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Tragédias como as do Rio Grande do Sul desafiam o planejamento urbano

Pesquisadores do Laboratório Arq.Futuro de Cidades avaliam as possibilidades e as dificuldades de regulação e de moradia no Brasil diante das chuvas extremas

Pesquisadores do Laboratório Arq.Futuro de Cidades avaliam as possibilidades e as dificuldades de regulação e de moradia no Brasil diante das chuvas extremas

 

Leandro Steiw

 

A destruição causada pelas chuvas extremas registradas no Rio Grande do Sul entre o fim de abril e o início de maio é mais um capítulo trágico dos efeitos das mudanças climáticas globais. Cerca de 2,3 milhões de pessoas, em 95% dos municípios gaúchos, foram afetados, de acordo com balanço da Defesa Civil. Quase 600.000 pessoas precisaram sair de casa e 171 mortes foram confirmadas até o dia 1º de junho. A constância dos desastres climáticos no Brasil impõe novos desafios ao planejamento urbano, que envolvem, entre outros, os temas da regulação e da habitação.

O cenário é recorrente. Foi o quarto evento extremo no Rio Grande do Sul em menos de um ano. Em 2022, 233 pessoas morreram em deslizamentos causados pelas chuvas em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. No ano seguinte, 65 morreram no litoral paulista em evento semelhante. Em 2023, houve 1.161 eventos de deslizamentos, inundações e secas no país, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Foi também o ano no qual os rios da Amazônia secaram em níveis históricos, sob temperaturas que chegaram aos 40°C.

Para o cientista social e arquiteto José Police Neto, coordenador do Núcleo Habitação & Real Estate do Laboratório Arq.Futuro, uma decisão a ser tomada é se as cidades vão se conformar ao risco de ocupar os mesmos espaços sujeitos à inundação. “Uma das reflexões que começamos a fazer internamente é como as mudanças tão necessárias na regulação urbana acabam por orientar a cidade para uma nova lógica que não foi a que nos orientou até aqui”, diz ele.

A Constituição Federal (1988) e o Estatuto da Cidade (2001) atribuíram aos municípios a regulação urbana e a organização das cidades. Em 2015, o Estatuto da Metrópole tentou compor a tarefa para o ator público metropolitano. “Mas a questão da contextualização e da governança metropolitana está muito distante de ser uma realidade no Brasil, e mesmo as experiências internacionais que avançaram um pouco nesse sentido são um processo complexo”, observa Police.

Até agora, a regulação tem sido orientada por coeficientes de aproveitamento, recuos das edificações, permeabilidade do solo e adensamento. Police comenta que as bases hidrológicas e geotécnicas não foram tratadas com maior ênfase. As cidades brasileiras cresceram onde sempre estiveram, independentemente da segurança do território, via de regra estabelecidas em áreas que pertenciam a famílias proprietárias da terra. “Só por volta dos anos 1960 começa-se um debate um pouco mais público no Brasil, com a participação da sociedade, e arquitetos e urbanistas apresentaram as suas experiências internacionais”, observa o especialista do Laboratório.

 

Evidências científicas

Diante das novas ameaças do clima, a saída, mais do que nunca, é recorrer aos parâmetros científicos. Na opinião de Police, são os elementos da ciência que vão oferecer camadas que, sobrepostas, dirão onde a cidade pode se acomodar com solidez e menor risco. “E temos que fazer muita conta para ver se a cidade fica de pé dessa forma”, sublinha ele.

A advogada Safira De La Sala, coordenadora-adjunta do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro, reforça a necessidade do planejamento urbano apoiado na evidência científica. “A nossa principal lacuna é reconhecer que a cidade não é desenhada sobre uma folha em branco, mas sim construída sobre uma região com o seu ecossistema e as suas dinâmicas ambientais próprias — e isso não pode ser ignorado”, afirma Safira. “A função do planejador urbano é se guiar pela realidade material e física em todos os outros temas que o planejamento já incorporou ao longo dos anos, como o desenvolvimento orientado ao transporte, por exemplo. É entender como todas as temáticas que são familiares ao planejamento se relacionam e podem ser mais bem aplicadas partindo de uma análise territorial e de risco.”

Safira explica que, em 2012, a exigência de cartas geotécnicas — análise das características geológicas, hidrológicas e geotécnicas de uma cidade — no planejamento urbano foi acrescentada ao Estatuto da Cidade. Essas cartas, porém, raramente direcionam o planejamento no país. “Se existem áreas de maior suscetibilidade ao risco ambiental — ocupadas sobretudo por populações vulnerabilizadas, mas não sempre —, o Plano Diretor e a Lei de Zoneamento, às vezes até o Código de Obras, devem desautorizar a ocupação dessas áreas ou indicar medidas que, em caso de ocupação, reduzam a vulnerabilidade das pessoas e da infraestrutura envolvida”, ressalta Safira.

