Das cidades à floresta, do desemprego à lucratividade dos bancos, das anedotas às equações matemáticas, a homenagem do Insper a José Alexandre Scheinkman deu uma boa amostra do trabalho de um dos economistas mais versáteis do planeta
David A. Cohen
O que mais impressiona na obra do economista José Alexandre Scheinkman, homenageado no último dia 17 de maio em uma conferência no auditório do Insper, é a abrangência de suas contribuições. Basta observar a variedade dos trabalhos apresentados por seus ex-alunos e colegas. Entre pesquisas desenvolvidas em parceria com o próprio Scheinkman e outras influenciadas por seus trabalhos anteriores, os temas abordavam um espectro extraordinariamente amplo: desde os cenários econômicos de adaptação a tragédias como a que assolou o Rio Grande do Sul em maio até as desigualdades nas chances de aprendizado para as mulheres em grandes cidades; do impacto da digitalização na capacidade dos bancos de manter lucratividade até o desenvolvimento de um modelo econômico para ajudar a salvar a Amazônia.
Essa abrangência, segundo o próprio economista, deriva de seu quarto de século passado na Universidade de Chicago, onde ingressou em 1974, como professor assistente (para depois virar professor associado, professor titular e chefe do departamento de economia).
“Naquela época, o departamento era incrivelmente interativo”, lembra. “Não era aceitável alguém dizer que um assunto estava fora da sua área de especialidade.” Por causa disso, ele aprendeu a cruzar as fronteiras entre os subcampos da economia — e da matemática; afinal, sua habilidade com as equações havia sido burilada num mestrado no Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro, antes de partir para um doutorado na Universidade de Rochester, já casado com sua mulher, Michele Zitrin. Também entendeu, bastante cedo, que sua pesquisa seria “melhor e mais prazerosa se fosse guiada por problemas reais da economia, em vez de pelos debates internos da teoria econômica”.
Essa abrangência, porém, Scheinkman não recomenda que os atuais estudantes busquem. “Por não ter aprofundado o desenvolvimento dos meus próprios trabalhos, meu currículo pode dar a impressão de que eu sofro de déficit de atenção”, brincou em seu pronunciamento, ao final da cerimônia de homenagem por seus 75 anos (completados no ano passado).
Scheinkman se identifica, portanto, com o campo das raposas no famoso ensaio “O ouriço e a raposa”, definido pelo filósofo britânico Isaiah Berlin como “daqueles que perseguem vários objetivos, frequentemente não relacionados e às vezes contraditórios”. Do outro lado estão os ouriços, uma oposição que Berlin tomou emprestado de um fragmento do poeta grego Arquíloco (século VII a.C.): “a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande coisa” (Berlin aloca neste último campo os pensadores que “relacionam tudo a uma única visão central, um sistema mais ou menos coerente ou articulado”).
Foi quando se mudou para a Universidade de Princeton, em Nova Jersey, a pouco mais de uma hora de distância de Nova York, que Scheinkman se deu conta de que sua estratégia de carreira talvez não fosse a mais apropriada. “Na minha primeira reunião da faculdade, em que discutíamos a concessão de cargos, alguém perguntou se um candidato era o melhor em sua área de estudo”, contou ele. Seu pensamento imediato foi: “por qual área será que eles me contrataram?, eu não sou o melhor em nenhuma, fico sempre mudando…”
Um caminho assim torna mais difícil ser reconhecido, afirmou Scheinkman. Mas há quem discorde, é claro. Não à toa, Scheinkman é conhecido como um “economista dos economistas”, na definição de seu ex-aluno e colaborador Aureo de Paula, da University College London: alguém cuja visão aberta, aliada a um grande poder de análise, torna um parceiro ideal para trabalhar.
De acordo com Lars Hansen, prêmio Nobel de Economia de 2013 e parceiro assíduo de Scheinkman desde os tempos da Universidade de Chicago (onde ele ainda está), a importância do amigo pode passar despercebida dele mesmo, mas se faz sentir de formas inesperadas e duradouras.
“Dei um seminário certa vez sobre meus trabalhos em teoria da decisão em ambiente de incerteza”, recordou Lars, em palestra por videoconferência. “A pesquisa estava nos seus estágios iniciais, e José me disse: ‘você está pensando demais nesse problema, tornando-o mais complicado do que precisa ser’. Eu meio que concordei e mudei minha visão sobre o assunto; depois conversei com outros teóricos do campo da decisão, que levaram as ideias ainda mais longe e escreveram um dos melhores artigos no campo nas últimas duas décadas — no qual mencionaram a minha pesquisa no resumo inicial.”
Aquela conversa com Scheinkman, resumiu Lars, “afetou não só o meu trabalho, mas fez outros pesquisadores mudarem a direção dos seus estudos”. Scheinkman, em seguida, protestou contra essa história. Disse que, sim, nos velhos tempos, quando Lars surgia com uma perspectiva surpreendente de algum problema, ele costumava dizer que aquilo era complicado demais. “Mas em geral ele estava era simplificando a questão. Isso foi uma exceção, como um relógio quebrado que acerta as horas duas vezes por dia.”
