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Estruturas sociais, a família empresária e a construção do relógio

Algumas lições fundamentais para buscar a sustentabilidade e a identidade das famílias empresárias ao longo das gerações

Algumas lições fundamentais para buscar a sustentabilidade e a identidade das famílias empresárias ao longo das gerações

 

Renan Toenjes*

 

Eu trabalho com famílias empresárias há algum tempo e já escrevi para elas diversas declarações de valores. Porém, a declaração a seguir é das melhores e mais inspiradoras que já li — talvez ela só não seja comparável à Declaração do Credo da Johnson & Johnson, que mistura valores e missão em um só texto e é possivelmente a maior referência em escritas do gênero.

  • Respeito: Tratamos os outros como gostaríamos de ser tratados. Não toleramos tratamento abusivo ou desrespeitoso. Crueldade, insensibilidade e arrogância não pertencem aqui.
  • Integridade: Trabalhamos com clientes atuais e potenciais de forma aberta, honesta e sincera. Quando dizemos que faremos algo, nós o faremos; quando dizemos que não podemos ou não faremos algo, então não o faremos.
  • Comunicação: Temos a obrigação de comunicar. Aqui, dedicamos tempo para conversar uns com os outros… e para ouvir. Acreditamos que a informação é feita para mover e que a informação move as pessoas.
  • Excelência: Estamos satisfeitos com nada menos do que darmos o melhor em tudo o que fazemos. Continuaremos a cobrar o maior progresso de todos nós. A grande diversão aqui será descobrirmos o quão bons podemos realmente ser.

Essa é a declaração de valores da Enron — empresa em que ocorreu o maior escândalo corporativo da história dos Estados Unidos devido a fraudes contábeis bilionárias. Tornou-se a maior falência da história do país até aquele momento e levou à queda da Arthur Andersen, uma das cinco maiores auditorias do mundo na época, ao lado de KPMG, EY, PwC e Deloitte. Além disso, chegou ao nível de levar os Estados Unidos a reverem as regulações de governança corporativa do país, em especial com a promulgação da Lei Sarbanes-Oxley, que proibia principalmente que empresas tivessem relações de consultoria e auditoria ao mesmo tempo com um mesmo cliente, devido a conflitos de interesse. Trago esse caso para ilustrar o quão fácil é declarar algo belo sem implementá-lo, o quão fácil é redigir regras e colocá-las na gaveta para nunca mais lê-las, o quão fácil é desenhar estruturas que não servem a seu propósito e são apenas burocracia.

 

A construção do relógio

A discussão sobre sistemas realmente efetivos é um dos temas mais importantes analisado no livro Feitas para Durar, de Jim Collins, um dos maiores pesquisadores da área de negócios de nossa geração. Ele tem uma excelente discussão sobre como companhias se mantêm crescendo de forma sustentável ao longo do tempo ao comparar 18 empresas que ele chamou de visionárias com um grupo similar de companhias em aspectos como setor, produtos e época de fundação, que chamou de empresas de comparação. As primeiras tiveram excelente desempenho e sucesso ao longo de décadas ou até séculos, enquanto as segundas foram muito piores depois de um certo período inicial similar de sucesso e, em muitos casos, acabaram quebrando.

Em um estudo de seis anos, Collins avaliou os principais critérios do sucesso dessas companhias visionárias. Um deles foi a importância de elas terem uma ideologia e uma cultura forte, que eram colocadas em prática no dia a dia da empresa, o que ele chamou de mecanismos com dentes. Funcionários em linha com essa cultura cresciam dentro da companhia, e aqueles que não se conectavam com ela acabavam saindo, mesmo que gerassem resultados.

Um exemplo simples apresentado no livro do jeito de colocar esses valores em prática é sobre como pessoas que falavam palavrões dentro da Disney eram demitidas, dado o valor de decência da companhia, importante ao criar produtos de entretenimento para crianças. Outros exemplos incluem processos que não valorizem apenas resultados, mas sua execução de acordo com a ideologia da empresa, como serem de acordo com as regras de ética e compliance. Ou então avaliações de colaboradores que incluam competências técnicas, comportamentais, porém, ao mesmo tempo, sua adesão aos valores da companhia. Essa cultura forte é necessária para a empresa se manter ao longo do tempo com uma identidade e se manter única em relação às outras.

