A trajetória de Allyne Andrade e Silva, advogada, professora do Insper e com um histórico de luta pela igualdade racial e de gênero
Bárbara Nór
Nascida e criada em Realengo, na periferia do Rio de Janeiro, Allyne Andrade e Silva, advogada e professora no Insper especializada em direitos humanos e políticas públicas, aprendeu desde cedo a importância dos estudos. “Meu pai dizia: ‘nossa herança para vocês é educação”, lembra Allyne. Contador, o pai foi o primeiro a se formar na família. A mãe também se formou na faculdade, em Gastronomia, e o irmão de Allyne, em Engenharia Eletrônica. “Sempre li muito. Meu pai assinava jornal, clube do livro, levava a gente ao cinema e ao teatro.”
Hoje, com uma trajetória dedicada à luta pela igualdade racial e de gênero, Allyne segue colocando em prática o que aprendeu na infância: a educação pode transformar vidas. Como ativista, ela já atuou em uma série de movimentos negros e estudantis. Hoje é integrante do movimento de mulheres negras no Brasil, membro da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB/SP, da Articulação Justiça e Direitos Humanos (JUS-DH), da Coalizão Negra por Direitos, da Associação de Mulheres Negras Aqualtune e é associada do Advocacy Hub.
Por outro lado, ela também nunca parou de estudar: mestre e doutora em Direito pela USP e com um LL.M em Teoria Crítica Racial pela Escola de Direito da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, nos Estados Unidos, Allyne segue aprendendo como professora. “Tem sido uma troca muito interessante no Insper. Entro em contato com profissionais de diversos setores interessados em ver o que eles podem fazer, do lado deles, para contribuir para a sociedade.”
A seguir, veja o relato da professora sobre sua trajetória:
Meu sonho era ser jornalista. Desde criança eu era fã da Glória Maria, sonhava em viajar. Minha família me criou para a universidade, mas minha mãe me falou para fazer o ensino médio técnico em processamento de dados. Ela disse: ‘informática é o futuro, não vai ser ruim você ter um conhecimento um pouco melhor disso’. Então fui fazer o ensino técnico. Meu estágio na escola técnica foi no Tribunal Regional da 2ª região do Rio de Janeiro. Eu ficava assistindo às audiências, prestando assistência para os assessores dos magistrados, conversava muito com eles. Eu ia para o TJ, acompanhava os advogados. Fiquei encantada com aquilo e resolvi que ia prestar vestibular para Direito.
Pouco antes de eu entrar na faculdade, estavam sendo discutidas as primeiras políticas afirmativas de ensino superior no Brasil. Nessa época [2003], minha tia, que sempre foi muito religiosa, ouviu uma entrevista em uma rádio católica o Frei Davi dizendo que havia um grupo para o qual chamavam jovens negros interessados em ir para o ensino superior. Minha tia falou para ir, disse: “é coisa de padre, é coisa séria, não é bagunça — você gosta de estudar, por que você vai lá ver o que é?”. Eu fui e era uma reunião da Educafro. Eles ajudavam jovens negros a ingressar no ensino superior, tinha cursinho pré-vestibular, parcerias para ter bolsas de estudos. Eu me encantei com aquele grupo de pessoas que queriam transformar a vida por meio da educação. Em pouco tempo eu já era coordenadora de pré-vestibular comunitário. Eu mesma já tinha prestado vestibular nessa época [em Direito, na UERJ], então meu ativismo começou antes da graduação.
Fui aluna de vaga afirmativa na UERJ, onde entrei em 2004. Foi um processo difícil, tinha muito preconceito sobre como seriam esses alunos chamados de cotistas. Desconfiavam se a gente ia conseguir passar na OAB, esse tipo de coisa. Para mim, estar organizada coletivamente, ter colegas no curso, uma rede apoio tanto dentro da sala quanto nos movimentos, foi muito importante. Com o tempo, essa questão da discriminação foi se diluindo pela nossa organização e pelos nossos resultados como estudantes. Depois saíram várias pesquisas mostrando que nossos resultados acadêmicos eram superiores a alunos que não eram de vagas afirmativas.
Mesmo antes de entrar na faculdade eu já participava das discussões da lei de cotas. Fui para a audiência pública sobre a lei, participei das discussões. É uma aposta na educação: quando você tem acesso a um ensino bom, isso pode mudar sua vida. Eu mesma tive acesso a muita coisa a partir do ingresso no ensino superior, por isso sou entusiasta de ações afirmativas, de programas de bolsas e de diversidade. Considero que a gente venceu esse debate sobre ações afirmativas, com a constitucionalidade declarada no Supremo. A discussão sobre democratização do ensino superior não envolve apenas reserva de vagas. Claro que tem várias questões de permanência do aluno no ensino superior. Foi um desafio, mas a gente queria muito e estava muito comprometida a dar certo, porque a gente sabia da importância disso para o país. Por isso defendo muito o programa de bolsas do Insper, suas vagas étnico-raciais. É um programa muito bom que precisa ser conhecido, apoiado e ampliado. Além disso, eu coordenei a área de diversidade da escola, ao lado de Bruna Arruda, tendo como sponsor Marcelo Orticelli, vice-presidente da escola. Sou membro do Comitê de Diversidade, Equidade e Inclusão desde que ingressei no Insper
Eu me formei em 2009. Levei seis anos para fazer a graduação porque fiz um intercâmbio no meio — morei um ano no Japão. Na UERJ havia um professor de direito tributário, José Marcos Domingues, que foi o primeiro brasileiro não descendente de japoneses a estudar no Japão. Ele manteve uma relação muito longa com o país e por isso conseguiu uma bolsa para estudantes de Direito ir para lá. Era um intercâmbio que tinha bolsa, e pensei que essa era uma oportunidade de fazer uma viagem que eu não conseguiria fazer sozinha.
