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O novo estilo de liderança feminina

As renúncias de Jacinda Ardern, na Nova Zelândia, e de Nicola Sturgeon, na Escócia, sinalizam uma nova — e mais saudável —  forma de encarar o poder

As renúncias de Jacinda Ardern (foto), na Nova Zelândia, e de Nicola Sturgeon, na Escócia, sinalizam uma nova — e mais saudável —  forma de encarar o poder

 

David Cohen

 

No dia 19 de janeiro, a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, anunciou que renunciaria ao cargo por não ter mais “gás no tanque” suficiente para o extraordinário desafio da liderança. Menos de um mês depois, em 15 de fevereiro, a primeira-ministra da Escócia, Nicola Sturgeon, seguiu o mesmo caminho, cumprindo praticamente o mesmo roteiro: disse que não tinha mais condições de entregar “toda a carga de energia” que o cargo exige. Uma semana depois, as duas fundadoras e colíderes do partido social-democrata da Irlanda, Catherine Murphy e Róisín Shortall, renunciaram à liderança para “abrir caminho para uma nova geração”.

Três casos de renúncia de líderes políticos — todos de mulheres — significam alguma coisa? Em especial nos casos de Ardern e Sturgeon, que se tornaram nos últimos anos reconhecidas e admiradas por sua habilidade política, há um revés para a percepção da capacidade feminina de liderança?

“Ao contrário”, diz a psicóloga e consultora Maria Aparecida Rhein Schirato, professora de comportamento e gestão no Insper. “Jacinda Ardern, em especial, era uma grande referência e agora se tornou uma inspiração ainda maior. Quantos não a invejavam quando estava no poder? E quantos não a invejam agora, por sair quando não quis mais ficar no cargo?” Sua renúncia, segundo Rhein, representa uma “tremenda provocação ao mundo masculino”.

Estereótipos de gênero são muitas vezes enganosos, mas todos esses casos parecem indicar que passamos a uma nova fase na briga das mulheres por mais espaço político e econômico.

Desde meados do século passado, quando a economia de guerra abriu as portas para a entrada das mulheres em grandes números nas fábricas e escritórios, o debate sobre a igualdade de gêneros no mercado de trabalho tem sido primordialmente tomado pela quantidade: a taxa de ocupação das mulheres na sociedade, a proporção delas em cargos de chefia, a diferença salarial. Agora, porém, começamos a ver indícios de um deslocamento da questão rumo à qualidade.

Não é que já tenhamos atingido o equilíbrio correto entre os gêneros. Ainda há muita disparidade. Os avanços, no entanto, têm sido contínuos. No final de fevereiro, por exemplo, um relatório do grupo FTSE, responsável por índices e análises de companhias abertas no Reino Unido, apontou que 40% dos postos nos conselhos de administração das empresas britânicas já são ocupados por mulheres — uma meta de equilíbrio entre os gêneros atingida com três anos de antecedência. Menos de 10% das 350 maiores empresas do país têm menos de um terço de seus conselhos ocupados por mulheres — um progresso considerável em relação a pouco mais de uma década atrás, quando metade das companhias britânicas não tinha nenhuma representação feminina no conselho.

Na política, alguns países já estão bem adiantados quanto à representação feminina: na Suécia, 46% do Parlamento é ocupado por mulheres; na Dinamarca, são 44%; na França e na Alemanha, entre 35% e 40%; na Nova Zelândia, elas são 48%. Os Estados Unidos ficam bem para trás, com menos de 30% do total, e o Brasil mais ainda, com menos de 18%.

Se a representação feminina tanto nas empresas quanto na política ainda é uma questão não resolvida, pelo menos já existe hoje massa crítica para que se vislumbre uma segunda questão: a natureza da liderança feminina.

 

Jacinda Ardern com o marido e a filha em reunião nas Nações Unidas
Jacinda Ardern com o marido e a filha em reunião nas Nações Unidas

A força da moda

Ardern, assim como a primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marin, e a deputada americana Alexandria Ocasio-Cortez, representa uma nova geração de mulheres no poder.

Como observou a jornalista Vanessa Friedman, em artigo no New York Times, durante décadas as mulheres na política se vestiram discretamente, por receio de serem vistas como mais superficiais e menos sérias que seus colegas homens. “A solução era adotar (ou adaptar) o uniforme masculino”, escreveu, e “usar todo dia praticamente o mesmo vestuário”. Como afirma Rhein, do Insper, “a grande questão da mulher é que, para poder conviver com os homens, especialmente no espaço do poder, ela acaba acreditando que precisa ser como eles”.

