A trajetória da professora Vanessa Rahal Canado, que decidiu estudar Direito para ter um diploma universitário, mas acabou sendo cativada pela área tributária
Nascida em São Paulo, a professora Vanessa Rahal Canado foi coordenadora da Pós-Graduação e dos cursos de Educação Executiva em Direito do Insper até setembro deste ano. Atualmente é professora na graduação em Direito e coordena também o Núcleo de Pesquisas em Tributação, cujo objetivo é produzir conhecimento interdisciplinar na área. É uma das formuladoras da proposta de reforma tributária aprovada nesta semana pelo Senado (PEC 45/2019) e que voltou para a Câmara por ter sofrido modificações — quando entrar em vigor, vai reduzir o número de impostos sobre o consumo e simplificar o caótico sistema tributário brasileiro.
Vanessa ingressou no mundo jurídico de maneira peculiar. No início, seu interesse em cursar Direito não foi motivado por uma paixão pela área, mas pela vontade de concluir logo um curso de graduação. Na época, algumas de suas amigas optaram por cursar Direito — e Vanessa decidiu seguir o mesmo caminho.
Ela entrou na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, onde fez a graduação de 1999 a 2003. Na sequência, emendou o mestrado em Direito na PUC de São Paulo (2005 a 2008) e o doutorado na mesma instituição (2010 a 2013). A essa altura, já havia mergulhado naquilo que se tornaria sua grande paixão: Direito Tributário.
Na entrevista a seguir, a professora relata como foi essa trajetória.
Em que momento decidiu pela carreira de Direito?
Eu cresci em uma família que valorizava profissões tradicionais, como advogado, médico e engenheiro. Fui educada em uma escola de ensino tradicional na Mooca, um externato administrado por freiras. Quando pensei em cursar Direito, minha motivação inicial era simplesmente concluir logo a fase acadêmica obrigatória e depois decidir o rumo que tomaria. Algumas das minhas amigas optaram por Direito, então resolvi seguir o mesmo caminho.
Sua intenção era trabalhar como advogada ou na academia?
Nunca consegui pensar sequer no que faria no dia seguinte, mas, já a partir do segundo ano, comecei a me dedicar mais ao estágio do que à faculdade. No último ano, eu trabalhava em um escritório de advocacia e estava em dúvida se continuaria como advogada ou se exploraria outras opções. Foi então que, no início de 2003, no meu último ano na faculdade, tive a sorte de ser apresentada ao tributarista Eurico de Santi, que na época liderava o projeto de criação do curso de Direito na Fundação Getulio Vargas e estava à frente de um grupo de pesquisas na área tributária. Ele me convidou para ser pesquisadora júnior na FGV. Isso marcou o início do meu envolvimento com a academia e com o Direito Tributário aplicado. Quando terminei a faculdade, decidi continuar trabalhando nesse projeto da FGV, onde ajudei a estabelecer a Escola de Direito, a implementar cursos de pós-graduação e de educação executiva.
Mas você trabalhou também em grandes escritórios de advocacia, certo?
Em 2007, saí da exclusividade da FGV para atuar por um breve período como advogada, para conhecer melhor a vida cotidiana do profissional do direito e explorar outras possibilidades. Trabalhei no escritório Mattos Filho e, posteriormente, no Barbosa Müssnich Aragão. Mas acabei retornando à FGV e passei a colaborar com o professor Eurico, produzindo pareceres. Nesse período, também prestava serviços de advogada para vários escritórios como consultora, devido à minha experiência na área tributária. Em 2016, o professor Eurico decidiu fundar o Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), um think tank que contava com a participação dele, de Bernard Appy [hoje secretário extraordinário da Reforma Tributária], Nelson Machado [ex-ministro da Previdência] e Isaias Coelho [ex-chefe da Divisão de Política Tributária do FMI]. Juntei-me a eles mais tarde, e foi nesse ambiente que desenvolvemos o primeiro esboço do projeto de reforma tributária que agora tramita no Senado, a PEC 45.
Quando começou a se interessar por Direito Tributário? Era um tema que a atraiu desde os tempos da faculdade?
Foi em 2002, no quarto ano na faculdade, que tive meu primeiro contato com o Direito Tributário. Desde o início, fui cativada por essa disciplina. Percebi que sua dogmática era mais estruturada, o que me permitia compreender o Direito de uma forma mais organizada. Havia alguma ciência de verdade ali… Meu interesse pelo tema foi crescendo, o que me levou posteriormente a explorar a área tributária tanto nos escritórios de advocacia quanto na academia.
