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A promessa dos implantes cerebrais ganha tração

A aprovação de experiências da Neuralink e a divulgação do caso de um paraplégico holandês que voltou a andar projetam um novo — e bilionário — negócio

A aprovação de experiências da Neuralink e a divulgação do caso de um paraplégico holandês que voltou a andar projetam um novo — e bilionário — negócio

 

David A. Cohen

 

O holandês Gert Jan Oskam passou uma década sem mover as pernas. Ele vivia na China e sofreu um acidente de motocicleta em 2011, que o tornou paraplégico. Em 2021, de acordo com um estudo publicado em maio passado, Oskam voltou a caminhar, apenas com a ajuda de um andador para lhe dar estabilidade.

O avanço ocorreu graças a um implante feito por uma equipe franco-suíça, que construiu uma espécie de ponte digital entre seu cérebro e a espinha, permitindo que os sinais elétricos criados por seu pensamento ultrapassassem áreas nervosas destruídas no acidente.

Apenas dois dias depois da divulgação do artigo relatando essa proeza, publicado na revista Nature, a FDA, agência americana que regula remédios e alimentos, aprovou os primeiros testes em seres humanos de implantes da Neuralink. A empresa do bilionário Elon Musk pretende inventar aparelhos para curar problemas como paralisia, cegueira, depressão… e mais para a frente elevar o potencial do ser humano, dando-lhe habilidades extras, tais como pernas biônicas e telepatia.

Não são os primeiros exemplos de progressos nessa área, diz o bioquímico Paulo de Paiva Amaral, professor de Bioengenharia e Biodesign do Insper. “Nosso entendimento da função nervosa vem desde o italiano Luigi Galvani, um pioneiro em bioeletricidade. Em experimentos com sapos, ele descobriu que, mesmo com um animal morto, uma carga elétrica podia fazê-lo se movimentar.” Isso foi em 1780.

O projeto de colocar um implante no cérebro surgiu há mais de meio século, no final dos anos 1960. Pesquisadores da Universidade Stanford conectaram um conjunto de eletrodos ao cérebro de um mamífero (na ocasião foram utilizados cinco gatos). Experiências com humanos começaram pouco mais de 30 anos depois, no início deste milênio.

O que está acontecendo agora é como o processo de falência de um personagem de Ernest Hemingway no livro O Sol Também se Levanta, que ocorreu “primeiro gradualmente, e então de repente”. Ao que parece, estamos hoje no limiar do “de repente”.

Não é que tenhamos finalmente compreendido o cérebro. “Apesar de avanços muito rápidos nas últimas décadas, isso ainda é um tremendo desafio”, aponta Amaral. “Por outro lado, embora ainda saibamos pouco sobre as bases moleculares e mesmo fisiológicas do cérebro, estamos tendo bastante entendimento funcional.”

Graças a tecnologias como a ressonância magnética, é possível mapear áreas de atividade e estabelecer relações. Ou seja, não conseguimos explicar por que ou como um pensamento provoca uma determinada ação, mas identificamos razoavelmente bem as áreas que “se acendem” no cérebro quando uma perna levanta, por exemplo.

As gerações anteriores de cientistas, incluindo o pioneiro brasileiro Miguel Nicolelis, fizeram avanços incríveis na área, como permitir que macacos controlassem videogames através de implantes. Mas não tinham ainda acesso aos avanços em inteligência artificial — um elemento que muda o jogo.

“Com a entrada da inteligência artificial, agora não só a gente tem formas de monitoramento dos sinais do cérebro como consegue fazer isso sem entender o mecanismo”, diz Amaral. “Estamos aplicando uma caixa preta (a IA) para interpretar outra (o cérebro).”

O caso de Oskam é exemplar. Para conseguir fazê-lo andar, os cientistas implantaram eletrodos em seu crânio e em sua espinha. Em seguida, utilizaram um programa de machine learning para observar quais partes do cérebro se acendiam quando ele tentava mover diferentes partes do corpo. Esse decodificador de pensamentos foi capaz de associar a atividade de certos eletrodos com intenções determinadas. Assim, quando ele tentava mover os quadris, uma configuração se acendia; quando tentava mover o tornozelo, outra.

