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Davi contra Golias: a carne é forte

Destronar a indústria de alimentos de origem animal é difícil. Ainda mais quando ela própria começa a produzir “carne sem carne”, para competir com as startups que a desafiam, aponta um estudo de professor do Insper

Destronar a indústria de alimentos de origem animal é difícil. Ainda mais quando ela própria começa a produzir “carne sem carne”, para competir com as startups que a desafiam, aponta um estudo de professor do Insper

 

David A. Cohen

 

Depois de alguns anos de crescimento exuberante, a vida não está mais tão fácil para as startups que produzem “carne alternativa”, os alimentos à base de plantas que buscam imitar o sabor da carne (comumente chamados de plant-based meat). Em pouco mais de uma década, elas levantaram quase 15 bilhões de dólares em venture capital; mas com o ambiente de juros mais altos e uma nova disciplina dos fundos de investimentos, a atração de recursos caiu ao nível mais baixo em dez anos, de acordo com a empresa de análise de aplicação de recursos Pitchbook.

Há vários motivos para isso.  Mas um obstáculo crescente tem sido a reação da indústria de alimentos de origem animal: várias empresas vêm lançando seus próprios produtos plant-based.

“O mercado plant-based cresceu muito nos últimos anos”, diz Vinicius Picanço Rodrigues, professor de sustentabilidade e operações do Insper. “Nas gôndolas dos supermercados, a gente já encontra uma gama maior de diferentes produtos de startups especializadas nisso.” Porém, sublinha o professor, “também encontra produtos de gigantes do setor de carnes, que criaram linhas alternativas, à base de vegetais, dentro de seu portfólio”.

É uma concorrência assimétrica, dado o poder das grandes indústrias de alimentos. Tanto que o estudo para avaliar essa competição, que Picanço realizou com Germano Glufke Reis e Eduardo Guedes Villar, da Universidade Federal do Paraná; e Tony Ryynänen, da Universidade de Helsinque, foi intitulado “David vs Goliath: The challenges for plant-based meat companies competing with animal-based meat producers” (David vs Golias: os desafios para companhias plant-based competindo com produtores de carne animal-based).

“A ideia foi comparar preço, disponibilidade e promoções de produtos das duas origens, uma vez que muitas das grandes empresas entraram no setor de proteínas alternativas com uma justificativa de sustentabilidade”, diz Picanço. “Para diferenciar as empresas que já nasceram sendo exclusivamente focadas em carne alternativa daquelas tradicionais que produzem carne animal, nós criamos o termo Plant-Based Exclusive (PBE)”, nota.

 

O dobro do preço

A primeira observação digna de nota, para os pesquisadores, foi que o número de companhias PBE (as startups dedicadas à carne alternativa) era bem maior que as companhias processadoras de carne (MPC). No entanto, sua heterogeneidade em relação à oferta de produtos plant-based era também muito maior: das 11 empresas estudadas, sete tinham participação abaixo de 5% dos artigos de carne alternativa. O estudo avaliou as ofertas nas lojas online de cinco cadeias de supermercados brasileiras.

O número maior de empresas PBE faz sentido, porque o mercado de produtos de origem animal já é mais consolidado, enquanto o de produtos com base vegetal está mais aberto à chegada de startups. A concentração na participação de mercado, contudo, sugere que “o setor de carne de origem vegetal arrisca seguir o mesmo padrão de concorrência que o mercado de produtos de origem animal, dominado por um pequeno número de grandes companhias multinacionais”, afirmam os pesquisadores no estudo.

E, nesse setor, as MPC têm levado vantagem. De acordo com os resultados da pesquisa, os produtos das PBE são em média 6% mais caros que os produtos de carne vegetal das MPC.

Na comparação com os produtos de carne, as diferenças são muito maiores. Em média, os artigos de carne plant-based das MPC são 91% mais caros que seus artigos de origem animal. Os das PBE são 116% mais caros (preços por quilo do produto).

Não apenas os preços são muito maiores, os supermercados ainda oferecem muito mais promoções para os produtos derivados de carne animal. A taxa de descontos ou incentivo a multicompras é similar entre carnes plant-based das PBE ou das MPC, 11,01% e 11,30% respectivamente). Para as carnes de origem animal, ela é o dobro: 22,44%.