Você está no Insper desde 2019. Como surgiu a oportunidade de trabalhar na escola?
Durante a participação em um grupo de estudos na Câmara dos Deputados, focado na discussão da reforma tributária da renda, eu conheci o Marcos Lisboa [presidente do Insper de 2015 até o início de 2023]. A partir desse encontro, ele me convidou para visitar o Insper e conhecer a escola e outras pessoas. Na época, a graduação de Direito do Insper ainda não tinha começado. A convite do Marcos, decidi então fazer a transição da FGV para o Insper, direcionando meu foco para a pesquisa em política tributária. Também assumi a responsabilidade de reformar os programas de Pós-Graduação e Educação Executiva em Direito, uma atividade com a qual eu já tinha tido bastante experiência na FGV. Esse novo ambiente me proporcionou a oportunidade de explorar uma perspectiva mais interdisciplinar envolvendo direito, economia e contabilidade, algo que se alinhava melhor com a filosofia do Insper.
E como você foi parar no governo?
Por meio do Marcos Lisboa, acabei sendo indicada para trabalhar com [o ministro da Economia] Paulo Guedes, em 2019, no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro. Assim, iniciei minha trajetória no governo, colaborando com Guedes até 2021. Após sair do governo, optei por não retornar a um escritório de advocacia, concentrando meus esforços em consultoria na área de tax policy. Atualmente, minha principal atividade está na área acadêmica, com ênfase em ações relacionadas à política tributária.
A PEC 45, em tramitação no Senado, nasceu no Centro de Cidadania Fiscal, com sua contribuição.
Sim. Iniciamos os estudos e, após uma série de análises e pesquisas realizadas ao longo de 2017 e 2018, elaboramos a PEC 45. Apresentamos o projeto na Câmara dos Deputados a pedido do Rodrigo Maia, presidente à época, mas ele ficou em “suspenso” durante a gestão de Paulo Guedes. Mesmo eu estando no governo, não consegui convencê-los de que era um tema prioritário naquele momento. Com a ida de Bernard Appy para o governo, já na nova gestão de Lula, o projeto que havíamos iniciado em 2018 foi retomado e teve continuidade.
Qual o principal mérito da proposta que está prestes a ser aprovada no Congresso? É a simplificação do sistema tributário?
Do ponto de vista da maioria dos brasileiros, a simplificação é, de fato, o maior benefício da reforma tributária. Isso significa que as pessoas terão uma compreensão mais clara dos tributos que pagam e quanto estão pagando. As empresas gastarão menos tempo lidando com questões tributárias, terão mais segurança jurídica e gastarão menos dinheiro nesse processo. O governo poderá arrecadar de forma mais eficiente. Em resumo, todos se beneficiarão da simplicidade.
No âmbito econômico, a proposta lida com um grande entrave ao desenvolvimento dos países — é o que chamamos de “distorção alocativa”. Isso ocorre quando as empresas tomam decisões com base em considerações tributárias, em vez de fatores de mercado. Por exemplo, uma empresa pode decidir instalar uma fábrica em determinado local não por causa da disponibilidade de tecnologia, mas porque ali a carga tributária é mais baixa. Essas decisões motivadas por razões tributárias prejudicam a produtividade e afetam o crescimento do país. A reforma pretende eliminar essas distorções alocativas, o que é fundamental para o aumento da eficiência e o crescimento da economia.
Costuma-se dizer que o Brasil tem muitos advogados por causa da complexidade das leis. Como a simplificação do sistema tributário vai afetar a demanda por profissionais especializados nessa área?
O Núcleo de Pesquisas em Tributação, que coordeno no Insper, analisou os balanços das 751 empresas abertas e catalogou os problemas enfrentados por elas atualmente em relação aos cinco tributos indiretos que serão unidos no IVA (imposto sobre o valor agregado). Concluímos que a reforma tributária deve eliminar ou reduzir em até 95% o número de questões que atualmente resultam em contencioso tributário. Acredito que o trabalho para o advogado será cada vez mais intelectual, envolvendo aspectos de economia e política tributária, em vez de lidar com a burocracia do dia a dia das empresas. Haverá trabalhos que exigirão uma qualificação diferente dos advogados, a exemplo do que a economia digital está provocando ao requalificar profissionais para um número menor de posições, porém muito mais especializadas.
Com tudo isso, a área tributária continuará sendo um campo atraente para estudantes de Direito?
