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Contribuições para a proposta do governo de novo arcabouço fiscal

O pesquisador Marcos Mendes fala sobre o projeto de lei da Câmara que pretende pautar o debate em torno da regra que vai substituir o teto de gastos

O pesquisador Marcos Mendes fala sobre o projeto de lei da Câmara que pretende pautar o debate em torno da regra que vai substituir o teto de gastos

 

A pedido do deputado federal Pedro Paulo (PSD-RJ), o economista Marcos Mendes, pesquisador e professor do Insper, analisou o projeto de lei complementar que o parlamentar protocolou no Congresso Nacional no dia 16 de março acerca do novo arcabouço fiscal que vai substituir a atual regra do teto de gastos. Mendes examinou em detalhes a minuta do projeto preparada pela equipe técnica do deputado e sugeriu aperfeiçoamentos.

“A proposta será uma importante contribuição ao arcabouço fiscal a ser apresentado pelo ministro da Fazenda, caso a regra proposta pelo Executivo venha muito frouxa. O projeto do deputado Pedro Paulo ainda tem alguns pontos de melhoria, mas é um bom início de discussão”, disse Mendes, referindo-se à proposta que o ministro Fernando Haddad deverá anunciar nos próximos dias. O governo tem até 31 de agosto para apresentar sua proposta, conforme exige uma emenda constitucional promulgada no ano passado. Mas Haddad deverá antecipar a divulgação da nova regra diante da incerteza da sociedade atual quanto à responsabilidade fiscal do governo.

Servidor licenciado da Consultoria Legislativa do Senado, Mendes foi assessor especial do Ministério da Fazenda de 2016 a 2018, quando ajudou a formatar a emenda constitucional do teto de gastos e a reforma da Previdência. Na entrevista a seguir, o pesquisador fala sobre suas sugestões incluídas na proposta alternativa do deputado Pedro Paulo.

 

Os detalhes da proposta do governo sobre o novo arcabouço fiscal têm sido guardados a sete chaves. Ainda assim, à luz do que se tem comentado nos noticiários, dá para dizer em que aspectos o projeto do deputado Pedro Paulo se diferencia daquilo que o governo deve divulgar nos próximos dias?

Há uma preocupação de que a proposta do governo não venha a ser algo efetivo. Por quê? Porque arcabouço fiscal é basicamente uma regra para controlar a despesa, e todo o discurso do governo tem ido em direção oposta. O presidente da República fala o tempo todo que é preciso expandir a despesa, que isso faz a economia crescer, que não se pode chamar de gasto, mas investimento. A mentalidade do governo é que mais gasto não é um problema, é a solução. Mas quando um arcabouço fiscal aumenta a dívida pública, gera também o aumento dos juros e uma série de consequências negativas para a economia. Existe então uma percepção de que virá do governo uma proposta frágil, incapaz de convencer a sociedade de que haverá efetivo controle de despesas ao longo do tempo.

A proposta do deputado Pedro Paulo vem no sentido de colocar parâmetros sobre a mesa para estabelecer uma comparação e pautar o debate. Dizer o seguinte: “Olha, isto aqui é o que se espera de uma regra consistente que vai cumprir suas finalidades”. Se vier do governo alguma coisa muito diferente ou fora do padrão, estará estabelecido o debate.

 

E qual é a essência da proposta do deputado Pedro Paulo?

A proposta olha para o nível de endividamento do governo. Se o endividamento estiver muito alto, o que significa uma dívida líquida acima de 60% do PIB, a despesa só poderá crescer de acordo com a inflação, o que é basicamente a regra do teto de gastos. Se a dívida líquida estiver entre 50% e 60% do PIB, ela pode crescer pela inflação mais 1% real acima da inflação, desde que o governo tenha cumprido a meta de resultado primário do ano anterior. Ou seja, se já tiver demonstrado consistência fiscal no ano anterior, o governo poderá aumentar a despesa em 1% do PIB acima da inflação. Se não tiver cumprido, só pode crescer 0,5%. E se a dívida estiver abaixo de 50% do PIB, aí a despesa poderá crescer até 1,5% acima da inflação. A proposta, portanto, flexibiliza a atual regra do teto de gastos. Devo dizer que não fiz simulações sobre o poder dessa regra de estabilizar a dívida, mas esses parâmetros são ajustáveis conforme a discussão for se desenrolando.

Há também no projeto uma ideia de fazer um planejamento de médio prazo. O Plano Plurianual (PPA) e a Lei de Diretrizes Orçamentares (LDO) passariam a trazer anexos fiscais mostrando a trajetória esperada da dívida pública para os quatro anos seguintes. O PPA faria essa projeção a cada ano e a LDO verificaria o cumprimento ou não da projeção, ajustando as expectativas com relação à trajetória da dívida, de modo a dar bastante transparência ao processo.

