O uso do termo “indígena” em lugar de “índio” é um reconhecimento à diversidade de sentidos, histórias, sonhos e projetos desses grupos que se mantêm há milênios pelo cultivo da diferença
Sérgio Roberto Cardoso*
Recentemente, no mês de abril, tivemos a celebração do primeiro Dia dos Povos Indígenas. Talvez você nem tenha notado. Não foi feriado, você pode não ter visto nada nas redes sociais ou — mais provavelmente — pode não ser uma pessoa indígena ou não ter convívio com um indígena onde mora, em sua faculdade ou em seu ambiente de trabalho.
Organizações, líderes e representantes de comunidades e aldeamentos indígenas, ativistas, políticos e educadores, no entanto, festejaram bastante esse dia. Você sabe por quê? Por considerarem-no como uma conquista histórica.
Embora o projeto de lei que cria a data tenha sido apresentado por um senador não indígena, Fabiano Contarato, seu texto foi escrito por uma deputada indígena, Joenia Wapichana. É uma conquista, portanto, dos povos originários (que muito antigamente eram chamados de povos primitivos) e a promessa de mudanças na maneira como a questão indígena poderá ser tratada daqui para frente.
Mas o que propriamente a mudança do nome “dia do índio” para Dia dos Povos Indígenas sinaliza? Qual o problema em dizer “índio” nos dias de hoje? Quais mudanças são esperadas com essa atualização? Buscarei explanar estes pontos, mas, antes, voltemos ao momento e ao modo como o tema geralmente chegava até nós.
É quase certo que muitas e muitos de nós, quando crianças, sempre próximo ao dia 19 de abril, voltávamos da escola para casa com algum tipo de pintura facial ou adereços de cabeça, com instrumentos musicais ou mesmo artefatos de caça, feitos em aulas de artes. Vínhamos ainda, balbuciando alguns sons incomuns, cantarolando canções com dizeres sobre a mãe d’agua, botos, onças ou a mandioca, a lua etc. Voltávamos, portanto, fantasiadas e fantasiados de índio. Colares, cocares de penas e pinturas no rosto. Essa foi, para muitos de nós, a primeira — e para muitos, infelizmente — a única imagem aprendida e preenchida sobre “ser índio” no Brasil.
O termo índio, como já é bastante sabido, surge de um erro geográfico: navegantes comerciantes europeus, que exploravam novas rotas para a índia, chegaram ao continente americano no século XV e nomearam a população que aqui encontraram de índios, por crerem que já estavam nas regiões da Índia.
Índio foi, assim, um dos muitos nomes pelos quais essas populações, que originalmente habitavam as Américas há cerca de 14 mil anos, foram erroneamente chamadas na história a partir dos processos de colonização desses territórios que se iniciaram com abusos, explorações e desumanização, justificados pela fé e pelo progresso da civilização.
Muitos séculos se passaram e os indígenas, ou melhor, esse índio — genérico, exótico, sem gênero, história, endereço ou identidade — vai sendo forjado como a representação reificada do passado idílico e natural das sociedades americanas. Ao mesmo tempo que processos de dominação e controle os faziam ser escravizados, fiéis a uma fé incompatível e, no limite, exterminados. Essa dominação perdurou por muitos séculos, e somente em 1910 é criado, pelo Estado brasileiro, um Serviço de Proteção ao Índio. Décadas mais tarde, o dia do índio foi instituto pelo Decreto-Lei nº 5.540, de 2 de junho de 1943, fruto de uma reinvidicação feita em 1940, em um congresso interamericano indígena, no México. O surgimento de uma política indigenista somente se dará em 1967, quando esse serviço se torna a Funai, a Fundação Nacional do Indio.
Indío, portanto, foi por muito tempo uma nomenclatura bastante carregada de sentido pejorativo, colonialista, preconceitousosa e hierarquica. Com ela se estipulava um “tipo de pessoa” — na maioria das vezes considerada inferior, atrasada, sem pudores, servil, sem lógica nem intelecto. O termo era muito usado por bandeirantes com o sentido de indolentes, ou seja, preguiçosos. São atributos incompatíveis com o que se desejava construir como imagem de uma nação agora trabalhadora e pronta para receber instituições avançadas da modernidade.
Outro aspecto importante para entender como o termo índio tornou-se negativo é que ele jamais havia sido criado pelas próprias populações indígenas para se autorreferirem como humanos. Uma identidade, portanto, alheia e generalizadora, que não contemplava suas próprias percepções de ser e estar no mundo e suas tantas diferenças entre etnias.
Com a criação da Funai, a consolidação dos estudos de antropologia e etnologia das populações indígenais e a organização política dessas populações em seus territórios e reservas, as populações começaram a se autodeclararem como indígenas, pelo fato de este termo refletir melhor a pluralidade de formas de vidas, de línguas, de origens e culturas que possuem e também da relação que desenvolvem com a sociedade abrangente.
Nas palavras do relator do projeto de lei: “Reconhecer os povos indígenas, no plural, é mais do que uma correção formal. A partir desse gesto, podemos celebrar a sua diversidade e refletir sobre como acolher e incluir essas identidades numa sociedade democrática e pluralista, repudiando o impulso integracionista que o passado colonial nos legou”[1]
Enquanto aguardamos os dados do Censo de 2022, os mais recentes de que dispomos, do Censo de 2010, constatam sermos formados por 305 povos indígenas, que possuem mais de 270 línguas num contingente de cerca de 818 mil indígenas.
