
Estudantes do Insper foram ao Xingu, em Mato Grosso, para conhecer o povo Kamaiurá, que deseja melhorar a sua rede de comunicação via internet
Leandro Steiw
Uma parceria do Laboratório Arq.Futuro de Cidades com o curso de Engenharia de Computação do Insper levou em agosto os alunos Bernardo Cunha Capoferri, Davi Reis Vieira de Souza e Francisco Pinheiro Janela a viajarem para o Território Indígena do Xingu (TIX), em Mato Grosso. O motivo: em seu Projeto Final de Engenharia (PFE), o trio desenvolve, ao lado de Paulo Souza Chade, também do oitavo semestre — que não pôde acompanhar o grupo por motivos pessoais —, uma rede de comunicação para uma comunidade indígena. O grupo é orientado pelos professores Paulina Achurra e Rodolfo Avelino.
Em 2016, Avelino trabalhou na implantação de um aplicativo de denúncias relacionadas a violações de direitos humanos e crimes ambientais, fruto da atuação do Coletivo Proteja — então chamado Proteja Amazônia. Por meio desse canal, o povo Munduruku, em Mato Grosso, encaminharia os pedidos para os órgãos oficiais. A experiência permitiu constatar o gargalo de conectividade na região. “É comum que várias pessoas tenham telefones celulares nas aldeias, mas o sinal das operadoras não chega lá e a internet é apenas por satélites de programas de inclusão digital do governo”, explica Avelino.
Habitualmente, a internet funciona poucas horas por dia, quando se liga o gerador de energia elétrica na aldeia. “Vislumbrei a oportunidade de se criar uma rede de comunicação ali similar a uma intranet, na qual as pessoas pudessem usar alguns serviços de rede, como voz, sem depender da internet”, diz o professor. Painéis solares garantiriam a autonomia energética da rede dessa comunicação privada. Os primeiros testes coincidiram com o início da pandemia da covid-19, e Avelino não conseguiu voltar à região do rio Teles Pires.
A possibilidade de tirar o projeto da gaveta renasceu em conversas com Paulina Achurra, coordenadora acadêmica do Laboratório Arq.Futuro de Cidades. Desta vez, o experimento seria no TIX — há alguns anos, o Laboratório mantém contato com comunidades indígenas. “O Laboratório tem a preocupação de engajar comunidades desfavorecidas”, comenta Paulina. “Dentro das cidades trabalhamos com territórios periféricos, porém fora delas existem outras realidades que também são esquecidas pela sociedade.”
Entre os parceiros do Laboratório com conexões no Xingu está a BEĨ Editora, cujo sócio e editor, Tomas Alvim, é coordenador-geral do Arq.Futuro. A BEĨ mantém uma coleção de referência em arte indígena brasileira e atua há mais de 15 anos em projetos sociais com aldeias do TIX. “Fazia dois anos que preparávamos um projeto que atendesse à questão do isolamento físico e econômico das comunidades indígenas e proporcionasse uma experiência educacional única para os alunos do Insper”, afirma Paulina. “Finalmente, o desejo do Laboratório confluiu com a experiência do professor Avelino em direitos humanos e projetos de inclusão digital e com os contatos de Alvim.”
Um dos propósitos é que o povo Kamaiurá se aproprie da tecnologia desenvolvida no PFE. Depois da construção das antenas, a equipe do Insper ensinará a ampliar e manter a rede a partir dos recursos disponíveis no local. A visita ao Xingu abriu a primeira oportunidade de compreender as necessidades da comunidade, fortalecida em encontros remotos com dois representantes indicados pelo cacique Akauã Kamaiurá. A equipe aproveita essas reuniões virtuais para repassar a eles alguns conhecimentos prévios para a futura implantação da rede.
Paulina enfatiza uma preocupação do Laboratório ao procurar os Kamaiurás. Eles estavam conectados à internet, portanto já tinham acesso a todo o conteúdo da web e queriam uma rede melhor. Com a melhoria da conexão, os lados bom e ruim da internet causarão algum impacto cultural, que a comunidade precisará administrar. “Um ponto muito importante é entender o que a população deseja, para juntos construirmos uma solução que minimize os possíveis problemas de segurança e conectividade”, observa a professora.