Eu também queria muito conhecer mais do mundo, me expor ao estudo de relações internacionais. Gostava muito da cultura japonesa, achei que era boa ideia fazer. Foi muito importante, eu nunca tinha ido para o exterior. Se o movimento negro me deu uma vivência de formação de gênero e raça e uma reflexão do direito a partir da realidade brasileira, o Japão me permitiu ter uma convivência com muita gente de fora. Havia muito europeu, africano, árabe. Isso me ajudou a ter uma visão mais global das desigualdades, de outas formas de pensar o desenvolvimento e o direito. Fiz amizades duradouras e aprendi muito. Isso me ajudou a me tornar a acadêmica que sou hoje.
Fiquei na Educafro até 2006. Depois comecei a participar de uma série de outros movimentos negros ligados à luta por acesso e permanência no ensino superior. Fui do movimento estudantil negro, depois fui migrando para o movimento das mulheres negras, discutindo inclusão, diversidade, equidade racial e gênero. Foi muito importante fazer parte disso porque o movimento negro brasileiro é um movimento educador, era uma preocupação grande em formar a juventude negra, formar líderes.
A gente fazia ativismo, mas estudava textos clássicos sobre questão racial, desigualdades. Consegui participar de conferências sobre políticas públicas, pude entender como era a discussão de controle e participação social, apoiar a construção de políticas. Essas foram coisas que não tive na faculdade. Isso me permitiu pensar o Direito a partir dessa reflexão da realidade brasileira, algo que incorporei no meu mestrado, que tratou de Direito e Políticas Públicas, na USP, e foi lançado como livro depois.
Esse meu papel como ativista de direitos humanos e como acadêmica me ajudou a fazer uma ponte entre esses dois mundos, ver o que a gente pensa juridicamente de um lado e, de outro, como o direito afeta a vidas de pessoas e como elas lutam para que o direito se aproxime da realidade delas. No meu mestrado na USP, estudei direitos humanos e políticas públicas. No doutorado, também na USP, estudei teoria crítica racial, uma área do direito que nasceu nos Estados Unidos, mas que tem acadêmicos no Brasil, na África do Sul e na Colômbia e que olha para como o direito cria ou mantém desigualdades raciais e de gênero. Nos Estados Unidos, houve um sistema de segregação racial legal. No Brasil, não tivemos isso, mas tivemos um direito que criou seletividade racial e que foi e permanece instrumento em alguns momentos para desigualdades. Como a teoria crítica racial surgiu nos Estados Unidos, decidi fazer depois um outro mestrado, um LL.M, na Universidade da Califórnia. Fiquei um ano nos Estados Unidos e foi uma outra experiência superimportante. Fui exposta a intelectuais, profissionais de vários países. Havia gente muito jovem também. Valorizo muito o contato com as pessoas e ver como elas sentem e entendem o direito na vida delas.
Durante todo esse tempo de mestrado e doutorado, eu segui trabalhando na sociedade civil. Fui advogada de algumas organizações, assessora de projetos em áreas diferentes da justiça criminal, de educação e implementação de políticas públicas. Fui coordenadora jurídica da deputada Erica Malunguinho, primeira deputada trans no estado de São Paulo. Também trabalhei com advocacy, que é estratégia para ajudar grupos e coletivos a conseguirem efetivar seus direitos por meio de políticas públicas, defender um determinado direito, buscar reparação a uma determinada violação. Saí do meu mestrado nos Estados Unidos sonhando em estar em uma universidade que valorizasse minha experiência profissional e em que eu pudesse ser professora também. E foi isso que encontrei no Insper, na época em que estava surgindo o curso de Direito.
No Insper desde 2021, atuo no mestrado e nos cursos de educação executiva de políticas públicas, e na graduação de Direito com organizações da sociedade civil. Além disso, dou aulas nos cursos executivos, pensando políticas públicas. Eu tenho achado muito legal esse diálogo com o mercado. A gente tem alcançado profissionais de empresas muito representativas do mercado brasileiro. É um grupo interessado em ver como o mercado pode contribuir para a mitigação de mudanças climáticas, para criar diversidade, oportunidades raciais, desenvolvimento. Acho que ainda falta muita coisa e tem muito para se construir e tem muita empresa que ainda faz só de “fachada” e não compreende o pessoal inovador do tema, mas percebo nas turmas, nos nossos estudantes, um interesse genuíno. Creio que o comprometimento deles faz e vai fazer diferença no mundo corporativo. Nesse curso temos muitas edições, com muita gente, de setores muito diferentes. Eu ensino, mas aprendo muito também com essas pessoas, e tem sido um privilégio ter essa troca. Acho que é uma força muito potente.