A partir daí, os pesquisadores usaram outro algoritmo para conectar o implante do cérebro ao implante da espinha. Quando a configuração de eletrodos da movimentação do tornozelo se acendia, enviava sinais para o implante da espinha mover esta parte do corpo. Depois de meses de treinamento, foi possível fazer ajustes finos o suficiente para permitir que o paciente andasse.

 

Elon Musk
O empresário Elon Musk: aposta na startup de neurotecnologia Neuralink

Os investidores entram em campo

Os avanços tecnológicos são uma parte da equação. Mas há outros fatores igualmente cruciais para que o sistema avance. De acordo com Adam Rogers, jornalista da Business Insider que escreve sobre esta área há décadas, a área de implantes finalmente cruzou o que especialistas em tecnologia chamam de “vale da morte”: o abismo que existe entre a pesquisa e a comercialização.

Neste ponto, a colaboração de Elon Musk é enorme. Com sua aura de desbravador (ainda que um desbravador afeito a bravatas), ele chamou a atenção dos investidores de venture capital para esse mercado.

“Nós precisamos agradecer a Musk e à Neuralink por colocarem a neurotech no mapa”, diz Enke Bashllari, uma neurocientista que dirige a Arkitekt Ventures, uma firma de investimentos. Segundo algumas estimativas, o mercado de neurotechs pode chegar a 3 bilhões de dólares nos próximos dois anos e praticamente dobrar até o fim da década.

Mais dinheiro significa mais pesquisa, mais experimentos… Os saltos anteriores tiveram a ver com investimentos estatais, principalmente nos Estados Unidos. No século passado, a agência de defesa do país patrocinou programas para criar próteses melhores e meios mais eficientes de controlá-las (uma necessidade crescente dadas as guerras em que os americanos se envolveram). Em 2013, foi o governo Obama que lançou uma iniciativa para desenvolver os implantes cerebrais (graças a ele, as baterias ficaram menores, novos materiais foram testados para os implantes, surgiram os primeiros chips capazes de se comunicar sem fios).

O financiamento de venture capital, contudo, tende a ser mais robusto — basta lembrar da recente explosão do setor de tecnologia.

Ao mesmo tempo, a ajuda do governo migrou para onde pode ser mais relevante: nas garantias regulatórias. Em 2022, a FDA emitiu suas recomendações finais para os implantes desenvolvidos para tratar paralisia e outras dificuldades de mobilidade. A FDA trabalhou nessa regras nos últimos oito anos. As 44 páginas resultantes permitem balizar as pesquisas e os esforços de engenharia das empresas. Foi isso que facilitou a aprovação dos implantes da Neuralink, em maio, depois de várias tentativas frustradas nos últimos anos.

Mais ainda: essas regras abrem as portas para que os implantes cerebrais sejam incluídos em coberturas de planos de saúde. São equipamentos caros, mas podem representar uma economia em relação aos tratamentos intensivos requeridos por tantos casos de paralisia por acidentes. Uma vez que as seguradoras de saúde entrem nesse negócio, calcula Rogers, o potencial desse mercado será sensivelmente maior.

 

Os obstáculos no caminho

Há vários desafios a vencer para chegar lá. Um deles é que implantes cerebrais são complicados. Muito complicados. Nos Estados Unidos, que são provavelmente o país mais avançado em procedimentos complexos, há hoje apenas cerca de uma centena e meia de cirurgiões capazes de fazer essa operação. E um implante precisa de manutenção, incluindo a troca de fios.

A Neuralink pretende remover esste obstáculo desenvolvendo robôs que possam realizar a cirurgia melhor do que os humanos. Outra possível solução vem de uma empresa rival, a Synchron, que monta seu aparelho em um minúsculo cilindro expansível que caminha por uma veia até o cérebro (uma cirurgia vascular é muito mais simples do que uma operação do cérebro, mas ainda há questões em relação à eficiência desses implantes).

Outra grande dificuldade é que os implantes são duros, ainda que minúsculos; e a matéria do cérebro é gelatinosa e pegajosa. Assim, os fios, usualmente de silício, apresentam o risco de ferir os cérebros que estão tentando ler. Mesmo que não rompam nada, os fios podem ser rejeitados pelo organismo. Para combater a invasão, um cérebro vivo normalmente recobre o eletrodo com células glia.