No entanto, mesmo com uma cultura muito forte como esta, chegando a quase um nível de culto, as companhias sustentáveis no longo prazo precisam ter adaptabilidade, ou seja, ter a estabilidade em sua identidade e flexibilidade em suas atividades. Esse é um dos aspectos do que Collins chamou de “Genialidade do E”. Tinham sucesso sustentável ao longo do tempo as organizações que conseguissem construir estruturas sociais que combinassem um propósito além do lucro e uma busca pragmática deste; uma ideologia razoavelmente fixa, com mudanças vigorosas; um controle ideológico com autonomia para colaboradores; grandes metas de longo prazo e melhorias incrementais; além de investimentos de longo prazo e excelência na execução de demandas diárias para performance de curto prazo. Colocar em prática um sistema que valorize a soma desses objetivos aparentemente paradoxais foi o que Collins chamou de construção de um relógio sustentável, que ele encontrou nas companhias visionárias.

Nas companhias de comparação, Collins viu muitos líderes descritos como conhecedores do tempo. Eram líderes que, com sua genialidade e visão de negócios, construíram empresas de referência durante sua época, mas que giravam e dependiam de sua figura como em um culto de personalidade. No final, quando eles não estavam mais presentes, essas empresas deixavam de gerar bons resultados ou morriam. Enquanto isso, os líderes das empresas que duraram construíram sistemas onde a ideologia da companhia era um culto a sua identidade como grupo, a empresa como organização e estavam em linha com a “Genialidade do E” descrita anteriormente.

Em resumo, não basta construir um relógio com cultura forte para que a empresa tenha sucesso cada vez maior ao longo do tempo. É essencial que ele tenha as qualidades para estar à altura desta tarefa, em especial em relação a essa “Genialidade do E”. Apenas como ilustração, um exemplo comum de relógios que falham em ter essas qualidades são aqueles com culturas muito fortes que valorizam excessivamente resultados de curto prazo e que acabam por impactar o longo prazo das companhias. Uma cultura do tipo pode ser identificada ao se ver implementadas uma política de remuneração com uma porcentagem muita alta do salário baseada em bônus individuais por resultados, metas muito agressivas para executivos e funcionários ou o reforço a valores na empresa que enalteçam trabalho em demasia. Essa pressão por resultados no curto prazo a qualquer custo pode fazer com que companhias baixem taxas de investimento, incentive seus executivos a fraudarem a contabilidade para inflar receitas e lucros, ou fazerem o mesmo com órgãos reguladores para liberar ou melhorarem a imagem dos produtos da empresa para vender mais, além de vendedores mentirem em contratos para clientes, ou até mesmo estimular colaboradores a participarem em atos de corrupção para gerar ganhos como por meio de subornos ou “trocas de favores”.

Exemplos conhecidos existem no Brasil e no exterior, como a WorldCom, a própria Enron já citada, Luckin Coffee, Kobe Steel, Lehman Brothers, Volkswagen, Credit Suisse, além da Americanas aqui no país. Uma cultura que valorize o resultado de curto prazo, porém limitado pela ética da empresa e valorizando o seu futuro, é um relógio saudável para sustentabilidade futura. Ou seja, não basta construir um relógio — é imprescindível decidir qual construir para que a sustentabilidade de longo prazo seja garantida, ou seja, valorizando a “Genialidade do E”.

