Mas não se faz isso escrevendo normas nem contratando consultores, diz o pesquisador americano Jay Barney no livro que escreveu com os executivos brasileiros Manoel Amorim e Carlos Júlio
David A. Cohen
Pesquisador conhecido por seus trabalhos sobre vantagem competitiva e estratégia, o professor e consultor americano Jay Barney veio ao Brasil em meados de maio para um projeto bastante diferente do seu usual: lançar um livro com dois coautores brasileiros (os executivos Manoel Amorim, conhecido por ter comandado a transição da Telesp, uma empresa estatal comprada pela espanhola Telefônica na época da privatização das telecomunicações, e Carlos Júlio, ex-líder de diversas empresas, professor e palestrante).
É um projeto diferente porque, em seus artigos, Jay costuma favorecer os modelos matemáticos. “Não gosto muito de exemplos, eles acabam tirando a atenção da teoria”, declarou numa das palestras que deu no Insper [leia sobre ela aqui]. No caso do livro “O Segredo da Mudança de Cultura – Como Construir Histórias Autênticas que Mudam sua Organização”, acontece o contrário. “A força do livro está nas histórias, que são esclarecedoras e muito divertidas”, disse.
O modo como esse trabalho surgiu também foi peculiar. Quando se aposentou, em 2014, Manoel Amorim fixou residência na pequena cidade de Park City, uma estação de esqui no estado de Utah, nos Estados Unidos. Era onde morava Jay Barney. Os dois frequentavam o mesmo culto mórmon, aos domingos, e acabaram se conhecendo. “Quando ele me disse que havia sido executivo-chefe de várias empresas, eu falei que a gente devia conversar e marcamos um almoço de uma hora”, lembra Jay. “Quatro horas de conversa depois, eu disse ao Manoel que ele não era um CEO, era um agente de mudança cultural.”
Até então, Jay não acreditava muito na possibilidade de mudanças culturais. Claro que as culturas evoluem, mas transformá-las de propósito… “Eu pensava neste assunto desde os anos 1980, e não achava que fosse possível”, afirmou em entrevista pouco antes da palestra de lançamento do livro. O próprio guru das mudanças organizacionais John Kotter, professor de liderança em Harvard, considera que cultura não é facilmente manipulável, e as tentativas de alterá-la sempre fracassam.
Manoel o convenceu, notando que a transformação na Telefônica Brasil foi tão dramática que virou até caso de estudo na escola de negócios de Harvard. E assim nascia a ideia do livro.
Pelos próximos meses, com a ajuda de Carlos Júlio, os dois coletaram dezenas de narrativas de líderes de organizações. “Nem todos promoveram mudanças”, alerta Jay. E, dos que tentaram, metade fracassou. As restantes compõem as 60 histórias do livro.
O modelo para promover uma mudança cultural se baseia na construção de histórias que desafiem o comportamento usual da organização e caracterizem um novo modo de atuar. “Quando essas histórias começam a circular, as pessoas ficam confusas”, diz Jay. “O que é um bom sinal.” Passado algum tempo, elas começam a encontrar o sentido das histórias, e a nova cultura começa a nascer. Para que esse processo seja bem-sucedido, as histórias têm que apresentar essencialmente seis atributos:
1) Antes de mais nada, a mudança deve refletir valores pessoais autênticos do líder. Caso contrário, os funcionários perceberão a hipocrisia e não adotarão a nova cultura.
2) O líder, seja o executivo-chefe, seja um chefe de departamento ou supervisor, precisa ser o protagonista das histórias, e elas têm de ser radicalmente diferentes da cultura antiga.
Na Telefônica, por exemplo, Manoel chamou empregados do atendimento ao consumidor para apresentar ao comitê executivo uma lista de problemas que tornavam o serviço ruim; na sequência, deu aos executivos duas semanas para formular um plano de correção de rumo, que deveria ser apresentado… aos funcionários da assistência técnica. Enquanto os problemas não fossem corrigidos, estaria suspensa a venda de assinatura de um serviço de internet — ao qual estavam ligados os bônus dos executivos, inclusive o do próprio Manoel.
Outra história que consta no livro é do presidente de uma firma de tecnologia que havia tido prejuízos que a forçaram a demitir centenas de empregados. O líder convidou a diretoria para uma celebração em um restaurante de luxo de São Francisco, mas em vez do cardápio normal foram servidos apenas pão e água. “É isso que nós merecemos”, disse a eles. Mas acrescentou que já havia reservado o mesmo local para o ano seguinte, quando tinha certeza de que teriam resultados para celebrar. E tiveram.
3) As histórias precisam desafiar a cultura vigente e construir um caminho rumo à nova cultura.
4) Elas devem engajar as mentes dos empregados — porque há uma sólida razão de negócios impelindo a mudança de cultura — e também seus corações: elas precisam estar em linha com seus principais valores e aspirações.
5) As histórias têm de ser teatrais, dramáticas. Essa característica garante que elas se espalharão mais rapidamente pela organização e serão lembradas e repetidas por muito tempo.
6) Não basta o líder criar suas histórias; ele precisa criar uma corrente de histórias, fazendo com que outros membros da organização criem também histórias em linha com a cultura que se pretende estabelecer.