Ardern é o melhor exemplo de como fazer o oposto. “Ela não virou macha”, opina Rhein. Ao contrário, usou a moda como um poderoso recado. Para começar, vestiu quase exclusivamente roupas de designers neozelandeses, de uma forma a reforçar o recado político. Assim, no jantar da Comunidade Britânica no palácio de Buckingham, em 2018, vestiu uma tradicional capa de penas do povo tradicional maori. Em abril passado, quando a pandemia da covid-19 arrefeceu e o país abriu as fronteiras para a Austrália, ela foi ao aeroporto receber os turistas com um vestido verde, porque verde e dourado são as cores do país vizinho.

Mais impactante foi sua escolha de vestuário em maio de 2019, após um terrorista australiano ter matado 51 pessoas e ferido mais de 40 em um ataque a duas mesquitas na cidade de Christechurch, no sul do país. Ardern vestiu um lenço preto na cabeça, ao estilo muçulmano, ao abraçar viúvas das vítimas para, mais do que comiseração, frisar a força e o pertencimento da comunidade.

À imagem ela aliou a atitude. Uma semana depois do ataque, seu governo avançou e aprovou proposta de banimento de armas semiautomáticas de estilo militar no país.

Em março de 2020, quando começava a pandemia da covid, Ardern se dirigiu à nação em uma sessão ao vivo pelo Facebook, vestindo uma suéter confortável, deixando claro ao público que havia acabado de colocar sua filhinha na cama. A imagem maternal, amigável, compreensiva foi extremamente eficaz para implantar um dos mais rigorosos sistemas de lockdown do mundo, com adesão popular, que levou o país a ter um dos mais baixos índices de morte por covid nos primeiros meses da pandemia.

Esse estilo “gente como a gente”, que abraçava em vez de afastar características tidas como femininas (compreensão, carinho, humildade, senso de dever), se tornou rapidamente um contraponto internacional a figuras políticas que identificavam com características de “macho alfa”, como o então presidente americano Donald Trump e o brasileiro Jair Bolsonaro. Ardern virou um símbolo para progressistas no mundo inteiro.

Até o modo de se referir a ela denota a emergência de um outro tipo de liderança. A ex-primeira-ministra alemã Angela Merkel, uma das políticas mais competentes do mundo, era conhecida por Merkel. Ardern, na Nova Zelândia, não era chamada de Ardern. Nem mesmo de Jacinda. Era “Cindy”, como se fosse alguém que os cidadãos quisessem convidar para sua casa.

 

Os obstáculos da realidade

No terreno do simbolismo, Ardern era praticamente impecável. Nas questões práticas da realidade, nem sempre. Ardern subiu ao poder sem atingir a maioria do Parlamento, como é comum no país, e teve de fazer uma coalizão de governo. O combate à covid e a “jacindamania” deram ao seu Partido Trabalhista, em 2020, uma vitória acachapante, que lhe permitiu governar sozinho.

Mas muitos cidadãos começaram a considerar que “sua retórica quase nunca era acompanhada de substância”, nas palavras de Josie Pagani, uma comentarista política da Nova Zelândia. Algumas das ações de seu governo combinavam pouco com a agenda progressiva que lhe imputavam (com a qual ela própria raramente se identificava): para combater a alta de preços das casas, por exemplo, o governo proibiu estrangeiros não residentes de comprar vários tipos de imóveis.

Em seu mandato, as questões de fundo do país tiveram pouca melhora. a proporção de crianças em condições de pobreza — sua principal motivação para entrar na política, segundo ela — caiu, mas muito pouco, de 12,7% em 2017 para 11% em 2021. Um plano de construir mais casas foi adiado, depois suspenso, depois esquecido. A inflação subiu (como no mundo quase todo). A criminalidade não caiu. A desigualdade permanece alta, assim como a taxa de suicídios e problemas mentais.

Na Escócia, a situação era parecida. Extremamente popular e reconhecida como uma política competente com grande habilidade de comunicação, desde 2014 Sturgeon liderava o Partido Nacional Escocês, cuja principal bandeira é a independência em relação ao Reino Unido. Nas últimas semanas, ela teve algumas derrotas, como a decisão do governo britânico de que a Escócia não podia organizar um novo referendo sobre a independência (o primeiro, em 2014, deu a vitória à permanência escocesa) e a reversão de uma lei que tornava mais fácil a mudança de sexo. Este último baque atingiu até sua base de apoio, porque muitos escoceses favoráveis à independência são contrários às medidas de reconhecimento de mudança de gênero.

Em ambos os casos, portanto, havia desafios reais à continuidade no papel de líder. Mas nenhuma delas estava sob pressão iminente para renunciar e tanto Ardern como Sturgeon já haviam passado por dificuldades muito maiores.

