maior de violência doméstica. E isso foi confirmado na pesquisa. “Um módulo do BHRC consegue captar indícios de maus-tratos”, afirma Fontes, “e nós percebemos um aumento deles nas casas em que houve perda de emprego”. Além disso, a probabilidade de testemunhar brigas familiares constantes aumenta em 10 pontos percentuais logo após um evento de demissão.
Os riscos para as crianças são maiores, segundo o estudo, em famílias com maior prevalência de questões de saúde mental, independentemente de predisposições genéticas. “Isso reforça a hipótese”, diz Fontes. “São famílias que provavelmente têm menos condições de reagir a situações adversas.”
Um problema adicional para essas crianças é que o impacto da perda de emprego pode ser bastante duradouro: um ano após a demissão, o desemprego ainda era 40% maior do que no grupo de controle (em que não houve episódio de demissão). E essa diferença, de acordo com a pesquisa, cai muito lentamente nos anos seguintes.
O impacto da perda de emprego corresponde a cerca de 60% da diferença em índices de saúde mental entre crianças do grupo de alto risco de doenças mentais (pelo histórico familiar, condições econômicas etc.) e os de crianças que não estão no grupo. Seus efeitos são maiores do que a média de programas tradicionais antipobreza, incluindo os de transferência de renda como o Bolsa Família, e de programas de múltiplas intervenções.
Se os efeitos são assim tão grandes, uma recomendação óbvia é estabelecer políticas de intervenção visando socorrer essas famílias, em especial logo após o choque da demissão. Seus efeitos diminuem ao longo do tempo, mas ainda são perceptíveis até cinco anos depois.