Sérgio Avelleda, coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana do Laboratório Arq. Futuro de Cidades do Insper, fala sobre os principais desafios que o próximo prefeito enfrentará nesse tema fundamental
Em ano de eleições municipais, o tema da mobilidade urbana assume um papel de destaque nas discussões, especialmente em uma cidade do tamanho de São Paulo. Em meio aos desafios enfrentados por uma metrópole tão complexa, a busca por soluções eficientes na área de transporte público torna-se imperativa.
Na entrevista a seguir, o advogado Sérgio Avelleda, coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana do Laboratório Arq. Futuro de Cidades do Insper, compartilha sua visão sobre os principais desafios que o próximo prefeito enfrentará nesse campo crucial. A discussão abrange desde a segurança viária até questões como financiamento do transporte público e a urgência na descarbonização do sistema de mobilidade.
Alguns desses temas serão abordados com profundidade no curso Gestão da Mobilidade Urbana, cujas matrículas estão abertas até 19 de fevereiro. O curso, com 30 horas de duração, é destinado a um público amplo, com interesse geral na área de mobilidade urbana.
Um dos docentes-líderes do curso, Avelleda foi secretário de Mobilidade e Transporte de São Paulo (2017-2018), quando a cidade aderiu ao Visão Zero, programa de redução para zero de mortes no trânsito. Ele foi também presidente da Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô) e da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e diretor de mobilidade urbana do World Research Institute (WRI).
Confira a entrevista:
Estamos em ano de eleições municipais, um período em que o tema da mobilidade urbana costuma receber especial atenção dos candidatos. Falando especificamente da cidade de São Paulo, qual seria o principal desafio nessa área para o próximo prefeito?
Identifico quatro temas fundamentais. O primeiro é a segurança viária. Lamentavelmente, no ano passado, São Paulo retrocedeu aos números de 2015 em termos do número de mortes no trânsito. Entre 2015 e 2018, a cidade vinha registrando uma redução contínua nesse índice. No entanto, agora enfrentamos um aumento preocupante, ultrapassando a marca de 900 mortes anuais, um dado inquietante, ainda que abaixo da média nacional. Para reverter essa tendência, será necessário um esforço conjunto para ampliar as áreas na cidade com velocidade reduzida, cultivando uma cultura de trânsito mais cautelosa em oposição a um trânsito veloz. Esse desafio requer um comprometimento significativo do próximo prefeito.
A segunda questão crucial é o financiamento do transporte público. Esse tema será central em todas as campanhas eleitorais, envolvendo discussões sobre tarifa zero, subsídios e a busca por fontes alternativas de financiamento para promover um acesso mais amplo ao transporte público. Experiências como a implantação da tarifa zero aos domingos em São Paulo e diariamente em São Caetano do Sul mostram não apenas que há um aumento na demanda, mas também a possibilidade de ampliar o acesso ao transporte público, melhorando, assim, a mobilidade e impactando positivamente em diversas áreas, como no acesso ao comércio e ao sistema de saúde.
O terceiro ponto vital diz respeito à priorização do transporte público. O próximo prefeito precisará investir de maneira decidida na expansão do espaço destinado aos ônibus, criando mais faixas exclusivas e corredores para garantir uma circulação mais eficiente e regular, com menos engarrafamentos.
Por fim, a descarbonização emerge como um tema essencial. Como enfrentaremos as emissões provenientes do sistema de mobilidade, que responde por 60% das emissões em uma cidade? Estratégias como eletrificar as frotas de ônibus públicos, a criação de distritos de baixo carbono e o estímulo à mobilidade ativa, como caminhar e andar de bicicleta, que não geram emissões, representam passos fundamentais para reduzir ou até eliminar essas emissões. Essas medidas não apenas contribuiriam para melhorar a qualidade de vida na cidade, mas também são cruciais para enfrentar os desafios globais relacionados às mudanças climáticas.
No que diz respeito à segurança viária, você mencionou que o índice de São Paulo, apesar do aumento no números de mortes no trânsito, ainda está abaixo da média nacional?
Sim, de fato. São Paulo apresenta um índice de mortalidade no trânsito inferior à média nacional. Enquanto a média do país é de 19 mortes por 100 mil habitantes, São Paulo registra pouco mais de 8 mortes por 100 mil habitantes. Mesmo sendo um índice mais favorável do que a média nacional, devemos lembrar que já chegamos a um patamar próximo de 6 mortes por 100 mil habitantes em 2017. Portanto, retrocedemos consideravelmente em termos de segurança viária.
A redução do número de mortes no trânsito está diretamente ligada à diminuição da velocidade nas vias?
Sem dúvida. A redução da velocidade máxima nas vias é crucial. O maior risco de fatalidades no trânsito está associado à velocidade. Um pedestre que é atropelado por um carro a 30 km por hora tem cerca de 85% de chance de sobrevivência. Se o atropelamento ocorre a 50 km por hora, as chances de sobrevivência caem para apenas 25%. Embora a diferença de 30 para 50 km por hora possa parecer insignificante para quem está dirigindo, em um cenário de colisão entre um veículo e uma pessoa, seja ela pedestre, ciclista ou motociclista, essa diferença pode ser a linha tênue entre a vida e a morte. Portanto, a implementação de áreas com limite máximo de 40 km por hora e a redução das velocidades nas vias mais rápidas são medidas essenciais. É lamentável que em São Paulo ainda tenhamos vias urbanas, como a Avenida 23 de Maio, com limite de 70 km por hora.
