Obra de Alessandra Figueiredo, Cesar Shundi Iwamizu e Helena Ayoub Silva é o mais abrangente estudo sobre a trajetória do autor nonagenário de projetos marcados pelo rigor, pela clareza e pela simplicidade
Hugo Segawa*
Na leitura deste livro que esmiúça o arquiteto paulistano Eduardo de Almeida (n. 1933) e sua obra, colecionamos recorrências sobre as qualidades de seu trabalho, descritas de várias maneiras: na sua arquitetura, escrevem os autores, há “rigor e (…) clareza (…), numa simplicidade que se identifica com a sofisticação”; “extremo rigor, simplicidade e elegância em cada traço”; “ domínio técnico do objeto (…), pela conjugação entre as diversas partes e componentes que definem a arquitetura”, “ unidade e caráter (…) ao conjunto de sua obra, mesmo nos trabalhos destinados a diferentes usos, escalas ou contextos”; e “a tônica é a busca da simplicidade, da concisão e, por que não dizer, da discrição”; “síntese e pela precisão de seus projetos”.
Quando se graduou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), em 1960, não eram muitos os arquitetos que se poderiam enaltecer com essas palavras. Sua atuação por mais de sessenta anos, e como um destacado professor entre 1967 e 1998, na escola em que se formou e se doutorou, desdobrou o número de profissionais sensíveis, que perceberam a fineza e a sagacidade dos cuidados projetuais “à Eduardo de Almeida”.
Creio na tese apresentada pela arquiteta e professora Mônica Junqueira de Camargo[1] de que certas práticas, distintas entre os arquitetos do Rio de Janeiro e de São Paulo, na segunda metade do século 20, se devem à origem dos cursos de Arquitetura: Belas Artes, para os cariocas, e Engenharia para os paulistas. “Estaria no DNA”, por assim dizer: antes da autonomia pedagógica da formação dos arquitetos no final da década de 1940, a Escola Politécnica e a Escola de Engenharia Mackenzie formavam engenheiros-arquitetos. Contou-me Carlos Lemos, chefe do escritório paulista de Oscar Niemeyer (1907-2012) na década de 1950, que em uma das visitas ao Rio de Janeiro para mostrar o projeto do Hospital de Gastroclínica, Niemeyer ficou admirado com os desenhos de detalhamento, e chamou a sua equipe para dizer: “É assim que se detalha em São Paulo!”
Niemeyer recomendava que se visitasse a casa do arquiteto Oswaldo Bratke (1907-1997), construída em 1951. Bratke defendia que a dedicação ao projeto e à construção era mais refinada em São Paulo que no Rio de Janeiro. Contou-me que, em uma visita do arquiteto carioca a sua casa, ele quase levou um tombo ao se recostar, casualmente, em um grande caixilho de vidro móvel sobre trilhos que tomava todo o pé-direito. Ao se apoiar, o janelão correu. O que hoje pode soar prosaico, não o era setenta anos atrás: “Isto corre bem, não?”, se saiu Niemeyer após o susto.
Interessante um trecho da entrevista, de Eduardo de Almeida no livro: “Também aprendi bastante com a arquitetura do Bratke e ela me serviu muito como referência, pois eu via nas casas do Bratke sua relação com a construção. […]. Sempre achei a arquitetura dele extremamente clara em suas intenções”. Como um bom professor, ele mostra sua bibliografia.
Eduardo de Almeida formou-se durante a euforia desenvolvimentista de Brasília, quando a estirpe de Niemeyer e Bratke já havia alcançado o apogeu. A arquitetura estava na boca do povo, os arquitetos eram profissionais com prestígio social. No entanto, a sua geração configurou um ponto de inflexão na FAU-USP: a introdução de disciplinas de Design na reforma curricular de 1962, com ex-alunos da escola no corpo docente. Ele, como seu colega de departamento Abrahão Sanovicz, foi estudar desenho industrial na Itália. Pelo livro, pode-se apurar que esse entorno se formou com um grupo de jovens que se preocupava com o Design, como foi o caso do futuro escritório Cauduro & Martino (da fama do logotipo da TV Cultura, da comunicação visual inicial do Metrô de São Paulo e da sinalização e mobiliário originais da Avenida Paulista), igualmente colegas de Almeida.
Nesse ambiente, pode-se perceber uma nova camada no éthos da arquitetura de São Paulo: não apenas a herança do engenheiro-arquiteto, como também o acréscimo do espírito do arquiteto-designer. Há como distinguir a atuação do arquiteto do designer? No caso, estamos tratando da amálgama que representaram mestres com essa interface, como o alemão naturalizado americano Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969) e o americano Frank Lloyd Wright (1867-1959), outras admirações confessas de Almeida.
Este livro é a mais abrangente apresentação das obras e ideias de Eduardo de Almeida até o momento, mediante a análise de Cesar Shundi Iwamizu (decorrente de um doutorado orientado pela professora Helena Ayoub Silva) e a organização do arquivo profissional, com uma seleção de projetos (boa parte apenas conhecida pelos admiradores) feitas por Alessandra Figueiredo.
O capítulo de fechamento é uma esplêndida entrevista com o arquiteto. Esta conversa explicita várias interlocuções intelectuais e artísticas (que enriquecem a compreensão de uma época) e conta com epígrafes para quase todos os projetos publicados, nas quais a arquitetura vem à tona nas palavras do seu autor. Entre várias declarações, Eduardo de Almeida ponderou: “No meu caso, qualquer obra que eu tenha feito tem um pouquinho de obsessão pelo detalhe. Não é obsessão pelo detalhe em si, mas por ter um projeto levado até as últimas consequências, quero dizer: concluir mesmo uma ideia. Aliás, às vezes a ideia nem é tão importante, mas o detalhe pode torná-la fundamental”.
Amplifico esse “detalhe fundamental” como uma metáfora da ideia. O filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) dizia que toda verdadeira experiência filosófica é a elaboração sistemática de apenas um problema. Na filosofia, o problema não existe para ser respondido e sim para produzir novas questões, levantar enunciados, reconstituir formas de pensar, impulsionar inquietudes. O arquiteto, diferentemente do filósofo, precisa responder. Almeida quer levar os desafios às últimas consequências. Não importa se é o projeto de uma residência, de uma fábrica, de uma estação de metrô, de um museu, de um prédio de apartamentos, de uma biblioteca. Na essência, tudo se torna um único problema filosófico a elaborar: a Arquitetura.
Os arquitetos que efetivamente lidam com esse “único problema” são excepcionais. Eduardo de Almeida é um deles.
*Hugo Segawa, arquiteto, é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Autor dos livros Arquiteturas no Brasil 1900-1990 (Edusp, 1998), Oswaldo Arthur Bratke arquiteto: A arte de bem projetar e construir (Projeto, 1997), Jayme C. Fonseca Rodrigues: arquiteto (BEĨ Editora, 2016), entre outros.
EDUARDO DE ALMEIDA: ARQUITETO, de Alessandra Figueiredo, Cesar Shundi Iwamizu e Helena Ayoub Silva
BEĨ Editora, 304 págs., R$ 120
O lançamento do livro ocorrerá no dia 28 de setembro, das 17h30 às 20h, na Livraria João Alexandre Barbosa, da Edusp –Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin/IEB (Av. Prof. Luciano Gualberto, 78, Cidade Universitária, São Paulo).
[1] Poéticas da razão e construção: conversa de paulista (livre-docência, FAU-USP, 2009)