 

Pesos e contrapesos: equilíbrio do sistema
Pesos e contrapesos: equilíbrio do sistema

A ciência humana da economia

Talvez por minha formação variada ou pelo meu interesse acadêmico e profissional por estruturas humanas em geral, eu tendo a traçar paralelos entre pesquisas de áreas de estudo diferentes que me dão uma perspectiva interessante advindo dessa diversidade. Um estudo interessante sobre crescimento econômico sustentável de países é o apresentado por Daron Acemoglu e James A. Robinson no livro Por Que as Nações Fracassam. Eles discutem porque algumas nações são ricas e outras constantemente falham em sua busca de crescimento econômico sustentável. Parte dessa pesquisa analisa o que eles chamam de instituições inclusivas, aquelas que incluem de forma positiva boa parte, se não toda a população, e extrativas, aquelas que excluem a maior parte do povo de sua riqueza e seus direitos. Os dois pesquisadores discutem isso em duas dimensões, econômica e política.

Para o crescimento econômico de curto prazo, eles dizem que instituições econômicas inclusivas são suficientes. Exemplos são a defesa da propriedade privada, regras claras de patentes etc. para todos os membros da sociedade, pois estas são essenciais para o incentivo ao empreendedorismo e inovação. Porém, para o crescimento econômico realmente sustentável de países ao longo de décadas ou até mesmo séculos, instituições políticas inclusivas são essenciais. Elas são basicamente as de uma democracia efetiva, onde diversos atores participam das tomadas de decisões, com pouca centralidade de poder — é o que chamamos de sistemas de peso e contrapesos. Isso dificulta a mudança rápida de regras, mas, ao mesmo tempo, dá-lhes estabilidade e gera apoio para que melhores decisões sejam tomadas ao longo do tempo e com menos erros, dado que elas são tomadas com a participação de mais pessoas e tendo diferentes visões.

Uma parte importante dessas instituições políticas inclusivas é a cultura de envolvimento político da população, o que é essencial para a manutenção de instituições do tipo e impedir golpes no país. Para esse engajamento político, são necessários sistemas que incentivem a participação das pessoas, sendo os mais conhecidos o voto em candidatos, referendos e plebiscitos. Outros tradicionais incluem consultas públicas, como a que ocorreu recentemente sobre o Plano Diretor da cidade de São Paulo; a liberdade de expressão, seja pela mídia tradicional, seja pela internet; a possibilidade de iniciativas populares que sugerem projetos de leis para o Congresso analisar, sendo a Lei da Ficha Limpa a mais conhecida e a primeira no Brasil. É claro, ainda há muito espaço para se aprimorar no engajamento da população junto às instituições políticas em nosso país, mas a melhoria vem aos poucos.

Exemplo recente do bom funcionamento desse sistema de peso e contrapesos no Brasil, mostrando o equilíbrio do sistema, é a manutenção da decisão independente do Banco Central brasileiro mesmo depois de fortes pressões políticas para diminuir os juros. Porém, a mais tradicional definição teórica do sistema de pesos e contrapesos é a separação tripartite do poder (Executivo, Legislativo e Judiciário), criada por Montesquieu, em que dois destes tendem a controlar e fiscalizar a aplicação do terceiro. Esse sistema descentralizado de poder decisório impede ou dificulta que pequenas elites tomem o poder e destruam as instituições econômicas inclusivas, acabando com a riqueza do país e a extraindo para si.

Poderes centralizados, como em ditaduras, podem fazer mudanças mais rapidamente que levem as economias de países a um crescimento mais acelerado, como as da Coreia do Sul, Taiwan, China e Singapura. As duas primeiras cresceram muito rápido durante ditaduras, mas são democracias atualmente, enquanto as duas últimas ainda são ditaduras. Porém, essas estruturas centralizadas de poder também podem destruir rapidamente um país, como as ditaduras da Venezuela e a da Argentina, que já foram países muito ricos e que tiveram suas economias destruídas. A primeira na ditadura atual e a segunda em ditaduras já derrubadas.

