Crescer demais, ganhar demais, apoiar-se em uma inovação facilmente copiável — o fracasso da empresa de coworking é repleto de lições para os empreendedores
David A. Cohen
Um dos pontos mais característicos da cultura das startups é a ambição de promover mudanças radicais: criar uma ruptura em modelos de negócios tradicionais e, nos melhores dos casos, transformar a cultura da sociedade. Obviamente, o índice de sucesso não é assim tão alto. E, mesmo quando a cultura efetivamente muda… a empresa que mais apostou na inovação pode ficar para trás.
Poucos casos exemplificam isso tão bem quanto o da WeWork. Justamente no mundo pós-pandemia, quando faz mais sentido a sua proposta de flexibilidade de horários e locais de trabalho por meio do aluguel de espaços de coworking, ela se afundou em crise, a ponto de ter sido obrigada a pedir recuperação judicial nos Estados Unidos, em novembro de 2023.
De um fundador alucinado até um modelo de negócios equivocado, não faltam motivos para o fracasso da empresa — justamente no momento em que diversos concorrentes, e até mesmo suas próprias operações em vários países, como o Brasil, conseguem não apenas se manter como aumentar os lucros.
Entender as mazelas da WeWork, portanto, é crucial para qualquer candidato a empreender. Até porque, como explica Marcelo Nakagawa, professor de inovação e empreendedorismo do Insper, “os problemas que ela enfrentou acontecem em várias startups”. Eis, portanto, algumas das lições que se podem extrair do colapso da WeWork:
Grande parte desses problemas deriva de um dos mantras das startups: é preciso crescer de forma exuberante. A lógica vai bem além da busca de economias de escala. Trata-se do conceito de efeito de rede: quanto mais gente estiver vinculada à empresa, mais valor ela tem. Isso acontece em especial com plataformas: empresas que conectam usuários de um público com outro. Se você tem um aparelho de telefone, ele praticamente não vale nada, porque não há ninguém com quem se comunicar. À medida que mais e mais pessoas se conectam, torna-se quase obrigatório aderir à rede.
Mesmo se o poder de atração original da rede arrefece — como aconteceu com o Facebook, por exemplo —, o custo de abandoná-la é alto demais; você não quer perder os contatos e o histórico de experiências que tem ali.
Não é tão claro, no entanto, que a WeWork se beneficiasse dos efeitos de rede. Ainda assim, a empresa investiu avidamente nessa lógica. Em sua busca de crescimento acelerado, a WeWork chegou a ter uma dívida de quase 19 bilhões de dólares para sustentar mais de 750 locações em 39 países. Daí vinha uma senhora complicação: a maior parte dessas locações era feita em contratos de longo prazo.
“Havia um descasamento de fluxo de caixa”, avalia Nakagawa. “A empresa fazia contratos de longo prazo, que esperava honrar com aluguéis de curto prazo nos coworkings.”
A ideia básica não era ruim, ao contrário. A WeWork ficou famosa por buscar prédios degradados, fazer um retrofit (uma restauração que preservava a arquitetura original), criar uma atmosfera ao mesmo tempo simples, versátil e atraente… e alugar os espaços para diversos locatários, a preços bem mais altos que os de escritórios tradicionais.
Por que ela conseguia cobrar mais caro? Porque oferecia “um clima”, com oferta de amenidades, cerveja, espaço para lazer… e a possibilidade de encontrar pessoas com o mesmo “astral”. O principal fundador da WeWork, Adam Neumann, se inspirou em parte em sua experiência pessoal: ele cresceu em Israel, num kibbutz — um movimento que pratica a convivência comunitária.
“Do ponto de vista do modelo de negócios, o esquema era defensável num primeiro momento”, afirma Nakagawa. Especialmente naquele momento. Em 2010, os Estados Unidos viviam o período de ouro das startups. “Elas apareciam e cresciam de forma insana”, conta Nakagawa, “e precisavam de espaço com urgência”. A WeWork conseguiu se apropriar de vários dos símbolos dessa febre: ambientes colaborativos, oferta de lanches e outras amenidades no estilo capitaneado pelo Google, com suas salas de relaxamento, diversão e reuniões.
A época era de juros baixos, baixíssimos; logo após a crise financeira de 2008, governos do mundo todo injetaram quantidades astronômicas de capital na economia. Sem poder ganhar dinheiro com os juros, os investidores tinham de arriscar; e arriscavam com ímpeto nas empresas que pudessem se transformar nos novos Googles e Facebooks.
Nesse clima, crescer rápido era a ordem. Havia um ciclo: empresas de tecnologia vislumbravam a ruptura em alguma indústria; criava-se uma onda de entusiasmo pela inovação; o novo serviço perdia dinheiro (muito dinheiro) para ganhar participação de mercado na esperança de que, quando este estivesse dominado, a operação finalmente se justificaria, com lucros consistentes.