Por que, então, saíram?

A resposta está intimamente ligada às novas características de liderança que elas trazem para o jogo.

 

Nicola Sturgeon, ex-primeira-ministra da Escócia, em 2019
Nicola Sturgeon (de vermelho) com apoiadores durante campanha eleitoral em 2019

Estar é melhor que ser

“Eu sei que vai haver muita discussão sobre qual seria a ‘razão verdadeira’ para a minha saída”, disse Ardern em seu comunicado de renúncia. “O único ângulo interessante que vocês vão encontrar é que, depois de seis anos de grandes desafios, eu sou humana. Políticos são humanos. Nós damos tudo o que podemos, pelo tempo que podemos, e aí chega a hora. E para mim chegou a hora.”

Por trás desse discurso está uma noção crucial: de que o poder não é a prioridade. “Isso é uma lição principalmente para o mundo masculino, que acha que o poder deve ser possuído”, afirma Rhein. “Ela mostrou que o poder deve ser representado. Ela ocupa aquele espaço político, mas ela não é o poder, não depende dele para existir.”

Durante a maior parte de sua carreira, Ardern nem sequer ambicionava o primeiro posto do país. Apenas um mês antes de ser escolhida para a liderança do partido, a revista feminina Next publicou uma entrevista em que ela dizia não ter interesse no posto. Mas os trabalhistas estavam em crise e, ante a insistência dos colegas, ela aceitou a liderança a dois meses das eleições gerais.

Esta noção de que uma pessoa pode estar no poder, mas não ser o poder, é possivelmente o cerne de uma nova visão de liderança. As consequências são variadas e estão em geral em linha com alguns valores modernos de administração: a sustentabilidade, o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, o rodízio de lideranças, os ciclos de realizações.

“O trem descarrila quando a pessoa se identifica com o poder”, diz Rhein. Quando a posição se torna mais importante que a missão. “Quanta gente não fica presa a uma posição e para aguentar o tranco recorre a remédios, drogas?”

De acordo com Rhein, esse equívoco está mais ligado à psicologia masculina. “O poder é fálico”, diz. “Homem com poder é mais homem; mulher com poder não é mais mulher.” A biologia é parte disso. “Mulher aprende desde a mocidade que tudo tem começo, meio e fim. Ela sente a menstruação, sabe a hora em que tem de parar de amamentar. Aprende a lidar melhor com o provisório, com o processo, com a vida.”

Ardern — que teve uma filha pouco depois de assumir e a levou a uma reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas — deu amplas demonstrações de como unir a vida pessoal à vida profissional. Não só como um cálculo de quanto ceder em cada uma, mas também como a contribuição que um lado pode dar ao outro.

Até que chegou a hora de trilhar outro caminho. Isso não é uma postura saudável só para o indivíduo, é melhor para o próprio exercício do poder. “A ideia é: eu não vim para encerrar a história, eu vim para dar a minha contribuição”, diz Rhein.

“Eu costumo trabalhar com empresas familiares e digo sempre: fundador bom mesmo é aquele que deixa a empresa redonda, como a idealizou, e sai, se afasta. Vai fundar outra.”

 

A hora de sair

Ardern se tornou um símbolo de nova liderança no mundo inteiro. Para as mulheres, pois sua ascensão profissional, como disse o analista político Bryce Edwards, da Universidade de Victoria, ao jornal New Zealand Herald, “mostrou que seu gênero ou o fato de virar mãe enquanto estava no cargo não a seguraram em nada”.

Para o mundo em geral, porque funcionou como contraponto a líderes de tendências mais autoritárias. “Tanto ela quanto Sturgeon são pioneiras, mostrando como integridade, compaixão e transparência são traços não apenas possíveis, mas desejáveis em nossos líderes políticos”, escreveu Rainbow Murray, professor de política da Queen Mary University, de Londres, para o site The Conversation. “Enquanto ambas demonstraram a ambição e a agressividade necessárias para vencer batalhas políticas, nenhuma delas é definida por essas qualidades.”

Sua saída pode, é claro, ser encarada como um retrocesso. No caso de Sturgeon, um revés para sua principal causa, da independência; no caso de Ardern, um retorno da Nova Zelândia a um cenário de menor distinção entre os grandes partidos. Mas é, também, uma contribuição importante para a construção de um estilo de liderança mais humano, eficaz e sustentável.

“No primeiro momento, quando soube que Ardern tinha renunciado, eu lamentei”, diz Rhein. “Mas em seguida percebi o alcance do recado e da reflexão sobre o quanto a gente perde enquanto está ganhando.”

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