Já vim algumas vezes. Há muitos anos, no Rio de Janeiro, tive uma tarde de folga, meu anfitrião me perguntou o que eu gostaria de fazer… ir a um jogo de futebol, é claro! Foi uma experiência maravilhosa.
Por serem empresas conhecidas dos brasileiros, nós sempre achamos que o livro seria especialmente atraente para o público daqui. Vou estar na França, Japão… no mundo todo. É uma mensagem global. Mas os exemplos são em grande parte brasileiros e sul-americanos.
Para mim são projetos independentes. Meus outros trabalhos são em geral puramente acadêmicos. Mas os temas se conectam. Um dos sinais que uma companhia pode enviar aos stakeholders para mostrar que está de fato comprometida com os seus propósitos é investir em uma cultura consistente com os valores deles. Então, absolutamente sim, cultura pode fazer diferença.
Lá atrás, em 1986, eu escrevi um artigo: “Pode a cultura de uma organização ser uma fonte de vantagem competitiva?”. A resposta é sim. Também pode ser uma fonte de desvantagem. Isso porque a cultura é difícil de mudar — por ser difusa pela organização, intangível.
Eu comecei a prestar atenção na cultura como um problema estratégico nos anos 1980. Naquela época eu fiz consultoria para a HP, uma empresa com uma cultura extraordinária, aberta, inovadora. Aí fui contatado por uma empresa concorrente, conhecida por ter uma cultura oposta, avessa a erros, de estrutura rígida. Queriam que eu mudasse a cultura deles… em seis semanas. Respondi que não achava possível. Quando conheci o Manoel (Amorim), ele me trouxe uma estrutura para pensar em como fazer isso.
A primeira coisa a esclarecer é que nós não dizemos no livro qual deve ser a cultura ideal, como aconteceu nos anos 1980 e 1990, quando autores preconizavam uma cultura perfeita. Isso não faz nenhum sentido para nós. Porque o valor de uma cultura depende da estratégia que você tem.
Se a sua estratégia de negócios exige controle de cima para baixo, a sua cultura deve ser hierárquica. Se ela é uma estratégia de inovação e conexão com os clientes, você precisa de uma cultura de baixo para cima.
Nós também não dizemos que quando a estratégia muda você deve mudar a cultura. Muitas vezes a cultura e a estratégia estão fora de sincronia. Isso pode acontecer por uma série de razões: mudança da gestão, nova tecnologia etc.
Às vezes dá para mexer um pouco na estratégia, ou um pouco na cultura, para alinhar as duas de novo. Nós só estamos interessados no caso em que você não pode mudar a sua estratégia e o desalinhamento continua. Nessa circunstância você tem que mexer na cultura.
Sim, é arriscado tentar mudar a cultura. Pesquisas apontam que 90% de todas as mudanças em companhias fracassam. Essa taxa deve ser ainda maior no caso de mudança cultural, porque as pessoas não têm a menor ideia de como fazê-las. Leiam o livro e vão ter. Mas não é uma garantia, há sempre risco.
A cultura é um pacote. Em princípio você poderia conseguir separar valores em torno de como tratar empregados dos valores de eficiência operacional. Mas isso não é a vida real. A vida real é um emaranhado de normas, valores, afetos, sentimentos de como as pessoas trabalham juntas. Temos quase 60 histórias no livro, e não são mudanças feitas com pincel e bisturi; são mudanças de machado. Temos que ir de local para global, de top down para bottom up. São mudanças mais absolutas, mais dramáticas.
Se por ser racional você entender sempre maximizar o retorno, estar totalmente informado, essas coisas, então a resposta é não. Mas se por racional você entender um gestor que proativamente muda sua cultura, a resposta é sim.
Tem muita coisa acontecendo numa empresa em qualquer dado momento. E um monte delas não está na direção da cultura que você quer. É por isso que o esforço tem que vir de cima — do chefe da divisão, do CEO, do reitor da universidade…Eles se engajam em atividades que os outros observam e essas observações depois viram histórias que são compartilhadas pela organização.
Mas o primeiro passo é a autenticidade. Os líderes têm que entender quais valores têm. Se você conclui que a sua organização precisa ser menos avessa ao risco, mas você não é, não vai funcionar.
Nossa conclusão é bem radical: às vezes você não é a pessoa adequada para promover a mudança. E você pode ter pessoas que sempre foram leais a você e à empresa, que geraram um valor incrível ao longo do tempo… mas que não são adequadas à cultura que precisa ser montada. Se elas não estão dispostas a mudar, você talvez tenha que as demitir.
Nós temos zero exemplo em que a mudança começou com o CEO dizendo que ia mudar a cultura. É bobagem. Conversa fiada. O que você faz é começar a se comportar de um modo muito diferente do usual, e consistente com a cultura que você quer implantar. Isso confunde as pessoas por um tempo, depois elas começam a entender o sentido.
O modelo-padrão da implementação de uma mudança cultural é: vamos reorganizar a estrutura, mudar os incentivos, mudar como medimos o desempenho, quem contratamos, como os treinamos…
Nossa pesquisa mostra: não há nenhum exemplo em que a mudança de políticas de RH tenha levado a mudança de cultura. Você muda a cultura substituindo as histórias que sustentavam a cultura antiga por histórias que sustentam a nova cultura. Depois que você faz isso, com o tempo surge uma tensão entre a nova cultura e as velhas políticas de RH. É aí que você muda as políticas.
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