Segundo Paulina, o PFE é a primeira experiência de um plano de longo prazo que possa se multiplicar em outras populações locais que tentam diminuir o isolamento físico. A participação ativa dos Kamaiurás será fundamental. “Espero que esse projeto também apresente para a comunidade do Insper o valor agregado de pensar a produção de ciência não só em um contexto de mercado como também de resolução de um problema real e de relevância social em um país da dimensão do Brasil, sobretudo naquela região”, almeja Avelino.

O interesse pelo tema chamou rapidamente a atenção do aluno Davi Reis, que morou em Manaus (AM), para o PFE orientado por Paulina e Avelino. Frequentemente, ele tinha acesso a aldeias indígenas quando visitava a amazonense Parintins, famosa pelo prestigiado festival do boi-bumbá e cidade natal da mãe de Reis. “Fomos muito bem acolhidos pelo povo Kamaiurá”, recorda ele. “Foi quase uma aventura chegar lá, porque é um lugar isolado. O grupo do Insper se encontrou em Cuiabá, foi para Barra do Garças e depois para Canarana, o último ponto antes de entrar de fato no TIX. Até a aldeia, foram cinco horas e meia de carro em estrada de terra.”
Para Bernardo Capoferri, a imaginada viagem ao interior tornou-se uma surpresa ao avistar a floresta no horizonte. “Morando em São Paulo, você não está acostumado a ver mata por mais de um quilômetro”, compara. “Quando se chega à aldeia, há um pequeno choque cultural, mesmo que existam lá algumas comodidades da cidade, como banheiro e chuveiro. Dormíamos em rede e comíamos sempre beiju com peixe grelhado; raramente era alguma comida temperada. Eles nos contaram que não têm horário fixo para as refeições e comem quando têm fome. Só se adaptaram ao horário de almoço e jantar porque estávamos lá.”
Outra peculiaridade que chamou a atenção dos estudantes foi a rotina de trabalho. Todos acordam por volta das cinco horas da manhã e fazem as suas atividades até o meio-dia, pois a temperatura chegava aos 39°C na época da viagem e tornava inviável a exposição ao sol. “Eu procurava ficar na companhia do cacique, para entender como ele executa as tarefas no dia a dia”, relata o aluno Francisco Janela. Nessas conversas, os Kamaiurás trataram de temas como os rituais de passagem da adolescência para a vida adulta e a organização familiar nas casas da aldeia.
Janela conta que, a despeito do que supunha antes da viagem, os moradores da aldeia interessam-se pelo uso da internet e adquirem serviços e equipamentos de banda larga. “Desde esse primeiro contato, entendemos que o nosso escopo é olhar para o que eles já possuem e tentar expandir a infraestrutura para melhorar o dia a dia da comunidade”, pontua ele. Reis complementa: “Vimos que a maioria das pessoas se conecta nos horários em que a internet está ligada e acessa conteúdos das redes sociais, como Instagram e TikTok. Há uma questão delicada de como a nossa cultura de memes e gírias da internet adiciona-se à cultura deles”.
Existem dois acessos públicos à internet na aldeia, instalados dentro da Unidade Básica de Saúde Indígena (UBSI), para onde as pessoas se dirigem em massa no final da tarde em busca de sinal. Devido à concorrência, a conexão fica lenta para todos. O grupo do Insper não pretende mexer na velocidade de transmissão de dados local e sim modificar o tipo de hardware para aumentar o número de pessoas em condições de estarem conectadas ao mesmo tempo.
A solução implementada não pode ser complexa a ponto de comprometer o funcionamento desses pontos de acesso, importantes na comunicação com outras aldeias e equipes de socorro. “Queremos dar ainda ferramentas para eles terem um melhor controle do tempo de uso da internet para trabalho e lazer”, antecipa Capoferri. “O cacique tem certa preocupação com a possibilidade de as crianças passarem o dia inteiro dentro de casa, por exemplo, em vez de brincarem ao ar livre ou tomarem banho de rio.”
Um manual ou tutorial precisará levar em consideração a barreira da escrita. Parte dos adultos mais velhos não sabe ler, e o vocabulário tecnológico pode ser incompreensível mesmo entre os que leem em português. A estratégia para superar esse obstáculo passa por vídeos e áudios traduzidos para o idioma Kamaiurá, da família linguística do tupi-guarani. As gravações facilitariam a difusão das informações necessárias à manutenção da rede sem a presença dos especialistas. Como reforça Paulina, um dos desafios é chegar ao resultado que evite “a ultrapassada divisão de papéis, no qual só um detém o conhecimento, e construir uma relação de confiança e parceria”.