Este cenário, portanto, não permite mais que falássemos de indígenas no singular, a ponto de a ONU reconhecer que está no Brasil a maior diversidade de povos indígenas do mundo. Informações preliminares do Censo de 2022 indicam ter havido um crescimento de mais de 60% de indígenas brasileiros em uma década. Essa estimativa é factível se pensarmos no crescimento da participação dessas populações na agenda política e de direitos do país.
Mesmo frente a esses avanços históricos, por que ainda temos uma imagem romantizada de populações ameríndias?
Bem, pessoas que tiveram suas infâncias vividas entre as décadas de 1980 e 1990, além de virem pintadas de “índio” para a casa, ouviram canções interpretadas por apresentadoras de programas infantis na televisão e conheceram um outro recorte, questionável, do que era ser uma criança indígena. Já quem é nascido antes dessas décadas, possivelmente, manteve a imagem de indígenas da América do Norte como representação —apaches estavam entre as mais comuns. Poucas eram as outras formas de representação mais fidedigna de suas vidas. Terminamos todos, porém, lamentavelmente o século XX com a estarrecedora imagem de Galdino Pataxó, um ativista indígena incendiado por completo em 1997 por jovens ricos de Brasília que acharam engraçado atear fogo em uma pessoa que dormia na rua.
A partir dos anos 2000, algumas mudanças nessa representação do “índio do livro didático” foram mudando, ainda que não por razões positivas, como a que citei, mas algumas com mais esperança. A posse de terras por alguns povos, a resistência frente ao avanço de grileiros e posseiros em território demarcados, a chegada de estudantes aldeados às universidades, às estantes das livrarias e ao poder público. Em 2008, torna-se obrigatório o ensino de história e cultura indígena brasileira nas escolas dos sistemas públicos e privados.
Assim, a adoção do termo indígena é uma atualização vista como conquista de décadas de contato com a sociedade envolvente desses povos e seus aliados e aliadas que, sempre que ouvidos, insistiriam em que fosse reconhecida a imensa diversidade de sentidos, histórias, sonhos e projetos que possuem enquanto grupos humanos que se mantêm humanos há milênios justamente pelo cultivo da diferença entre eles e as demais formas de vida em sociedade.
Além de indígena, é possível que você os veja se autodenominando ameríndios, povos da floresta, não brancos ou pelos nomes tantos que cada cultura dá a si mesmo e que, igualmente às definições que usamos, precisam ser respeitadas.
Atualmente, são ainda diversos e complexos os problemas enfrentados pelos povos indígenas em todo o território brasileiro. Desde o preconceito e a discriminação em ambiente urbanos, como os atentados às lideranças e pessoas aliadas à causa, passando por doenças que os acometem pela escassez de recursos em seus territórios, impondo modos alimentares pouco nutritivos ou mesmo nocivos, até o aumento do consumo de álcool dada as incertezas e os riscos de sua proteção.
Ainda precisam lutar pelo reconhecimento do direito à posse coletiva de suas terras, garantir que as florestas não serão mais devastadas para extração de recursos para fins comerciais, assegurar educação intercultural e bilingue em escolas indígenas; ter representantes em diversas instâncias dos poderes públicos; garantir políticas de saneamento, de memória e de acesso a saúde e oportunidades de estudos profissionalizantes e universitários. Há ainda a luta diária em conscientizar povos não indígenas que ser indígena não implica a recusa compulsória de relações com o que é produzido fora das comunidades.
Embora se registre nos últimos anos o aumento da chegada de representantes de povos indígenas ao Poder Legislativo, foi somente em 2023 que vimos a nomeação da primeira mulher indígena a um cargo de ministra federal. É a indígena Sonia Guajajara quem está à frente do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas. Além disso, temos a primeira pessoa indígena a presidir a Funai, Joenia Wapichana. A Funai, a propósito, passou neste ano a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas.
A partir dos dados que serão publicados, o ministério espera aprimorar a construção de políticas públicas de saúde, educação, assistência social e outras que podem ser criadas. Pode buscar levantar recursos internacionais para investimentos. Conhecer a pluralidade de formas de vida dessa parcela da população possibilitará que seus representantes atinjam metas mais assertivas nas reivindicações e no planejamento dos recursos.
Como se vê, instituir um ministério específico para executar políticas públicas direcionadas aos povos indígenas é considerado um avanço na administração pública, que, com isso, reconhece a equidade como justiça.
De um mistério como este, indígenas esperam de seus servidores uma articulação maior com deputados para aprovação de um orçamento condizente com a execução das demandas prioritárias. Almejam o acompanhamento de processos que estão no Poder Judiciário para que ganhem celeridade e o devido zelo com as especificidades culturais dessa parcela da população.
Buscam por articulação interministerial, pautando as demandas indígenas em projetos e ações tomadas por demais ministérios.
Por fim, uma gestão da Funai como órgão executivo que denuncie às autoridades as situações de vulnerabilidade e que consiga manter a qualidade dos processos de reconhecimento e titulação das terras indígenas, da política de saúde indígena e do fomento a políticas de inclusão desses povos que, mais do que trajes, cantos e adornos diferentes, têm muito mais a nos ensinar sobre existir há milênios neste mundo.
* Sérgio Roberto Cardoso, cientista social, é professor no curso de Engenharia (Ciências, Tecnologias e Sociedades) e leciona também a disciplina de Sociologia e Política. Faz parte da Comissão de Diversidade, Equidade e Inclusão do Insper.
[1]Aprovado projeto que institui o Dia dos Povos Indígenas