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O poder das pequenas decisões

A desonestidade inconsciente, o superego e a intuição de que pequenos delitos levam a grandes delitos são conteúdos presentes na ética das escolhas que fazemos diariamente

A desonestidade inconsciente, o superego e a intuição de que pequenos delitos levam a grandes delitos são conteúdos presentes na ética das escolhas que fazemos diariamente

 

Manuela de Oliveira Lopes Arbex Hernandes

 

O filme “Bad Education”, dirigido por Cory Finley, retrata a história do maior roubo do sistema educacional dos Estados Unidos, com um desvio de cerca de 11 milhões de dólares. Frank Tassone era o superintendente do distrito escolar de Roslyn, no estado de Nova Iorque, um homem respeitado por todos, com vestimentas elegantes e elogiado pela comunidade. Pam Gluckin, era administradora financeira e assistente de Tassone, todos a respeitavam.

Ao longo da narrativa, funcionários descobrem que Pam e sua família  utilizavam dinheiro da escola para compras pessoais. Adicionalmente, uma estudante que participava do jornal da escola, durante suas pesquisas, acaba encontrando informações distorcidas nos arquivos financeiros da instituição. Juntamente ao olhar atento de outros funcionários, descobre-se também o esquema fraudulento de Frank, o que causa grande choque, já que o mandatário era visto como um homem justo e honesto. Ao final do filme, revela-se a quantia de 2.2 milhões de dólares desviados por Frank Tassone e 4.3 milhões por Pam. Os dois foram condenados.

Nesse contexto, a obra “Previsivelmente Irracional”, de Dan Ariely, especialista em economia comportamental, apresenta conceitos que podem ser relacionados às atitudes dos personagens principais do filme citado. Primeiramente, de acordo com o capítulo 13 do livro, há dois tipos de desonestidade: aquele em que a pessoa avalia o custo-benefício de realizar o crime, como quanto conseguiria ganhar com o ato e quais seriam as consequências. E aquele cometido por pessoas que se julgam honestas, como  pegar uma caneta escondida durante uma reunião.

Além disso, ainda no capítulo 13, Ariely cita Sigmund Freud para explicar o conceito de superego, formado pela internalização de virtudes sociais no cérebro ao longo da vida. O superego ficaria satisfeito quando a ética da sociedade é seguida e insatisfeito quando não. Porém, para Ariely, o superego só é alertado quando ocorrem grandes transgressões, como grandes roubos. Então, a intuição de que pequenos delitos levam a grandes delitos é apresentada. Como o superego só é despertado se há a percepção de um grande delito, a pessoa, ao cometer um pequeno delito, não se sente culpada, consequentemente, pratica diversos pequenos delitos que, considerados em conjunto, tornam-se enormes.

É perceptível a presença dessa dinâmica no filme. Os roubos efetuados por Pam e Frank começaram pequenos, como no caso de Frank confundir seu cartão pessoal com o da escola para pagar sua refeição. Dessa maneira, seus superegos não se sentiram afetados e continuaram sendo desonestos, possivelmente sem terem consciência, o que os  enquadra no segundo tipo de desonestidade. Porém, ao passarem a fazer grandes transgressões, os personagens se deslocam para o primeiro tipo de desonestidade, possivelmente inconscientemente.

Na óptica dos debates éticos, os conceitos contribuem no esclarecimento das tomadas de decisões das pessoas e podem implicar em novas discussões, pois são um contraponto ao conceito platônico de “Anel de Giges”. Sua definição é, resumidamente, o pensamento “se eu não for pego, vou trapacear”, porém Ariely pensa “se eu não for pego, não é certeza que vou trapacear”, pois o especialista chega a conclusão que o superego tem grande influência nas decisões. Na visão de Ariely, se for uma grande trapaça, o indivíduo que se considera honesto pode não cometer, diferente da situação do “Anel de Giges”, em que, uma vez invisível, as pessoas podem cometer qualquer atrocidade.

Um exemplo do filme pode ilustrar a aplicação das ideias fundamentais dos conceitos citados. Frank tenta se explicar ao colega com a esperança de ser perdoado. Diz que tudo começou quando confundiu os cartões na hora de pagar um lanche de 20 dólares e que depois retornaria o valor à escola. Porém, alegou que ninguém percebeu e então não devolveu o dinheiro. Como se vê, suas ações se iniciaram em pequenos delitos – não censurados por seu superego – que  persistiram até o dia em que criou uma empresa fantasma que seria fornecedora de materiais escolares, representando seu grande delito.

Finalmente, a fala de Ariely no décimo quarto capítulo do livro mencionado, diz muito sobre o caso: “uma vez que a ética profissional é declinada, é difícil recuperá-la”. Nesse sentido, podemos concluir, subjetivamente, que a desonestidade inconsciente, o superego e a intuição de que pequenos delitos levam a grandes delitos são conteúdos presentes na ética das escolhas que fazemos diariamente.

 


Referências:

ARIELY, Dan. Previsivelmente Irracional. tradução de Ivo Korytowski. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Sextante, 2020.

BAD EDUCATION. Direção: Corey Finley. Produção de Oren Moverman e Fred Berger. Estados Unidos: HBO, 2019. HBO max.


Este texto foi escolhido pelo Prêmio Pensamento Crítico 2023

 

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