Se pode ser escalado no time das raposas, Scheinkman é uma raposa peculiar — que criou e desenvolveu vários ouriços. Um exemplo é Edward Glaeser, da Harvard University, um economista cuja ascensão profissional teve velocidade compatível com a rapidez de sua fala. Único economista que publicou um artigo com Scheinkman enquanto ainda era seu aluno, Glaeser é hoje chefe do departamento de economia de Harvard e diretor do programa de estudos sobre cidades do International Growth Centre, um centro de pesquisas britânico.
“Ele me levou, como se fosse uma mão invisível, a estudar as cidades, que têm sido o meu trabalho da vida inteira”, declarou. Dedicar-se a uma única área, contudo, não significa deixar de lado a variedade. Em sua palestra, Glaeser falou da diferença no número de mortes por covid entre as áreas com gente mais educada e menos educada (quatro vezes maior nestas últimas); da falha em prover proteção a mulheres empreendedoras na Zâmbia; de comparações de felicidade entre homens com diferentes faixas de renda e o salto de insatisfação que vem com o desemprego (mostrando que o trabalho não é só fonte de renda, mas também fonte de relações sociais); da avaliação dos movimentos de crianças, apontando que as mais ricas têm uma experiência da cidade muito diferente das mais pobres; de um estudo sobre a segregação entre empregados de baixa qualificação e de alta qualificação, com base em dados do Brasil (nas empresas do sul os menos qualificados têm mais contato com os de maior qualificação, dando-lhes maior chance de ascensão do que nos estados do norte). Tudo isso em apenas meia hora. Não admira que fale tão rápido.
A variedade no caso de Scheinkman, porém, é de outra ordem de grandeza. “Seu trabalho é tão extenso que chega a ser difícil sistematizá-lo”, escreveram Marcos Lisboa e Vinicius Carrasco, no artigo inaugural de uma série dedicada a Scheinkman no ano passado. E é uma variedade com impacto: “da teoria do crescimento econômico à organização industrial, de finanças e bolhas especulativas à economia urbana e interação social, sua pesquisa já recebeu quase 50.000 citações científicas”.
Há dez anos, num jantar em homenagem a Scheinkman na Universidade Columbia (para onde ele se mudou em 2013), entre os menos de 30 participantes havia quatro que ganharam ou ganhariam em seguida o Prêmio Nobel de Economia. Nos dez anos seguintes, dizem Marcos e Vinicius, Scheinkman produziria mais 11 artigos científicos relevantes, três deles publicados pelo Journal of Finance, o mais prestigiado das finanças.
Em seu ensaio, Isaiah Berlin coloca no campo dos ouriços gente como Platão, Hegel, Nietzsche, Proust, em variados graus. No campo das raposas estariam Aristóteles, Goethe, Balzac. Mas o escritor russo Leon Tolstói desafia essa classificação: “quando chegamos ao conde Liev Nikolaievitch Tolstói e perguntamos se ele pertence à primeira ou à segunda categoria, se é um monista ou um pluralista, se sua visão é do um ou dos vários, se ele é de uma única substância ou composto por elementos heterogêneos — não há uma resposta clara ou imediata”.
É evidente, como alerta o próprio Berlin, que qualquer separação esquemática não resiste por muito tempo à força da realidade: toda raposa tem algo de ouriço e vice-versa. O caso de Scheinkman, entretanto, talvez se assemelhe mais ao de Tolstói, que desafia a dicotomia mesmo em seu nível mais básico. Ele tem múltiplos interesses, mas atinge um nível de profundidade incomum em cada um deles.
E há, num nível mais essencial, algo que liga todas as contribuições de Scheinkman, conforme afirmou Guilherme Martins, presidente do Insper, em sua apresentação. É que ele “sempre nos desafia a questionar nossas premissas, a lidar com problemas complexos e buscar soluções inovadoras”. Além disso, prosseguiu, tem por hábito inspirar inúmeras mentes jovens a explorar novas fronteiras. São qualidades que estão na missão do próprio Insper, não por acaso uma instituição que Scheinkman apoia intelectualmente e por meio de doações para bolsas de estudo.
É sintomático que quase todos os economistas comecem pensando nele como o professor Scheinkman e, em pouco tempo, como lembrou Juliano Assunção, da PUC-RJ, passem a chamá-lo de José Alexandre, José ou simplesmente Zé.
Apresentar um panorama das contribuições de Scheinkman, como se vê, seria uma tarefa inevitavelmente incompleta. A opção dos organizadores, liderados por Rodrigo Soares, vice-presidente de assuntos acadêmicos do Insper, foi separar as apresentações em quatro blocos: finanças, interações sociais, teoria e métodos e, por último, economia brasileira. Ao final, houve ainda uma sessão de reflexões sobre a vida acadêmica, aberta por Pedro Moreira Salles, acionista do Banco Itaú-Unibanco, seu amigo desde o início deste século.