Como subsecretário de Desenvolvimento Urbano do Estado de São Paulo, Police participou das negociações sobre a reconstrução de São Sebastião, cidade do Litoral Norte paulista arrasada pelas chuvas de fevereiro de 2023. A reconstrução da região passou pela realocação de cerca de 750 famílias para locais seguros. “No Rio Grande do Sul, estamos falando de algo como 15.000 a 18.000 famílias que terão as suas vidas transformadas porque os seus bairros não podem mais existir”, destaca ele. Aqui se aplica a necessidade de “fazer muita conta” para reassentar as pessoas e preservar o maior número possível de famílias em seus bairros. E, principalmente, entender que o custo será de todos, não só de quem vai embora.

O grande desafio da regulação se apresentará sob a forma de ordenar uma nova cidade resiliente aos desastres climáticos. “O mundo terá que fazer esse debate por conta das mudanças do clima”, enfatiza Police. “Esses desastres acontecem frequentemente nas regiões serranas, muito porque ocupam as encostas, no entanto existem riscos em cidades litorâneas. Com a subida das marés, os canais servem de bacia de retenção das águas de chuva. Se a maré sobe e as chuvas são mais intensas ao mesmo tempo, as águas alagam o litoral por uma ou duas semanas. Já houve episódios assim no litoral brasileiro. Ainda não produziram uma cidade que se afoga, porém sinalizam que esse risco cresce e que o custo social é enorme.”

 

A equação da resiliência

Outro desafio será buscar soluções em experiências de outras nações. Police lembra que os Países Baixos e a China gastaram muito dinheiro para desenvolver e implantar projetos de proteção às inundações. Em Nova Orleans, nos Estados Unidos, a reconstrução do sistema de diques, bombas e comportas custou 14,5 bilhões de dólares, cerca de 74 bilhões de reais — em agosto de 2005, a passagem do furacão Katrina havia devastado a cidade, rompendo diques e desalojando 1 milhão de pessoas. “Essa equação vai exigir dedicação, porque não temos riqueza suficiente para transformar as cidades em locais resistentes aos desastres”, acredita ele.

Police prossegue: “Como, em larga escala, é a população de menor renda que está exposta às áreas mais suscetíveis, a tendência é de só existir uma solução pública. Sendo uma solução pública, dependerá do financiamento de todos. Então, é um movimento complexo de trabalho e negociação. Não se trata de uma doação por conta da catástrofe e sim de uma mudança de lógica de montagem de cidades, que vai nascer de estudos científicos. O Estatuto da Cidade tenta dar recomendações do que não pode acontecer. Teremos que reformular essas recomendações apontando para desenhos urbanos a partir da regulação. Gradativamente, faz-se uma transformação urbana para proteger as cidades das mudanças do clima”.

Os riscos de inundação da região metropolitana de Porto Alegre eram conhecidos, vide a enchente histórica de 1941 — na ocasião, o Lago Guaíba, que costeia a capital gaúcha, subiu 1,76 metro acima da cota de inundação, marca superada agora em 2024, quando o nível da água subiu 2,35 metro. “A questão é que não temos uma cultura voltada para a prevenção”, comenta Police. “Todas as vezes que se discute regulação urbana, é muito mais sob o aspecto do lucro, portanto, da valorização da cidade. É ‘pecado’ tentar valorizar a cidade nos processos de regulação? Lógico que não. Não se faz um processo de transformação da cidade tirando o valor da cidade. No debate de plano diretor ou lei de zoneamento, você quer que aquele seu ativo se valorize e que a cidade se valorize. A questão é que todas as vezes que a cidade se valoriza muito, o acesso a ela por parte da população de menor renda torna-se ainda mais difícil. A cidade pode ficar mais cara, e a população não fica tão mais rica simultaneamente.”

Dados e evidências serão indispensáveis para o debate do planejamento urbano. Resumidamente, sabe-se que, ao reduzir a extensão de áreas de ocupação, será reduzido o acesso à terra e cairá o valor geral de vendas (VGV) da cidade. O metro quadrado tende a se valorizar, porque ficará escasso. A solução típica é adensar a cidade, por meio de prédios mais altos e robustos, para acomodar uma população maior às áreas mais seguras. Talvez sejam necessárias unidades habitacionais menores, porque haverá poucos metros quadrados disponíveis.

A adaptação às mudanças climáticas não é uma receita que vem pronta. O planejamento depende da característica geográfica e da infraestrutura já estabelecida em cada local. “É um processo demorado, que mexe com todos, desde as elites até a população de menor renda”, acentua Police. “É um processo que desperta paixões, porque existem aqueles que são apaixonados pela cidade vertical e outros que são apaixonadíssimos pela cidade horizontal. Entretanto, é um processo que teremos que viver e que precisará ser pactuado com a sociedade.”