Países com instituições políticas inclusivas, em grandes linhas as democráticas, podem demorar para desenhar instituições econômicas inclusivas que facilitem o crescimento econômico, mas acabam fazendo isso em algum momento. O Brasil é um caso típico, que aos poucos vem criando instituições econômicas mais inclusivas que facilitam o empreendedorismo, como o Plano Real, a lei de liberdade econômica, a própria reforma tributária, regras fiscais para o orçamento do governo, o Banco Central independente etc. Essas reformas vêm acontecendo aos poucos, dando maior estabilidade ao ambiente econômico do Brasil. Elas estão direcionando o país rumo a um crescimento econômico mais sustentável, baseado em maior produtividade, o que é essencial para o país crescer com o fim do boom demográfico e o envelhecimento de nossa população.

 

Genealogia e hierarquia
Famílias são estruturas sociais que que dependem de valores e cultura

A família empresária, as estruturas sociais e a construção do relógio

Discutimos a sustentabilidade de empresas e países, mas o que isso tem a ver com a sustentabilidade do crescimento econômico da sua família empresária? As famílias são estruturas sociais e podem extrair lições para sua sustentabilidade de estudos sobre instituições importantes para a sustentabilidade de outras estruturas sociais, como esses feitos sobre empresas e países. As famílias são, na verdade, as estruturas mais básicas da formação da sociedade. É do relacionamento entre elas, por meio do casamento entre famílias diferentes, de onde a sociedade e sua cultura surge, como descrito pelo antropólogo e filósofo francês Lévi-Strauss no seu clássico As Estruturas Elementares do Parentesco. Ou seja, não há cultura com apenas uma pessoa e não há família empresária com apenas um fundador no papel de empresário. No caso de uma família empresária, essas estruturas elementares incluem as famílias da primeira, segunda, terceira e outras gerações, que contam com esposas, maridos, primos, primas, sogros, sogras, cunhados e cunhadas etc. que exercem influência sobre os descendentes diretos dos fundadores, definidos de outra forma como os membros consanguíneos.

Porém, é verdade que famílias empresárias, mesmo aquelas com muitas gerações, são organizações muito menores do que um país ou empresas de grande porte. E estruturas sociais de menor porte dependem muito mais puramente de valores e cultura em si do que grandes organizações, que podem contar mais fortemente com processos e regras claras para fortalecer tais aspectos fundamentais. Famílias também podem contar com processos e regras claras, mas, dado o menor porte dessa estrutura humana, a centralidade de poder será maior independentemente do nível de governança que ela tenha, ou seja, regras e processos podem ser alterados mais facilmente. Porém, lições adaptáveis, mesmo a famílias pequenas, surgem desses estudos discutidos anteriormente.

A primeira, e talvez a mais importante: valores não existem se forem escritos só em um papel e colocados na parede. Eles precisam ser reforçados no dia a dia e nas ações de seus familiares, por menores que sejam. Em outras palavras, por meio da liderança pelo exemplo. Isso é muito reforçado por Jim Collins ao falar sobre a ideologia das empresas e no estudo sobre as nações quanto a reforçar a cultura democrática. De forma a ilustrar isso, seguem alguns exemplos.

Um dos valores mais apontados em famílias empresárias é o de ética. Porém, ao crescer, muitos familiares veem seus pais declararem uma idade mais baixa para entrar de graça ou pagar meia entrada em parques, cinemas ou rodízios de restaurantes; dividir notas fiscais para receber reembolsos mais altos do plano de saúde ou até mesmo sonegar imposto em suas empresas. Por mais comuns que sejam essas ações em nosso país, elas impactam os valores de ética, em especial de pessoas em estágio de crescimento, pois isso é marcante para elas e normalizam práticas do tipo, abrindo portas para hábitos cada vez piores. Estudos de corrupção mostram que pessoas não participam de grandes casos de corrupção logo de cara — elas iniciam em casos menores para fazer ações cada vez piores.