A variedade na obra de Scheinkman pode ser medida ainda por outro ângulo. As apresentações no auditório do Insper atingiram diversos graus de complexidade, da enumeração e explicação de fatos cotidianos até a formulação de equações incompreensíveis para leigos (ou mesmo para estudiosos menos experientes). Foi, em si, uma demonstração de como, no dizer de Marcos Lisboa e Vinicius Carrasco, “sua contribuição se destaca por uma rara combinação de erudição com argumentos precisos que permitem verificar a robustez das conjecturas”.
De acordo com Lars Hansen, Scheinkman representa bem a Universidade de Chicago no seu auge. “Acho que isso tem a ver com levar a economia muito a sério, não respeitando nenhum tipo de fronteira entre subcampos, e ser bem amplo no pensamento econômico. Além disso, ele se importa muito com o Brasil e deu muitas contribuições ao país.”
O aspecto de brasilidade é também notável. Sua gentileza e facilidade no trato são características que gostamos de associar à nossa cultura. Para além disso, Scheinkman demonstra um certo “jeitinho”, não só pela criatividade como também pela identificação de frestas nas regras acadêmicas.
“Meu trabalho sobre ICMS”, lembrou Aureo de Paula, “analisava como esse imposto em cascata, que permite deduzir a parte do imposto já paga por um fornecedor, cria um incentivo para que empresas formais se conectem com outras empresas formais (e informais com informais)”. Quando chegou a hora de dar um título ao artigo, Scheinkman contou que sua pesquisa com o título bastante geral de “Crescimento nas cidades” teve muitas citações e, com base nisso, recomendou que ele fosse chamado de “Setor informal”. Esse foi o título do working paper, trocado pelo editor quando o artigo foi publicado. Resultado: o artigo provisório teve mais citações do que a versão publicada.
Em seus muitos anos em universidades consagradas, Scheinkman também ajudou a abrir portas para que vários estudantes brasileiros frequentassem centros de estudos de ponta no mundo.
Talvez mais importante que tudo isso, colocou a mão na massa. Ou melhor, colocou sua massa cinzenta a serviço do país. Como recordou Marcos Lisboa em sua apresentação, Scheinkman o contatou em 2002 para colaborar na elaboração de uma proposta para o então candidato a presidente Ciro Gomes. Marcos contrapropôs que fizessem um documento destinado a todos os candidatos, que acabou se tornando um guia para avanços institucionais significativos nos anos seguintes.
“Nós fizemos uma reunião com diversos economistas, mas todos tinham que seguir as regras do Zé”, disse Marcos. “Quando alguém era chamado a opinar sobre um ponto, qualquer um podia objetar — mas só se apresentasse uma solução alternativa.” Em poucas noites de trabalho, o documento — “A Agenda Perdida” — estava pronto. Foi depois acatado e ampliado pelo ministro da Fazenda Antonio Palocci, no governo do presidente Lula. A versão final acabou com cerca de cem páginas. E Marcos foi chamado a participar do governo, como secretário de política econômica do Ministério da Fazenda. “Como um irmão mais velho, sempre ali para me apoiar, o Zé promoveu encontros no Brasil e iniciou uma coluna na Folha de S. Paulo, explicando a direção da economia.”
Mais recentemente, Scheinkman se envolveu com outra questão crucial para o país: a proteção da Amazônia em particular, do meio ambiente em geral. Chamado por Juliano Assunção e João Moreira Salles a pensar em alternativas para a floresta no projeto Amazônia 2030, o economista arregimentou seu amigo Lars Hansen. A dupla foi fundamental para estabelecer um caminho de valorização das matas.
“Nós não só desmatamos quase 20% da floresta, nós também fizemos isso praticamente por nada”, disse Juliano. “Uma grande parte da área desmatada foi simplesmente abandonada.” A boa notícia é que essa área começou a voltar a crescer, de forma natural, sem nenhum tipo de intervenção humana. É a floresta retomando seu espaço.
A partir daí, Scheinkman e seus colegas calcularam os retornos da atividade mais nociva à floresta — a pecuária — e concluíram que, ao preço de 25 dólares por tonelada de carbono capturada, no mercado internacional de créditos de carbono (em que empresas ou países pagam para compensar suas emissões de gases), a Amazônia poderia arrecadar cerca de 375 bilhões de dólares em 30 anos. Muito mais do que as atividades de depredação.
Além desta pesquisa, Scheinkman funciona como um motor para outras colaborações. “Em quatro anos, o projeto já tem mais de 60 artigos publicados e uma rede com mais de 100 pesquisadores envolvidos”, afirma Juliano.
Por trabalhos como este, o economista Harrison Hong, da Universidade Columbia, expressou sua surpresa com a homenagem a Scheinkman. “Essa cerimônia é um pouco estranha para mim”, disse. “Está certo celebrar as contribuições do José no passado. Mas o que eu vejo é que ele está em plena atividade, ativo como sempre.”