Além disso, é crucial redesenhar ruas e cruzamentos, promover um ambiente comprometido com a segurança viária e intensificar as fiscalizações de comportamentos de risco, como o uso do celular durante a condução. Atualmente, é comum observar pessoas utilizando o celular enquanto dirigem ou com os carros parados nos cruzamentos. Dada a diminuição do número de agentes de fiscalização de trânsito nas ruas após a pandemia, é fundamental restaurar uma cultura de fiscalização para estimular comportamentos desejados e, consequentemente, melhorar a segurança viária.
Em muitos países, há uma cultura consolidada de respeito aos pedestres. Na hora de atravessar as ruas, as pessoas podem se aproximar das faixas de pedestres confiantes de que os carros vão parar. Já no Brasil…
Em algumas cidades brasileiras, essa cultura também está presente. Brasília é um exemplo de cidade onde a faixa de pedestres é integralmente respeitada. Esse comportamento começou a ser moldado nos anos 1990, quando o governo do Distrito Federal implementou uma fiscalização rigorosa nas principais faixas de pedestres, aplicando sanções aos infratores. Com o tempo, a necessidade de fiscalização intensiva diminuiu, pois as pessoas aprenderam a respeitar as regras.
Recentemente, visitei Santos, onde os carros param de maneira adequada nas faixas de pedestres. Por quê? Porque, há muito tempo, houve uma forte fiscalização, resultando na criação de uma cultura. A partir desse ponto, a imposição de multas tornou-se menos necessária, pois os motoristas foram gradualmente condicionados a agir conforme as normas, assim como ocorreu com o uso automático de cintos de segurança. Atualmente, quase ninguém é multado por não usar cintos de segurança, mas quando a fiscalização começou a ser mais rígida, em 1993, houve uma quantidade expressiva de multas por falta do uso do cinto. Hoje, colocar o cinto tornou-se um hábito automático para quem vai dirigir. Essa mesma automatização de comportamento é o que precisamos criar em relação ao respeito aos pedestres e aos ciclistas, a proibição do uso do celular, sendo a fiscalização, incluindo todos os radares, uma ferramenta crucial. Vale lembrar que o ano em que São Paulo mais reduziu o número de mortes no trânsito foi 1997, com uma diminuição de 25%. Não por acaso, foi o ano em que a prefeitura implantou os radares na cidade.
Qual é a sua opinião sobre radares? É comum ouvirmos críticas a uma suposta “indústria da multa”. Há quem diga que os radares não educam, já que as pessoas tendem a reduzir a velocidade apenas nas áreas monitoradas.
Considero os radares altamente eficientes. Como mencionei anteriormente, o único ano em que São Paulo conseguiu reduzir em 25% o número de mortes no trânsito foi quando implantou os radares. Outro exemplo é Campinas, que conseguiu reduzir de 500 para 50 atropelamentos por ano após a instalação de radares, em 1995. Durante o período em que fui secretário de Mobilidade e Transporte, propus a fiscalização por velocidade média, sem aplicação de multas, já que o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) não permitia a multa com base na velocidade média. A ideia era enviar cartas de advertência às pessoas.
Ao dirigir recentemente na Itália, observei que a fiscalização por velocidade média é predominante nas rodovias. Esse método, baseado nos limites de velocidade locais e na velocidade média, é altamente eficaz.
Quanto à alegada “indústria da multa”, concordo que ela existe, mas é essencial entender que essa indústria só prospera devido ao “insumo” chamado infração de trânsito. Se não cometermos infrações, não haverá indústria da multa. Portanto, o desafio que lanço à população é quebrar esse ciclo, parando de cometer infrações de trânsito para que os radares percam sua eficácia.
Você considera a legislação brasileira de trânsito muito branda para coibir as infrações?
Sim, é bastante branda e, lamentavelmente, nos últimos quatro anos, tornou-se ainda mais leniente. Por exemplo, durante esse período, fomos impedidos de utilizar radares móveis para fiscalizar vias com velocidade abaixo de 60 km por hora. Isso significa que, em áreas urbanas, não é possível mais monitorar a velocidade dos veículos em locais críticos, como nas proximidades de escolas, onde as crianças embarcam e desembarcam. Além disso, foram proibidos radares instalados atrás de árvores, viadutos e pontes. Agora, os radares devem ser visíveis de forma ostensiva, o que acaba resultando no comportamento inadequado que você mencionou, com motoristas freando e acelerando ao avistar o radar.