Outro valor comumente declarado por famílias empresárias é o de empreendedorismo. Porém, ao mesmo tempo, é habitual punir fortemente erros cometidos pelos membros das famílias, tornando-os muito avessos ao risco. Outra atitude usual é de pais tomarem decisões por seus filhos por considerarem que sabem o melhor para eles, tirando sua autonomia, e não apenas os orientando. O valor de empreendedorismo não pode existir sem tolerância ao erro e sem autonomia dos familiares, dado que esses aspectos trazem importantes lições de crescimento pessoal e profissional, inclusive a necessidade de realizar iniciativas próprias para atingir a vida e os sonhos que se deseja. Muitas famílias acabam quebrando, inclusive, pois membros da segunda e terceira gerações têm medo do erro e querem apenas manter o que a primeira geração construiu. A escolha de não tomar riscos e manter os status quo também é uma decisão e, muitas vezes, é a mais arriscada de todas, pois não há adaptação aos novos tempos.

Por fim, como último exemplo da discussão de valores, transparência é outro que se repete frequentemente nas declarações das famílias. Ações que reforçam este valor, assim como os outros, não se referem apenas ao âmbito de negócios, mas também ao dia a dia da família. É importante ter conversas francas e se mostrar vulnerável seja no âmbito pessoal, seja no de negócios, para reforçar tal valor. E conversas ocorrem apenas quando se está disposto a trocar ideias, a ouvir, a ser convencido ou mudar de opinião, e não quando se entra na discussão querendo somente convencer o outro a fazer o que se quer. Conversas sobre relacionamentos, dificuldades pessoais e emocionais, desafios etc. podem ser incluídas nessa dimensão, assim como sobre realização de novos investimentos, direcionamento da companhia e discussão de resultados dela. Isso acostuma a família a realizar conversas difíceis e não as evitar. A fuga de discutir temas complicados é algo que vi ocorrer recorrentemente na grande maioria das famílias empresárias com que lidei.

Outra lição muito importante que surge tanto do trabalho sobre a sustentabilidade das nações quanto do de Jim Collins é que a centralização de poder facilita grandes mudanças de forma rápida, seja em uma direção positiva, seja em uma direção negativa. Para países, ditaduras podem transformar a sociedade em uma nação rica ao implementar instituições econômicas inclusivas, assim como quebrar completamente sua economia. Para empresas, fundadores que tomam todas as decisões e são muito visionários podem construir empresas fenomenais, mas quando não se encontram mais lá para liderá-las, essas empresas desaparecem com seus líderes. Por não darem autonomia aos seus liderados, muitas vezes, essa centralização tende a atrair executivos e políticos que apenas concordam com seu líder, executam o que ele diz e não têm opiniões próprias.

Essa relação ocorre de forma parecida em famílias empresárias que tenham lideranças com estilo similar, o que acaba atraindo familiares para mais próximo dos negócios da família com perfil do que se chama em inglês de yes-man, ou seja, que apenas concordam com seus superiores, que são seus pais, tios e avós no caso de famílias empresárias. Isso tende a transformar a empresa da família em um cabide de empregos por empregar familiares principalmente com esse perfil. Dá para deduzir que os yes-man não têm competência para liderar uma organização, seja uma empresa, seus departamentos, país ou famílias empresárias, dado seu medo e incapacidade de tomar decisões, em especial as mais importantes e impactantes.

Esse jeito de lidar com decisões é parcialmente consequência do contexto em que eles se desenvolveram pessoalmente e profissionalmente, em especial o de centralização de poder decisório. Essa característica centralizadora, inclusive, pode ser uma cultura repassada a novas gerações e não existir apenas na primeira, porém os riscos continuam sendo os mesmos. No final, a descentralização do poder decisório permite a familiares crescerem de forma engajada dentro da família empresária, aprenderem a tomar decisões, vendo que são de fato parte daquele sistema, sendo respeitados como adultos e não apenas vistos como aqueles que devem executar as decisões de seus pais, ou seja, ainda colocados na posição de crianças mesmo depois de crescidos. Este processo de descentralização pode e deve ser feito aos poucos e depende da maior transparência, discutida anteriormente no artigo. Esse avanço é necessário para gerar uma família empresária unida em torno de um propósito e uma cultura única.