Além de haver mais promoções, elas são maiores. O desconto médio para carnes de origem animal é de 30,50%, de acordo com o estudo com participação do Insper; para as PBE, o desconto médio é de 21,65%.

 

Os obstáculos aos plant-based

“O preço é um fator preponderante”, afirma artigo de fevereiro da revista Fortune, referindo-se às dificuldades que as startups de carne alternativa enfrentam. E a discrepância que a reportagem encontrou entre os preços de produtos de origem animal e vegetal nos Estados Unidos é muito menor: cerca de 30%. Imagine então quando o preço é praticamente o dobro, como no Brasil.

Segundo uma pesquisa da ONG americana Good Food Institute (GFI), que promove alimentos alternativos aos de origem animal, os consumidores estariam dispostos a pagar apenas entre 5% e 10% a mais por carne alternativa.

Em tese, isso não deveria ser tão difícil. Afinal, a maioria dos ingredientes dos artigos de carne alternativa são razoavelmente baratos: arroz, soja, grãos… O problema são os acréscimos finais, para dar um gosto parecido com o da carne. “Para tentar imitar as características de derretimento da gordura de um animal de verdade com as gorduras vegetais, todos aqueles pequenos componentes adicionados contribuem tanto para uma longa lista de ingredientes quanto para o aumento de custo dos produtos plant-based”, disse à revista o engenheiro mecânico Saba Fazeli, que trabalhou na startup Beyond Meat e há pouco tempo decidiu montar sua própria firma de carne alternativa.

Há ainda a questão da escala. “Os preços mais elevados dos produtos de carne plant-based podem ser também explicados pelos custos da cadeia produtiva, como desenvolvimento de produtos, fornecimento de proteína vegetal, tecnologias de extrusão, aquisição de ingredientes, embalagem e distribuição”, afirma o estudo, citando artigos de outros pesquisadores. “As companhias menores e as startups podem ter custos maiores de desenvolvimento, produção e distribuição, menos acesso a recursos financeiros e menor poder de barganha com os supermercados do que as grandes MPC.”

O outro grande obstáculo para a adoção de carne plant-based, o gosto, é a principal razão para os consumidores (pelo menos os americanos, mas supõe-se que seja assim em outras partes do mundo) resistirem a experimentar os produtos ou não voltarem a comprá-los novamente, de acordo com a GFI. Para vencê-lo, é preciso continuar investindo em tecnologias e pesquisas de ingredientes.

“Aqui no Brasil, a Embrapa é um dos exemplos de iniciativas que buscam avaliar ingredientes como insumos para produtos de proteínas alternativas”, lembra Picanço. “Mas existe um oceano de oportunidades para explorar, dada a nossa rica biodiversidade”

É normal que isso demore um pouco. Como declarou a Impossible Foods, uma startup PBE, recentemente, “a categoria plant-based está apenas começando; produtos análogos à carne como os nossos estão disponíveis há menos de uma década e de forma massificada há uns poucos anos”. Como defende a GFI, a estratégia de “biomimetizar” a carne começou em 2012, com as tiras de frango da Beyond Meat, e só começou a decolar em 2016, com o lançamento do Impossible Burger e do Beyond Burger, os primeiros a atingir pontos de venda tradicionais.

Ainda assim, a sensação é de que os avanços deviam ser mais rápidos. “A essa altura, os plant-based já deveriam estar bem mais populares”, avalia Picanço.

 

Mercado em expansão

Apesar dos percalços — tanto a Beyond Meat quanto a Impossible Foods experimentaram uma queda na demanda em 2022, de acordo com a consultoria Grand View Research, e em abril a PBE neozelandesa Sunfed anunciou que encerrará suas operações porque “a bolha do plant-based estourou” e os investidores não estão mais interessados —, as previsões de crescimento do mercado ainda são excelentes. Segundo a Grand View Research, o mercado global de carne plant-based movimentou 5,23 bilhões de dólares em 2023 e deve atingir 24,8 bilhões de dólares em 2030, quase cinco vezes mais.