 

Vista aérea das cidades de Novo Hamburgo e São Leopoldo
Vista aérea das cidades de Novo Hamburgo e São Leopoldo

Os três fundamentos

Considerando a adaptação aos eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes, o desafio do planejamento urbano é conseguir incorporar as diferentes gradações de risco de perda de vidas humanas, bens e riquezas e apontar respostas para o enfrentamento do risco. Safira cita três etapas fundamentais para garantir a proteção da população: prevenção, gerenciamento de riscos e reconstrução.

O caminho começa com o regramento do uso e ocupação do solo e da escolha das técnicas construtivas mais adequadas às condições locais. As cartas geotécnicas, por exemplo, estimam os tempos de retorno dos eventos climáticos e fornecem dados que ajudam a organizar e minimizar o impacto sobre a vida dos cidadãos. Essas informações podem ser usadas para a regulamentação de dispositivos de controle de drenagem na fonte, que retardam o escoamento da água ou aumentam a infiltração no solo. Ou ainda as soluções baseadas na natureza, conceito que abarca as ideias de engenharia que tentam reproduzir os processos naturais.

Segundo Safira, a questão se complica na chamada cidade informal, que está à margem da legalidade e dispõe de poucos recursos para se adaptar às catástrofes. Assim, a segunda etapa é a gestão de riscos. Ela diz que a criação do centro de monitoramento e alerta Cemaden, em 2012, foi um marco importante na política brasileira de redução de desastres. “Contudo, não adianta apenas ter o melhor centro de monitoramento e alerta se não existir um protocolo de contingência para a ação prática, feitos por técnicos de diferentes áreas”, afirma ela. “O sistema de monitoramento e alerta tem que estar conectado a um plano que permita à população, à defesa civil e aos governos saberem agir no momento do alerta. Hoje, esse é o descompasso no sistema de gestão de riscos no Brasil.”

Por fim, a terceira etapa é o sistema de reconstrução da cidade atingida, que passa também por uma estrutura macroeconômica de arrecadação e gestão dos fundos de financiamento. O ordenamento territorial pode ser uma questão estratégica. “Se começarmos a direcionar o desenvolvimento urbano, desocupando as áreas de risco onde vivem as populações de menor renda, podemos abrir outras possibilidades de financiamento”, avalia Safira. O relatório “Catástrofes naturais em 2023”, da resseguradora suíça Swiss Re, indica que as perdas cobertas por seguros de catástrofes naturais ultrapassaram o crescimento econômico global nos últimos 30 anos. A oferta e o custo desses seguros — diretamente vinculado ao risco do sinistro — poderiam baixar em função da implantação de medidas de adaptação aos desastres naturais e da construção de infraestruturas resilientes, sugere o relatório.

Na reconstrução da cidade, a remoção e realocação de famílias é uma decisão delicada. A engenheira ambiental Juliana Mitkiewicz, coordenadora do Núcleo Mulheres e Territórios do Laboratório, enfatiza que a justiça climática se torna um conceito central neste momento crítico, quando se observa que são as populações mais vulnerabilizadas que sofrem as maiores perdas em desastres naturais. “Essas comunidades, muitas vezes já marginalizadas, enfrentam a perda de suas casas, seus meios de subsistência e, em alguns casos, vidas”, observa ela. “É uma questão que transcende a simples resposta emergencial. É uma questão de equidade e de direitos humanos.”

Remoção e realocação significam mais do que apenas mover pessoas de um lugar para outro. “Estamos falando sobre desarraigar vidas, romper com laços comunitários e deslocar culturas”, ressalta Juliana. “Muitas dessas famílias serão realocadas em áreas desconhecidas, longe de suas redes de apoio e de suas histórias. Isso pode gerar um impacto profundo não apenas no bem-estar físico como também nos aspectos psicológico e social. Portanto, qualquer planejamento urbano e regulatório que pretenda ser eficaz e justo deve considerar esses pontos.”

Juliana complementa: “As decisões não podem ser tomadas de cima para baixo, sem a participação ativa e o consentimento das comunidades afetadas. Devemos garantir que as vozes dessas populações sejam ouvidas e que suas necessidades específicas sejam atendidas. Isso implica debates profundos sobre o território e a infraestrutura das cidades, considerando tanto o espraiamento quanto a verticalização, com base em estudos, dados e evidências sólidas e participação social. Somente com um enfoque inclusivo e fundamentado em justiça climática poderemos criar cidades resilientes que protejam todos os seus habitantes, especialmente os mais vulnerabilizados, das inevitáveis mudanças que o clima nos impõe”.

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