 

Que tipo de cometários você pode fazer para aprimorar o projeto de lei?

A versão original do projeto, em vez de utilizar o crescimento da despesa como a inflação mais um crescimento real, previa um percentual da variação do PIB. Isso não é muito bom, porque gera o que os economistas chamam de efeito pró-cíclico. Significa o seguinte: quando o PIB está crescendo muito, a despesa também vai poder crescer mais. Aí o governo dá estímulo para a economia quando ela já está crescendo bastante, o que pode causar um superaquecimento. E quando a economia está caindo, é preciso que o governo gaste mais para ajudar o país a sair da recessão, mas, com a queda do PIB, haveria um limite mais restrito de despesa. Essa não era uma regra que valesse a pena, e o deputado e sua assessoria aceitaram alterar.

Outra sugestão que dei foi que, na versão original, havia uma série de exceções de despesas que ficariam fora do teto de gastos, seguindo o que foi feito nos últimos anos. Por exemplo, houve uma PEC [proposta de emenda constitucional] que tirou do teto despesas com o piso salarial da enfermagem. Também estava fora do teto o Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica] e o aumento de capital de empresas estatais. Minha sugestão foi colocar tudo isso para dentro do teto, tendo em vista que agora já partimos de um nível mais alto de limite. Depois da chamada PEC da Transição, que aumentou em 2% do PIB o limite de despesas, esse será o novo limite adotado pelo projeto. Como já há um nível de despesa mais alto, não faz sentido ficar excepcionalizando um monte de coisas. É melhor colocar tudo para dentro do limite, porque dessa forma a regra fica mais completa.

Outra sugestão que apresentei, mas que não foi aceita, era tirar a referência ao Plano Plurianual, que é uma lei muito desmoralizada. Ninguém segue o PPA. É uma lei burocrática e com um problema: cada governo só começa a apresentar seu Plano Plurianual a partir do segundo ano de gestão. Ou seja, todo governo toca o primeiro ano sob a regra do Plano Plurianual elaborado pelo governo anterior. Do ponto de vista de política fiscal, isso é muito ruim, porque o governo que se inicia já tem que dizer qual é a sua diretriz fiscal, o crescimento esperado da dívida, o crescimento da despesa, o resultado primário. Minha sugestão era que se fizesse uma legislação em separado para apresentar essas diretrizes. Mas minha proposta não foi aceita.

Uma coisa que não gosto no projeto é que ele estabelece penalidades, como penas de prisão e multas, para autoridades que não cumprirem os limites estabelecidos. Isso é algo que já se mostrou ineficiente no Brasil. Quanto você estabelece uma pena, as pessoas começam a fazer contabilidade criativa para o gestor não ser punido. É melhor ter regras de ajustamento automático: por exemplo, se não cumprir o limite de despesas, não pode aumentar as despesas com isso ou com aquilo. Esses mecanismos estão previstos, corretamente, mas o projeto prevê algumas punições que me parecem exorbitantes e que enfraquecem a legislação.

Por fim, havia no projeto de lei uma proposta de fazer um fundo de recursos com a privatização. Se o governo vender uma estatal, os recursos vão para esse fundo. Parte disso seria despesa social e parte iria para o abatimento da dívida pública. Argumentei que não faz sentido ter fundo num país com orçamento deficitário. Imagine uma família que gasta mais do que recebe com salários e, mesmo assim, coloca uma parte num fundo para determinadas despesas. Não faz sentido. Isso eles tiraram do projeto.

 

Você escreveu em um artigo que uma regra fiscal deve ser clara e simples para ser fácil de ser monitorada pela imprensa e pela opinião pública. A proposta do deputado atende a esse requisito ou é complexa demais?

Acho que ela atende ao requisito. Existe um dilema entre flexibilidade e simplicidade. Quanto mais flexível for a regra, menos simples ela é. A regra do teto de gastos é bastante simples: os gastos crescem pela inflação. Em caso de calamidade pública, pode-se gastar fora do teto. Basicamente, essa é a regra. Na proposta do deputado, se a dívida for tanto, pode-se gastar X. Se a dívida for mais baixa, pode-se gastar X mais um percentual. É um pouco mais complexa, mas acho que se encontrou um bom equilíbrio entre complexidade e simplicidade.

 

Você foi um dos “pais” da atual regra de teto de gastos. Acredita que já era tempo de ajustar alguma coisa na regra ou não?