Nem sempre esses lucros se materializam. De qualquer forma, a indústria original já não será nunca mais a mesma. Isso vale para transportes, com Uber, Lyft e 99, para redes sociais, comércio online etc.
O escritor de ficção científica Cory Doctorow inventou um termo para o processo todo: enshittification(em português preciso, embora não muito polido, a tradução seria “emerdamento”). Sua explicação: primeiro, a plataforma é boa para seus usuários; depois ela abusa dos usuários para agradar às empresas clientes (em geral anunciantes); finalmente, ela abusa das empresas para capturar o valor para si própria. “E aí elas morrem”, afirma.
No mundo de hoje, com dinheiro mais escasso e os exemplos de inúmeros fracassos, essa lógica já não é mais venerada. Não à toa, no último dia 5 de janeiro, a American Dialect Society (sociedade do dialeto americano, desde 1889 dedicada ao estudo da língua inglesa nos Estados Unidos) escolheu enshittification como a palavra do ano de 2023.
A ideia de uma revolução permanente não deu certo para seu mais famoso proponente, o russo Leon Trotsky, cujos planos de provocar um levante comunista internacional terminaram com uma machadada na cabeça. E não dá certo para empreendedores.
Em algum momento, a contabilidade precisa fazer sentido. Caso contrário, o negócio fica parecido demais com um esquema de pirâmide: os que investiram primeiro conseguem recuperar o dinheiro pelo investimento dos que vieram depois, mas chega a hora em que não há mais gente disposta a investir e o negócio desmorona.
Ao que tudo indica, Adam Neumann se convenceu de que liderava uma revolução de grandes proporções para “elevar a consciência do mundo” e que isso bastaria para elevar os lucros da empresa. De acordo com relatos de vários funcionários da WeWork a repórteres do jornal The New York Times, ele “convencia os empregados a enfrentar jornadas de trabalho de 20 horas, participar de reuniões às 2h da madrugada, tomar doses de tequila, fumar maconha no trabalho, participar de encontros da empresa na selva, fumar mais maconha e tomar mais tequila”.
Também criou um grupo em torno do pronome “nós”, como se toda atividade coletiva pudesse ser transformada por sua empresa. Mais notadamente, sua mulher, Rebekah Neumann, que liderava o “aspecto espiritual” da companhia, criou um braço educacional, a WeGrow — que torrou milhões de dólares dos investidores.
Em 2019, num encontro de negócios promovido pelo New York Times, Neumann pareceu ter finalmente admitido (apenas em parte) seus exageros. Quando lhe perguntaram o que aprendeu com o fiasco da companhia, disse: “Quando se trata de finanças, é melhor ser tedioso”.
Em meio ao clima de otimismo com as startups em geral, um investidor se destacava: Masayoshi Son, dono do banco de investimentos SoftBank. Após uma série de apostas bem-sucedidas (a mais famosa delas tendo sido o grupo chinês Alibaba) que durante um curto período fez dele a pessoa mais rica do mundo, Son buscava avidamente mais negócios.
Em 2017, ele criou seu Vision Fund, para investir em negócios visionários, e a WeWork foi uma de suas maiores apostas. Dois anos depois, o Softbank aumentou sua participação na empresa. Levando em conta o preço que pagou por uma parcela da WeWork, a companhia de Neumann passava a ter um valor de 47 bilhões de dólares.
“De certa forma, esse dinheiro foi uma espécie de maldição”, diz Nakagawa, do Insper. A atração para investir em uma startup se baseia na expectativa de que ela vá se valorizar a cada nova rodada de investimentos. “Mas o Softbank avaliou a empresa num patamar acima do seu valor justo.” A partir daí, tornava-se muito difícil conseguir investidores para as rodadas seguintes — porque ninguém quer reduzir a avaliação da empresa.
“A maldição do dinheiro excessivo pegou um monte de startups. Inclusive no Brasil, onde várias empresas sofrem com essa dificuldade.”
Com muito dinheiro à disposição, Neumann achou que podia aumentar a aposta em seu modelo: pagar ainda mais caro pelo crescimento da empresa, seguir comportamentos ainda mais alucinados: suas aspirações incluíam viver para sempre, tornar-se o primeiro trilionário do mundo e expandir seus negócios para Marte.
Se houve exageros, também é verdade que os êxitos da WeWork não surgiram do nada. Havia um elemento de mudança cultural que é hoje fácil de menosprezar justamente porque ela foi bem-sucedida em enxergar uma necessidade e empacotá-la como um negócio.