Porém, há uma diferença essencial entre colaboradores e familiares. Não se pode demitir estes últimos como se faz com colaboradores que não se adequam aos valores e à cultura da empresa, como exemplificado no caso da Disney. Devo dizer que ao mesmo tempo também não se pode demitir cidadãos como no caso de um país, e temos que encontrar soluções para engajar o máximo de pessoas possível, talvez algo mais similar à situação de famílias. Como dito antes, há ferramentas para engajar e estimular pessoas a se juntar à cultura de uma organização como processos adaptados à cultura da companhia, avaliações em empresas que consideram seus valores, assim como outras estruturas em países para gerar transparência e envolver colaboradores e cidadãos nos processos decisórios, seja com autonomia operacional, seja apenas na discussão, aumentando o engajamento deles nas atividades dessas estruturas sociais ao se sentirem incluídos.

Em famílias menores é difícil colocar de pé estruturas e processos que fortaleçam esses valores e práticas dentro delas, porém, as ações no dia a dia podem ser muitas vezes mais do que suficientes. Por exemplo, envolver outros familiares em discussões sobre decisões importantes e ouvi-los de fato. Em famílias maiores se pode criar estruturas como um shadow council, que é um conselho de pessoas mais novas, que podem dar uma visão e recomendações diferentes para o Conselho de Administração, que geralmente é constituído por pessoas mais velhas. Essa estrutura surge tanto em famílias empresárias como em corporações.

Outros meios de envolver familiares nessas conversas, garantindo maior transparência e engajamento de toda a família, podem ser apresentar resultados da empresa familiar a todos os membros ou até mesmo colocar pessoas mais novas no Conselho de Administração, de Sócios ou de Família, seja com voto, seja com voz — ou seja, apenas abertura para falar, ou apenas como ouvinte; em outras palavras, estão lá somente para escutar a reunião. No final, não há ninguém tão júnior que não possa contribuir com algo e não há ninguém tão sênior que não tenha nada a aprender. De certa forma, esses sistemas de transparência e engajamento são similares aos que aparecem nos exemplos dados na discussão do trabalho de Acemoglu e Robinson para envolver cidadãos de forma mais ativa na democracia. No Brasil, temos o exemplo da Lei de Acesso à Informação, que gera maior engajamento de nossos cidadãos e jornalistas ao facilitar o acesso a dados de nossos governos.

Por fim, a “Genialidade do E” de Jim Collins é altamente aplicável ao contexto de famílias empresárias, porém em dimensões diferentes, apesar de similares ao que Collins coloca no seu livro. Um dos principais paradoxos comumente levantados em famílias empresárias é como permitir que filhos, netos e novas gerações possam atingir seus sonhos ao mesmo tempo em que possam contribuir para a construção dos negócios familiares. Muitas famílias veem que o único caminho de contribuir para esses negócios é que os filhos assumam como executivos. Porém, há diferentes papeis que podem ser assumidos por familiares que não querem se envolver nesse nível ou não direcionaram sua carreira para isso. Esses papeis podem incluir desde serem membros do Conselho de Administração ou outros conselhos até organizar os eventos da família de meio ou final do ano, ou contribuir com as ações filantrópicas desenhadas pelos familiares.

Claro, há sugestões polêmicas para situações mais complexas. Uma delas é direcionar uma parte maior das ações da empresa da família para aqueles capacitados para o trabalho de dar um futuro a companhia, seja como executivos, seja como conselheiros, enquanto se direcionam outros ativos (como imóveis alugados, casas ou carros) aos familiares que escolheram outras carreiras não ligadas a negócios. Por fim, caso não haja ninguém capaz de exercer o papel como líder empresarial da família, pode ser uma opção válida a venda do negócio e organizar a gestão do dinheiro obtido com o apoio de um private banker, um AAI (agente autônomo de investimentos) ou um multi-family office comercial. Ao mesmo tempo que se tente equilibrar as escolhas dos sonhos de vida de cada familiar com a contribuição para o futuro das famílias empresárias, é importante tomar decisões pragmáticas para diferentes situações. Como dito anteriormente, famílias empresárias são estruturas sociais menores, com menos flexibilidade e menor pool de talentos. Logo, utilizar a “Genialidade do E” pode ser mais difícil do que em empresas ou países.