Há muita gente que fala que o teto de gastos não funcionou. Não é bem assim. Dias atrás, o ex-ministro Henrique Meirelles, em uma entrevista, fez uma comparação curiosa. Você vai ao médico e ele prescreve um remédio. Você não toma o medicamento e diz: “O remédio não funcionou”. Não faz sentido, não é? O que acontece com frequência na sociedade brasileira é que, quando se está numa crise muito forte, a classe política se assusta e aceita medidas de ajustamento. Mas, assim que a situação começa a melhorar um pouco, já surgem as pressões para gastar mais e descumprir a regra. O que aconteceu foi que houve uma coalizão política, unindo da extrema direita à extrema esquerda, para estourar a regra, fazer sucessivas PECs, aumentando despesas, não necessariamente com finalidades nobres. Sempre se anunciava que o objetivo era fazer política social, mas aí incluíam também um subsídio para taxista, subsídio para caminhoneiro, subsídio para usineiros… O que houve foi uma deterioração da sustentação política para uma regra fiscal mais estável, o que acabou minando a regra do teto de gastos.

 

Hoje observamos uma dificuldade dentro do governo para chegar a um consenso sobre a nova regra fiscal. Se há divisões dentro do próprio governo, qual é a chance de a proposta que o ministro Fernando Haddad vai apresentar nos próximos dias passar no Congresso?

Essa é uma grande pergunta. Primeiro, temos que considerar que é uma proposta de lei complementar, que exige um quórum qualificado e que precisa tramitar nas duas casas. Isso deve tomar algum tempo e exigir algum debate. Uma possibilidade que vejo, e talvez seja até uma estratégia do presidente da República, é apresentar alguma coisa frouxa. A sociedade, o mercado, a imprensa, a opinião qualificada rejeitariam a proposta do governo, e aí seria construída dentro do Parlamento uma outra proposta para substituir essa do governo. Para o presidente Lula isso seria bom, porque ele poderia alegar que tentou fazer uma coisa mais frouxa, mas o Congresso não deixou. E é nesse ponto que a proposta do deputado Pedro Paulo se encaixa, porque já fica ali um parâmetro de uma regra para substituir caso a regra do governo seja rejeitada por ser muito frágil.

Vale lembrar também que a PEC da Transição só autorizou o aumento do teto de gastos para 2023. Caso não seja aprovado um novo arcabouço fiscal, será necessário apresentar um orçamento que vai reduzir drasticamente a despesa em relação ao que está sendo executado neste ano. Isso seria politicamente impossível. Então, a tendência é que, caso esse projeto de novo arcabouço fiscal não avance, se vote uma nova PEC ao longo do ano para novamente aumentar o teto para 2024. Isso seria algo problemático, porque o governo teria que negociar com o Congresso, que cobraria um preço alto.

E tem mais um detalhe: se esse projeto não for aprovado, o governo terá que enviar ao Congresso, já em abril, uma proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias usando o teto antigo, sem o aumento da PEC da Transição. Seria então uma LDO que criaria muito ruído, pois a despesa discricionária viria praticamente zerada, uma vez que seria preciso reduzir a despesa em 145 bilhões de reais. Seria então uma lei fake, que não iria orientar de verdade o orçamento, porque o governo teria que dar um jeito, seja por meio de uma PEC, seja por meio da aprovação do novo arcabouço, e tudo isso geraria muito ruído.

 

Você mencionou que pressões de diferentes grupos acabam resultando em mais gastos públicos. Como é possível sair dessa armadilha?

Em toda democracia existe isso. Nenhum regime político é perfeito. A democracia se mostrou o menos ruim de todos os regimes políticos ao longo da história, mas democracias estão sujeitas a essa organização de grupos de pressão. O que precisamos é de transparência e regras claras para coibir ou limitar o poder de fogo desses grupos de pressão. E um limite de gastos e regras orçamentárias claras, transparentes e consistentes ajudam nesse sentido, porque, quando se coloca um limite para a despesa total, você explicita: só vamos poder gastar mais com subsídio para a indústria XYZ se gastarmos menos com saúde ou com educação. Aí a sociedade faz a sua escolha. Infelizmente, temos feito escolhas cruéis nos últimos tempos, mesmo na vigência do teto de gastos. Eu jamais imaginaria que, na vigência do teto de gastos, o Congresso teria a coragem de cortar despesas em áreas sociais para aumentar a emenda parlamentar. Mas foi o que fizeram. A regra fiscal não é um instrumento à prova de pressão de grupos e interesses específicos, mas, pelo menos, explicita o problema e traz o tema para o debate público.

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