A terceirização de serviços em companhias vem de longe. Há décadas as grandes empresas abraçaram a ideia de contratar firmas especializadas em limpeza, manutenção, segurança. A WeWork foi pioneira em agregar um estilo a tudo isso, de tornar o ambiente “descolado”, incluindo happy hour, diversão, senso de comunidade.
O problema é que essa invenção não tem patente e é facilmente copiável. Ao perceberem o sucesso da companhia, inúmeros concorrentes (donos de espaços de coworking) passaram a oferecer também amenidades, salas de diversão e tudo o mais, associando-se a empresas especializadas nesses serviços.
Em entrevista ao site da BBC, Mark Dixon, o executivo-chefe da IWG, cuja divisão Regus é uma das maiores locadoras de espaços de coworking no mundo, disse: “Há um segmento crescente de clientes que agora trata o acesso aos escritórios como uma inscrição em academias de ginástica; eles querem benefícios, instalações, programas sociais e amenidades, embora apenas uma pequena parcela dos seus membros utilize o espaço por vez”.
Enfim, o setor se transformou, exatamente na direção que a WeWork previa. Mas não foi ela quem colheu todos os frutos dessa mudança.
É um clichê entre empreendedores dizer que sua empresa está aí para provocar mudanças. Mas as mudanças que aparecem pelo caminho não são apenas as que você provoca; existem também aquelas que você tem de enfrentar.
A maior dessas, no caso da WeWork, foi a pandemia da covid-19. Com as medidas de distanciamento social, aumentou muito a adesão das empresas ao trabalho virtual… e os espaços de coworking foram severamente prejudicados.
Já não era um problema para Adam Neumann. Em 2019, depois de uma tentativa frustrada de abertura de capital — quando o escrutínio inerente ao processo levou à descoberta dos abusos da sua administração e às dificuldades do seu modelo —, o valor da empresa despencou e o Softbank acabou comprando a maior parte da WeWork, injetando mais 10 bilhões de dólares para tirar Neumann do comando (e torná-lo um bilionário).
Nessa hora, a WeWork sentiu todo o peso do seu descasamento de fluxo de caixa. Estava atada a contratos longos, enquanto sua receita sumia. Passada a pandemia, Masayoshi Son admitiria em uma apresentação de resultados do SoftBank que foi um “tolo por levar sua empresa a um investimento multibilionário na WeWork”. Não sem motivos. A empresa que em algum momento se supôs valer 47 bilhões de dólares valia, no final do ano passado, apenas 50 milhões de dólares.
Uma outra mudança no setor, de acordo com Dixon, é que os trabalhadores já não buscam escritórios no coração das cidades. Este era um dos atrativos da WeWork: espaços nobres, no meio do burburinho, facilitavam os encontros casuais que poderiam resultar em ideias brilhantes, contratos com clientes, grandes amizades ou romances e casamentos. “Agora, as pessoas já não querem mais enfrentar o transporte para o centro”, diz Dixon. “Preferem espaços hiperlocais.”
Para as empresas de coworking, tanto melhor. Elas alugam espaços mais baratos nas periferias e ainda têm oferecido agora um serviço extra: cuidar dos escritórios virtuais, com administração de horários, organização de chamadas e reuniões virtuais etc. Para a WeWork, presa a contratos de longo prazo, é mais difícil aproveitar o novo momento.
Esse conjunto de erros levou ao colapso uma empresa que, durante um bom tempo, foi uma das grandes promessas do mundo dos negócios. Não se pode culpar o ambiente externo. Enquanto a WeWork pedia recuperação judicial, a IWG, presente em 120 países, reportava lucros recordes. Em agosto do ano passado, informou um crescimento de 48% nos lucros operacionais (um misto de aumento de receita e corte de custos), chegando a 198 milhões de libras esterlinas.
Mesmo a WeWork na América Latina (desde 2021 uma entidade separada majoritariamente pertencente ao SoftBank Latin America), as operações no Brasil, Argentina, Chile, Colômbia e México tiveram no primeiro semestre de 2023 uma receita 31% maior que no mesmo período do ano anterior.
Por que por aqui foi diferente? “Aqui a WeWork fechou contratos de prazo mais longo com seus locatários”, diz Nakagawa. Ele próprio chegou a trabalhar num escritório da WeWork, dentro do InovaBra, do Bradesco. “O Cubo, aceleradora de empresas do Itaú, aluga 100% do prédio na Vila Olímpia, em São Paulo; o InovaBra, uns 80%”, diz Nakagawa. Se a WeWork original desaparecer, é provável que sua subsidiária se torne completamente independente; ou que outras empresas assumam o negócio.
“De modo geral, o que aconteceu com a WeWork foi um alinhamento de tempestades: o descasamento de fluxo de caixa, uma avaliação alta demais e, finalmente, a pandemia”, resume Nakagawa. As duas primeiras foram feridas graves, e autoinfligidas.