Há também outros aspectos da “Genialidade do E” que podem ser incluídos aqui, como a tomada de decisão pelas pessoas com maior qualificação e envolver as gerações mais novas nessas decisões. Estruturas como o shadow council e outras mencionadas anteriormente podem ser uma boa prática para colocar esses dois aspectos em prática ao mesmo tempo.

Um outro ângulo da “Genialidade do E” é o equilíbrio do risco com o incentivo ao empreendedorismo dentro da família empresária, o que pode ser feito, por exemplo, com projetos iniciais pequenos para familiares mais novos, dando-lhes autonomia, permitindo que eles aprendam como ser empreendedores sem arriscar o patrimônio da família, tolerando erros nesses projetos ou até mesmo que eles quebrem cada um dos empreendimentos tentados. Isso pode ser colocado em prática por meio de um programa de trainee na empresa da família, ter um dinheiro disponível para que esses familiares criem pequenas empresas ou projetos próprios, ou, algo mais comum, fazê-los trabalhar fora do grupo familiar para aprender competências em outras organizações de forma a executar, posteriormente, projetos para aumentar o patrimônio da família.

Um programa de mentoria para eles pode ser interessante para que aprendam no dia a dia do projeto e não se sintam sem apoio e orientação nessas empreitadas. De qualquer forma, é importante lembrar que o aprendizado ao atuar como empreendedor é basicamente na prática ou on the job, ao mesmo tempo que é mais rápido e generalista, dado que se precisa lidar com todo tipo de problema de forma urgente, desde atendimento ao cliente até a contratação de pessoas. Por outro lado, trabalhar em uma empresa maior ensina aos familiares como navegar em uma organização de grande porte com diferentes áreas, a lidar com superiores e pares, e eles acabam adquirindo uma especialização técnica maior ao serem orientados por alguém mais experiente.

Por fim, manter uma boa qualidade de vida para a família empresária e um bom nível de investimentos de longo prazo é um outro paradoxo a se resolver. Esse padrão de vida de qualidade geralmente é pago por dividendos, e esse equilíbrio pode ser difícil de solucionar. Mas o principal meio de fazê-lo é por meio de conversas transparentes, mostrando resultados do grupo familiar de forma frequente e tendo uma política de dividendos clara. Isso dá segurança tanto a executivos quanto a familiares, deixando-os planejar gastos pessoais e novos investimentos na empresa.

Em resumo, os aprendizados principais dos estudos apresentados neste artigo incluem como colocar valores e culturas em prática, seja com ações do dia a dia ou com estruturas formais, a importância da descentralização do poder de tomada de decisão para formar sucessores, além de sempre avaliar como equilibrar diversos paradoxos aparentemente presentes nas famílias empresárias por meio da “Genialidade do E”, utilizando ações e políticas efetivas. Em outras palavras, tudo isso deve ser colocado em prática por meio de mecanismos com dentes, como dito por Collins, e não ser deixado apenas no papel. Porém, a escolha e a discussão com a sua família sobre qual relógio vocês querem construir e qual cultura colocar em prática será a decisão primordial para direcionar o dia a dia de vocês e o desenho de políticas, regras, estruturas, governança, processos etc. Isso os levará a construir um relógio com o perfil para garantir a sustentabilidade no longo prazo de sua família e em linha com quem vocês são, pois é isso que direcionará as decisões de sua família, inclusive daqui a muitas décadas, e fará com que sua identidade se mantenha ao longo das gerações.


Renan Toenjes

*Renan Toenjes é consultor de famílias empresárias formado em Administração e Economia pelo Insper, em Ciências Sociais com especialização em Ciência Política pela FFLCH-USP e em Contabilidade pela Unicsul.

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