Considerando todo o segmento de substitutos da carne (incluindo as plant-based mas também as vegetarianas, que incluem ovos e derivados do leite), a Statista, uma plataforma alemã de apresentação de dados de mercado, aponta um mercado de 11,38 bilhões de dólares este ano, com previsão de crescimento de 10,20% ao ano pelos próximos quatro anos.

Esse crescimento é explicado pela crescente conscientização de que nosso modelo de alimentação não é muito sustentável. “O debate que ajudou a motivar o estudo tem questões cruciais como a grande parcela de emissões de carbono e a perda de biodiversidade causadas pela produção de carne em larga escala”, afirma o professor do Insper.

Embora o tamanho do mercado seja minúsculo em relação ao 1,4 trilhão de dólares movimentado globalmente pela indústria de carne de origem animal, não é algo que se possa ignorar. Isso explica a movimentação dos “Golias” a que o estudo se refere, das grandes companhias de carne.

Sua estratégia segue as recomendações dadas no início do milênio pelo guru da inovação Clayton Christensen, que ficou famoso ao apontar o “dilema do inovador”: empresas dominantes percebem a existência de startups que oferecem soluções piores, mas mais baratas, que atendem uma parcela marginal de seus clientes; para elas, no entanto, não vale a pena entrar nessa concorrência… até que a tecnologia avança, a qualidade dos inovadores melhora e eles sofrem uma “disrupção”.

Uma das soluções que Christensen indicou para as grandes companhias foi, em linhas gerais, criar divisões separadas, independentes, para concorrer com as startups em seu próprio terreno. Assim, se a tecnologia inovadora vingar, elas têm uma boa chance de ser destronada por si próprias — o que pode não ser nada confortável, dado que a divisão tem uma estrutura e uma cultura muito diferentes da matriz, mas é infinitamente melhor do que ser eliminadas por concorrentes.

É mais ou menos isso que têm feito as MPC. A JBS, por exemplo, criou uma divisão que faz pesquisas e é responsável pela criação de produtos plant-based.

 

Possíveis incentivos

Embora as grandes MPC tenham se movimentado nesse sentido, elas não têm uma vocação natural para promover a transformação alimentar que as startups propõem. Daí decorre um problema de transparência. “Nos relatórios anuais, as menções aos produtos plant-based ainda são muito pontuais ou inexistentes, sem dados concretos e que nos permitam fazer uma análise mais clara”, diz Picanço. “Não se sabe o percentual de produção, nem dos resultados gerados, ainda que a maioria das grandes empresas use essa parte do portfólio para afirmar seus compromissos com a sustentabilidade.”

Nessa briga de David contra Golias, não se trata de torcer pelo mais fraco. “Não é uma questão de startup ou grande empresa”, esclarece Picanço. “O que importa é criarmos as condições de transição para um sistema alimentar mais justo, sustentável e ético.”

Daí vêm algumas das recomendações do estudo:

⇒ legisladores e órgãos do governo deveriam estimular o desenvolvimento e a expansão das PBE por meio de três linhas principais de ação: investir em pesquisa, prover fontes de capital e investir no aumento de volume de oferta e iniciativas cooperativas;

⇒ devem-se criar exigências de que os relatórios financeiros das grandes empresas de carne (as MPC) reportem as vendas dos produtos plant-based em separado da dos de origem animal, para promover transparência e sustentabilidade;

⇒ as MPC deveriam fazer parcerias com organizações focadas em sustentabilidade para melhorar suas práticas;

⇒ futuros estudos podem investigar se e como as informações sobre as diferenças entre PBE e MPC influenciam as decisões de compra dos consumidores;

⇒ futuros estudos podem explorar formas de os supermercados e as companhias promoverem a expansão dos produtos plant-based por meio de marketing dentro das lojas.

“A competição entre PBE e MPC é saudável”, avalia Picanço. “As startups desafiam o status quo do setor e as grandes respondem investindo em novos produtos.” Para dar mais dinamismo a esse jogo, afirma ele, “seria interessante, para o Brasil, como líder de agro, ter políticas claras de incentivo às proteínas alternativas, pilar fundamental da transição para um sistema alimentar sustentável e um dos maiores desafios globais”.

 


Leia o estudo:

David vs Goliath: The challenges for plant-based meat companies competing with animal-based meat producers

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