Uma pesquisa realizada por Horácio Figueira, ex-diretor da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), revelou que apenas 1,1% das infrações de trânsito em São Paulo são registradas, enquanto 98,9% passam despercebidas. Portanto, em vez de uma indústria de multa, temos uma indústria de infrações de trânsito. É fundamental reconhecer que, em países como os Estados Unidos, onde as consequências para infrações de trânsito são severas, as pessoas tendem a respeitar as regras, pois sabem que serão punidas de forma rigorosa. Certamente, a certeza da punição é o fator que mais influencia a mudança de comportamento.
Falando sobre a questão do financiamento do transporte público, temos hoje cinco ou seis cidades no Brasil que adotaram a tarifa zero, entre elas São Caetano do Sul. Você considera viável implementar uma medida como essa em uma cidade do porte de São Paulo?
É muito mais desafiador, pois encontrar recursos para custear essa despesa é muito mais complexo. Mas o verdadeiro desafio será lidar com o aumento da demanda, uma vez que a participação do transporte público pode crescer em até 50%, o que seria benéfico para nossas metas de segurança viária, descarbonização e inclusão social. No entanto, para isso, precisamos garantir a qualidade do transporte público. Isso exigirá mais vias exclusivas para tornar os ônibus mais eficientes.
Além disso, enfrentamos uma complicação adicional aqui, uma vez que os ônibus são administrados pela prefeitura e os trilhos pelo governo do Estado. Se implementarmos a tarifa zero apenas nos ônibus, isso pode retirar a demanda do trem e do metrô, sem que os ônibus consigam absorver completamente esse aumento da demanda. Portanto, a tarifa zero precisaria ser uma ação coordenada entre o governo do estado e a prefeitura, o que torna o desafio ainda maior em termos financeiros. Financiar todo esse sistema seria uma tarefa bastante robusta.
Precisamos garantir, em primeiro lugar, que a qualidade do sistema de transporte público não seja comprometida. Se, por exemplo, abordássemos um passageiro em um ponto de ônibus agora e disséssemos a ele que a tarifa seria zero, mas a qualidade do serviço poderia diminuir um pouco, ele provavelmente responderia: “Não mexam no meu ônibus. Já não está bom, e vocês querem piorar? Deixe-me pagar os R$ 4,40”. Portanto, se optarmos pela tarifa zero, não podemos de maneira alguma comprometer a qualidade do sistema.
É importante dizer também que, do ponto de vista social e econômico, acho injusto considerar o transporte público de maneira diferente da educação e saúde, isentando os usuários de tarifas e financiando-os por meio de impostos e contribuições específicas. Se observarmos, a tarifa zero já existe para quem usa carro. A prefeitura é responsável por construir e manter ruas, semáforos, sinalizações, agentes de trânsito e serviços de emergência para atender usuários de carro, sem cobrar nada deles. Existe algo fundamentalmente errado nessa situação, já que quem opta por usar carro gera diversas externalidades negativas, ocupando espaço, poluindo e oferecendo riscos, enquanto quem opta pelo transporte público contribui positivamente, ocupando menos espaço, poluindo menos e não representando riscos à segurança. No entanto, apenas os usuários de transporte público são tarifados, enquanto os usuários de carro não pagam nada para utilizar as vias. Isso revela uma clara injustiça nessa equação econômica.
E como é possível estimular mais pessoas a trocarem o transporte individual pelo transporte público?
Para incentivar mais pessoas a abandonar o transporte individual de carro em favor do transporte público, acredito que é necessário adotar medidas em duas frentes distintas. Em primeiro lugar, podemos desencorajar o uso do automóvel, por exemplo, restringindo a construção de vagas de estacionamento em novos edifícios. Em Nova York, é impossível encontrar estacionamentos em novos prédios em Manhattan, tornando a opção de chegar de carro impraticável. Essa abordagem visa desestimular o uso do automóvel. Outra estratégia é implementar restrições à circulação de veículos, como o já consolidado sistema de rodízio em São Paulo, em vigor há mais de duas décadas. Além disso, seria eficaz restringir estacionamentos, remover vagas dos estacionamentos existentes e impor tributos mais significativos sobre estacionamentos privados.
Por outro lado, é crucial melhorar a acessibilidade ao transporte público. A criação de faixas e corredores exclusivos para ônibus pode aumentar a velocidade desses veículos em até 60%, tornando-os mais rápidos que os automóveis. Essa abordagem torna o transporte público uma opção mais atraente. Incentivar programas que promovam o uso da bicicleta também é essencial. Isso inclui a expansão da infraestrutura cicloviária, oferecendo mais ciclovias e espaços de estacionamento para bicicletas, integrando efetivamente as bicicletas ao transporte público.
Bogotá, por exemplo, implementa políticas eficazes há muitos anos, resultando em 13% das viagens sendo feitas de bicicleta. Paris, ao estimular o uso de bicicletas nos últimos cinco anos, agora apresenta mais bicicletas do que automóveis durante os horários de pico. Essas transformações podem ser replicadas em diversas cidades ao redor do mundo, mas é preciso ter persistência e uma abordagem de longo prazo, integrada como política de Estado. É crucial continuar a promover essas iniciativas de forma contínua para garantir resultados consistentes e duradouros.