
Autodidata, a norte-americana Jane Jacobs publicou em 1961 sua obra mais importante, Morte e vida de grandes cidades, que segue como referência incontornável para ações que busquem justiça social e ambiental nas urbes de todo o planeta
Laura Janka*
Em um ensaio célebre, “Por que ler os clássicos” (1981) – tão extraordinário que alcançou, ele mesmo, essa invejável condição –, o escritor Italo Calvino (19231985), monumento da literatura italiana, sentencia: “Clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.”
Embora o foco de Calvino fossem as produções literárias, poucos títulos fora desse universo se encaixam tão perfeitamente em sua definição como Death and Life of Great American Cities (1961), da norte-americana Jane Jacobs (1916-2006). Decorridos mais de sessenta anos de sua publicação, não é difícil entender o porquê. Raros trabalhos influenciaram e, sobretudo, continuam influenciando o modo como se pensam as cidades no planeta – e não apenas aquelas de seu país natal. Alguma dúvida de que isso signifique que a obra segue dizendo “aquilo que tinha para dizer”?
Não era para menos. Afinal, curiosamente, o livro não foi escrito por alguém que tivesse formação superior em arquitetura e urbanismo. Autodidata, Jacobs enveredou por um jornalismo ativista em torno dos problemas das cidades: o conhecimento que acumulou acerca de seu objeto de estudo, tanto em termos quantitativos como qualitativos, resultou de sua experiência na “vida como ela é” da metrópole onde se consagrou, Nova York; de seu olhar sistemático e cuidadoso sobre as urbes – a partir das próprias experiências e das experiências alheias. Não estranha que seu ativismo tenha sido tão poderoso – e que sua obra máxima se mantenha ativa. Clássica.
Reconhecida como “madrinha das cidades”, Jacobs, que morou no Greenwich Village, publicou seus primeiros textos no “journal” Fortune, em 1958, relatando o que, por meio de suas andanças, entrevistas e anotações identificou como o “fracasso do modelo de renovação urbana” das cidades norte-americanas – a ideia de transformação urbana baseada em uma proposta de “limpar” e “abrir” espaço para novos empreendimentos e modelos habitacionais, cujo resultado eram prédios genéricos, sem mescla social, sem diversidade de usos. Traduzindo: com inegável perda de vida urbana, os encontros e as trocas da vida ordinária. Death and Life of Great American Cities (Morte e vida de grandes cidades, na versão brasileira) nasceu daquela série de artigos.
Não por acaso o livro obra começa se definindo como um “ataque” – no caso, “aos fundamentos do planejamento urbano e da reurbanização” então vigentes. Ao longo de 22 capítulos, Jacobs não apenas descreve as complexas consequências resultantes de modelos urbanos generalistas e nada inclusivos – alinhados às diretrizes funcionalistas da Carta de Atenas, o manifesto do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (1933) – como também compartilha um conjunto de reflexões práticas, fundamentadas em suas observações cotidianas. Propõe ainda certos princípios orientadores de desenho de cidades nos quais a diversidade figura como centro da questão.
Após a “Introdução”, Jacobs fala sobre a “peculiar natureza das cidades”, apresentando elementos e situações básicas para que se compreenda a vida urbana no seu dia a dia – as calçadas, os bairros, os parques – e fazendo uma leitura do impacto que promovem no comportamento social. “As ruas, as suas calçadas e os espaços públicos principais (…) são os órgãos mais vitais da cidade”, escreve a autora. Essa frase, aparentemente óbvia, esbarra em uma realidade que despreza tal ponto de vista: basta atentar, por exemplo, para a qualidade das calçadas que usamos diariamente.
No que diz respeito aos espaços públicos, Jacobs sublinha sua importância enquanto “sistemas” que dão “vida, segurança e identidade urbana”. Para ela, quanto mais interessante forem as ruas, mais interessante será a cidade; quanto mais aberta e integrada ao bairro e à geografia urbana forem as praças, mais dinâmica será a cidade. Daí o papel decisivo do que Jacobs conceitua como “olhos na rua” – o protagonismo dos habitantes no cuidado com o espaço urbano e também de uns com os outros. Afinal de contas, a cidade é o ambiente para as pessoas verem e serem vistas. Pense em uma rua movimentada e com diversidade social como as do centro de Salvador, na Bahia: soteropolitanos e turistas criam um universo atrativo e simultaneamente dotado de uma particular “familiaridade”. Isso é uma cidade; e esta a sua melhor definição: um lugar de encontros e de segurança cotidiana.