“Os fios também podem migrar e provocar inflamações, prejudicar o funcionamento de áreas críticas do cérebro ou rasgar vasos sanguíneos”, disse à agência de notícias Reuters um ex-funcionário da FDA, Victor Krauthamer. Algumas soluções que estão sendo testadas são a mudança de materiais (para grafeno, por exemplo) e o desenvolvimento de fios mais flexíveis.

Os problemas que a bateria do implante pode causar também são potencialmente sérios. O plano da Neuralink é que elas possam ser recarregadas remotamente. Mas ainda é preciso provar que as chances de esse procedimento falhar são muito baixas, já que a corrente elétrica poderia danificar o tecido cerebral.

Uma outra questão é ética. Experimentos para o avanço dessa tecnologia envolvem o uso de animais, em especial primatas, e em estágios posteriores seres humanos. Há acusações de que a Neuralink, em 2021, tenha implantado aparelhos com o tamanho errado em 25 porcos, que tiveram de sofrer eutanásia.

São obstáculos importantes, mas há também o fato de que várias pesquisas apontam uma alta disposição de pessoas feridas ou doentes a participar de experiências médicas.

Em paralelo, também se desenvolvem os implantes não invasivos. “A maioria dos implantes exige uma cirurgia, mas há avanços no que se chama de biossensores”, afirma Amaral, do Insper. “São aparelhos capazes de capturar sinais nervosos sem necessidade de estar dentro do crânio.” É uma área muito promissora, mas é preciso resolver o ruído nas informações. “O crânio dificulta a captura com precisão dos sinais elétricos”, explica Amaral.

Para complicar um pouquinho mais, muitas funções cerebrais são executadas por diferentes áreas em consonância, o que dificulta bastante a interpretação dos sinais — e a definição das intervenções a serem realizadas. Nesse quesito, aposta-se na evolução da inteligência artificial. Há, porém, uma dificuldade extra: “as pessoas têm idiossincrasias, e as reações nervosas variam de uma pessoa para outra”. Ou seja, para que o procedimento dê certo é preciso haver uma mistura de ciência e arte, de equipamento e treinamento, de ação médica e cooperação do paciente.

“Esta área de neuromodulação tem recebido muitos investimentos”, conta Amaral, “inclusive de farmacêuticas, como a Pfizer, porque há um grande potencial para tratar de várias doenças”.

 

Um mercado pronto para andar

Não é de estranhar, portanto, que a autorização da FDA para que a Neuralink comece a testar implantes em pessoas tenha feito o valor da empresa mais do que dobrar, de 2 bilhões de dólares há dois anos para 5 bilhões de dólares agora — embora esses números sejam baseados em transações particulares, já que a companhia não é listada em bolsa de valores.

As neurotechs, em seu conjunto, prometem avanços significativos — em um tempo relativamente breve — para males como paralisia e cegueira, mas também para condições como obesidade, autismo, depressão, esquizofrenia, epilepsia, mal de Alzheimer… O uso de remédios pode ser enormemente afetado. “Em geral nós tomamos remédios que afetam áreas grandes do organismo, com efeitos colaterais significativos”, lembra Amaral. “Um implante pode soltar uma fração dessa dose no ponto correto, onde ela é necessária.”

Mais à frente, especulam-se usos para pessoas saudáveis. Musk já se referiu aos implantes como “fitbit para o cérebro”, propondo que os humanos transformados em ciborgues teriam chance maior de competir com os robôs no futuro. A área física, diz Amaral, já está bem adiantada, com o controle de aparelhos que podem levantar cargas pesadas, por exemplo.

O tratamento da paralisia pode ser, por si só, suficiente para fazer o campo das neurotechs atravessar o tal do “vale da morte” das tecnologias. Possibilitar alguém a voltar a andar é um feito e tanto; mas é esse outro campo, tão amplo, da saúde mental e dos remédios em geral, que deverá fazer o mercado andar. Talvez correr, saltar e, quem sabe, voar.

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