Nalva Moura, da Associação Pacto de Promoção da Equidade Racial, explica as nuances entre os três termos — e o que eles significam para o combate ao racismo no Brasil
Bárbara Nór
Racismo, preconceito e injúria racial. Apesar de cada vez mais frequentes no noticiário e em discussões nas redes sociais, esses termos ainda causam confusão para muita gente. Afinal, se há diferenças importantes entre cada um e como cada um se relaciona à luta contra o racismo no Brasil, os três também se complementam.
É isso que explica Nalva Moura, gerente de relações institucionais da Associação Pacto de Promoção da Equidade Racial. “O preconceito leva à discriminação, que leva à injúria racial e ao racismo”, diz Nalva. “É como se fosse uma jornada que vai em uma crescente, no sentido de ir causando cada vez mais danos na sociedade e, sobretudo, nas relações.”
Assim, a primeira coisa que vem, segundo Nalva, é o preconceito, algo que é aprendido em nossa vivência, tanto em casa quanto em espaços que frequentamos ao longo de toda nossa vida, como clubes e escolas. “Ninguém nasce racista ou querendo discriminar outra pessoa”, explica a executiva. “Mas, desde cedo, aprendemos uma série de estereótipos e crenças sobre os outros, gerando o que chamamos de vieses inconscientes.”
Como o próprio nome indica, os vieses inconscientes são ideias que guardamos em nossa mente, sem nem mesmo percebermos, e que funcionam como uma lente que determina a forma como iremos avaliar e entender diferentes situações e pessoas. Em seu conjunto, eles formam o preconceito — que, por sua vez, leva à discriminação, ou seja, tratar de forma diferente determinados grupos e pessoas por características como raça, orientação sexual e gênero, muitas vezes transgredindo também o direito dessas pessoas. Para esses casos, a lei brasileira prevê dois crimes: a injúria racial e o racismo.
O primeiro diz respeito a uma discriminação contra um indivíduo em um determinado contexto. “É aquela diferenciação pessoal que acontece no mercado, no clube, no jogo de futebol”, afirma Nalva. “Ela parte de um ato racista em detrimento da honra de alguém, com base em alguma característica dela.” Um exemplo são comentários racistas contra um jogador negro em uma partida de futebol — algo que também passou a ser reconhecido pela lei como “racismo recreativo”. Ou seja, supostas “piadas” e “brincadeiras” em um contexto de diversão ou descontração, mas que guardam caráter discriminatório. Nesses casos, a pena é aumentada de um terço até a metade, podendo ser agravada, se cometida ou difundida por meio de redes sociais ou outras publicações.
Já o racismo, para a lei, se trata de qualquer atitude que atinja toda uma coletividade determinada de indivíduos, por causa de suas características, e não apenas uma pessoa. Exemplos disso são atos mais amplos, como recusar ou impedir acesso de um grupo a um estabelecimento comercial, impedir uso de elevadores ou entradas sociais, ou uma empresa negar ou tornar mais difícil o acesso a vagas para pessoas com determinadas características.
Apesar das diferenças entre os dois, desde janeiro deste ano, o crime de injúria racial passou a ser equiparado ao de racismo — ou seja, ele passou a ser inafiançável e imprescritível, com pena de reclusão de 2 a 5 anos. Outra mudança importante é que não há mais como réus acusados de terem cometido injúria racial responderem o processo em liberdade depois de pagar fiança. Para a gerente do Pacto, a medida é um avanço. A penalização foi unificada, o que fortalece a luta pelo combate ao racismo no Brasil. Aponta ainda que a conversa sobre o racismo tem ficado cada vez mais complexa nos últimos anos.
“Hoje temos várias discussões sobre as especificidades do racismo para cada grupo. Temos o racismo contra a mulher negra, contra povos indígenas e uma série de outros grupos sub-representados na nossa sociedade”, pontua. Isso é algo que torna o processo mais desafiador, mas também mais rico para o avanço da sociedade nessas questões.
“Temos um país que foi construído apoiado no racismo estrutural, que faz com que tenha essa hierarquização entre pessoas brancas e pretas. Algo que ficou marcado no fim da escravidão no Brasil”, conta Nalva. Afinal, esse momento não representou um movimento de inclusão da população negra, que continuou apartada e privada de direitos. Não foi feito nenhum investimento para a inclusão daquelas pessoas na sociedade, que continuaram sem vida digna e sem recurso. Essa diferença fica ainda mais evidente quando se comparam investimentos que foram feitos para outros grupos, como imigrantes de outras etnias que vieram se instalar no Brasil, recebendo incentivos como sementes e terras para progredir. “Nós, pessoas negras, só sobrevivemos com nossa força, resiliência e saberes”, enfatiza.
Como resultado, ainda hoje, as pessoas negras são maioria na informalidade, muitas vezes morando em comunidades — que Nalva chama de “pós-quilombos”, e ainda são as maiores vítimas da violência. Prova disso é que um jovem negro morre a cada 23 minutos no Brasil. E, mesmo sendo mais da metade da população brasileira, as pessoas negras continuam a ser minoria no mercado de trabalho: apenas 6% dos executivos nas grandes empresas brasileiras são negros — e o número é ainda menor quando se trata de mulheres negras. Para Nalva, outro sinal do racismo estrutural é o fato de que mesmo as pessoas negras que possuem graduação ainda continuam subocupadas.
“Para romper esse ciclo, é preciso de muito trabalho educativo para coibir o racismo já existente e construir um novo pensar e um novo saber para as próximas gerações”, indica a executiva. Em última análise, reverter essa estrutura seria, para Nalva, uma descolonização do pensamento. “Descolonizar é ver as coisas por outra perspectiva, sem essa hierarquização que nossa cultura faz entre os diferentes grupos”, ressalta. Para a sociedade, é entender que todas as pessoas têm competências, capacidade e bagagem para acessar lugares aos quais nunca chegaram. E no caso das pessoas negras, é se empoderar e buscar se inserir em espaços como o próprio Insper, tendo consciência de que merecem ser escutadas e respeitadas.
É por isso também que se fala em reparação histórica quando se trata de políticas como cotas afirmativas, que tentam reverter, em parte, esse processo histórico de exclusão. Elas são, aliás, uma conquista que veio da luta da militância do movimento negro. “Precisamos garantir que as próximas gerações acessem as universidades e empresas, que possam ter uma vida diferente, com acesso a idiomas, cultura e lazer”, destaca Nalva.
Isso inclui, além da conscientização, ações afirmativas e programas de inclusão que levem em conta as necessidades de cada grupo. “A base e a história de cada um precisam ser considerados”, defende a executiva, acrescentando que as pessoas não saem do mesmo ponto de largada. Por isso, para efetivamente fazer a inclusão, é preciso considerar o contexto de cada grupo. Na visão da executiva, o racismo é um desafio da sociedade toda. Ou seja, todos precisam se envolver na pauta, das pessoas às organizações sociais, instituições privadas e o poder público. “É só com essa transformação que conseguiremos chegar, de fato, em um Brasil sustentável”, conclui. Por isso, a Associação Pacto de Promoção da Equidade Racial criou o Índice ESG Equidade Racial, que possibilita às empresas mensurarem o desequilíbrio racial e criarem estratégias de ações afirmativas inclusivas, bem como investimento social privado em equidade racial.