Na sequência de suas reflexões, a autora mergulha nas “condições da diversidade”, tratando-as como elemento fundamental da cidade e referência basilar para o comportamento econômico sustentável. Jacobs aborda o conceito de diversidade a partir de um olhar multidimensional, explicando-o por meio de exemplos representados pelo cruzamento de usos nos prédios, na mistura de estilos arquitetônicos que vão dialogando com o passar do tempo, na integração de variadas oportunidades de oferta de moradia e emprego.
Nesse ponto da obra, a autora faz referência à “necessidade de concentração”. A densidade, segundo ela, ajuda na fórmula para aproximar as oportunidades existentes na cidade. Jacobs ressalta, porém, que nesse processo não pode haver isolamento. Se as densidades “são muito baixas ou muito altas” acabam por frustrar a diversidade urbana “em vez de ser cúmplice dela”. Enquanto as baixas densidades tendem à segregação, as altas, sem acompanhamento da diversidade e sem elementos de qualidade social e ambiental, levam à superlotação e ao conflito. Um exemplo brasileiro da diversidade que escapa da estandardização porque traz variedade é o bairro carioca de Copacabana. Nele, podem-se encontrar, em um curto percurso, comércio e serviços, habitação e lazer. Embora excludente da população de baixos recursos, é um modelo de cidade que integra um sistema contínuo de praças e calçadas, esquinas ativas com variedade comercial, desde uma lanchonete até uma butique.
Em um terceiro bloco do livro, Jacobs identifica os elementos que “deterioram” a vida urbana. A competitividade comercial focada apenas no ganho financeiro, corporificada na “clusterização” – ou seja, na concentração de usos ou oferta especializada numa área específica da cidade –, é fator que tende a contribuir para a vulnerabilidade das economias locais e mistas. Os processos cíclicos e os vícios do planejamento do que a autora denomina “favelização” acabam por gerar migrações contínuas e novos processos de “favelização” em outros lugares da cidade, normalmente mais afastados dos bairros conectados e de maior oferta econômica ou cultural.
Atualmente, essas dinâmicas são comuns e ainda mais complexas no Brasil onde o espalhamento da superfície urbana ainda prevalece, o que torna mais difícil a gestão dos espaços nas cidades. Apesar de existirem iniciativas que buscam oferecer moradia digna às populações mais vulneráveis, pouca atenção se dá, por exemplo, ao expediente da locação e frequentemente os “programas habitacionais” formam novos “guetos”, afastados das virtudes da cidade e segregados da diversidade social.
Na última parte da obra Jacobs submerge a escala humana para abordar aspectos de governança e planejamento estrutural, sugerindo mudanças capazes de fomentar a vida pública e a diversidade que sustenta a economia urbana. Fechando o estudo, ela se debruça sobre qual seria, ao fim e ao cabo, o tipo de problema que caracteriza as cidades de uma forma geral, ou mais exatamente “o tipo de problema que a cidade é”. Sua resposta: “Complexidade”. Ora, um sistema complexo não pode ser abordado de maneira simplista nem homogênea. Quer dizer: toda a questão recente sobre o pensamento sistêmico já estava na mente de Jacobs em 1961 a partir de seu olhar transdisciplinar e atenta às múltiplas escalas. Um olhar que entendia as cidades como entidades vivas – e em processo.
“É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível”, afirma Ítalo Calvino em outra passagem de “Por que ler os clássicos”, seu magnífico texto incluído em um volume homônimo lançado postumamente, em 1991. Diante da “atualidade mais incompatível”, pode-se afirmar com segurança que Morte e vida de grandes cidades “persiste como rumor”:
Nunca será, ressalte-se, uma leitura, ou releitura, apenas de formação – com seu intenso ativismo urbano, Jane Jacobs escreveu um livro vocacionado para a transformação, cuja síntese se expressa por inteiro nesta lição: “Cidades vivas, diversas e intensas contêm a semente de sua própria regeneração, com energia suficiente para superar problemas e necessidades fora de si.”
*Arquiteta e urbanista, coordenadora do Núcleo Arquitetura e Cidade do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper

MORTE E VIDA DE GRANDES CIDADES, de Jane Jacobs. Tradução de Carlos S. Mendes Rosa
WMF Martins Fontes, 3ª edição (2011)
Disponível nas versões impressa (532 páginas) e digital