Para quem atualmente estuda Direito e considera a possibilidade de se especializar em Direito Tributário, posso afirmar que há uma série de oportunidades. A razão para isso é que, no mundo todo, o Imposto de Renda é um tributo importante e complexo. No Brasil, temos relativamente poucos advogados que se especializam nesse tributo. Além disso, os estudantes que estão se formando agora têm a sorte de poder atuar em um sistema mais racional com o IVA e, assim, se aprofundar em áreas muito mais sofisticadas do ponto de vista intelectual, alinhadas com o que existe em outros países. Minha percepção, portanto, é que a especialização em Direito Tributário continuará a oferecer um campo promissor para os futuros advogados. Existe ainda muito espaço para a evolução dessa área no Brasil.
Conheça um pouco mais sobre as atividades de Vanessa Rahal Canado fora da sala de aula
Vanessa Rahal Canado diz não ter um hobby — não no sentido tradicional de atividade praticada nos momentos de lazer. “Eu simplesmente adoro trabalhar. Meu trabalho é mais do que uma atividade profissional: é um hobby para mim”, afirma. “Tenho meus filmes e livros preferidos, mas, em cerca de 80% do tempo, estou imersa em assuntos relacionados à tributação.” A professora diz que gosta também de estudar. “Sou um pouco nerd e adoro aprender. Pode ser qualquer assunto — desde matemática do ensino fundamental até tributação de renda nos Estados Unidos.”
A professora Vanessa tem um filho, Antonio, de 8 anos. Mesmo com a correria do dia a dia, ela diz que consegue conciliar as atividades profissionais com a rotina de mãe, como levar o filho à escola. “Eu faço isso com prazer. Hoje em dia, uma das principais vantagens de eu trabalhar por conta própria e lecionar na academia em horários fixos é que isso me permite participar ativamente da rotina do Antonio, o que é muito importante para mim. Eu sinto uma grande responsabilidade pelo tipo de pessoa que meu filho vai se tornar.”
Embora a maior parte de sua leitura tenha a ver com assuntos profissionais, a professora Vanessa, sempre que arruma tempo, gosta de ler biografias. Ela já leu diversos livros sobre a estilista francesa Coco Chanel (1883-1971), fundadora da marca Chanel. “Eu sou fascinada pela biografia dela. É uma história incrível. Ela era uma mulher solteira que desafiou as normas da época, recusando-se a depender de maridos, como era tradicional. Chanel revolucionou não só a moda, mas a forma como as mulheres se comportam em sociedade. Criou roupas que davam mais liberdade às mulheres, a bolsa que podia ser carregada no ombro, permitindo que elas falassem usando as mãos, algo muito simbólico. Admiro a conexão entre moda e liberdade que a história de Chanel representa.”
A professora se lembra de outras biografias marcantes, como as dos empresários Steve Jobs e Bill Gates. “Histórias de sucesso, em geral, me atraem”, diz. Ela destaca também as biografias escritas por Stefan Zweig (1881-1942), romancista austríaco de origem judaica que, durante a Segunda Guerra, fugiu da perseguição nazista na Europa e se instalou em Petrópolis (RJ), onde viveu seus últimos dias. “Zweig escreveu muitas biografias interessantes. A última que li dele foi sobre Freud e achei muito boa.”
A professora citou o empresário e filantropo norte-americano Bill Gates, um dos fundadores da Microsoft, como uma personalidade pública digna de admiração. “Lembro-me de uma série que assisti na Netflix. Em certo momento, o jornalista que entrevistava Bill Gates comentou que algumas pessoas o criticavam por não o verem como um verdadeiro altruísta, alguém que faz o bem sem esperar nada em troca. Gates lamentou, mas respondeu que, na verdade, não age por altruísmo. Sua motivação é o desejo de tornar o mundo mais eficiente. Essa declaração me marcou, porque muitos veem Gates como um benfeitor, quando na verdade ele está buscando extrair o melhor de tudo e de todos. Embora seu trabalho beneficie muitas pessoas, é interessante perceber que a realização pessoal não se limita à questão do altruísmo.”
Ao ser questionada se teria uma personalidade pública no Brasil por quem tenha especial admiração, Vanessa Canado citou o marido, Rodrigo Maia, ex-presidente da Câmara dos Deputados, e o economista Marcos Lisboa, ex-presidente do Insper. “Nos últimos anos, tenho estado muito envolvida em política e economia. Por isso, se eu tiver que mencionar um político — e admito que minha opinião pode não ser totalmente imparcial —, eu diria que o melhor político que conheci é Rodrigo Maia. No campo da economia, o principal nome para mim é Marcos Lisboa. São as duas pessoas que mais admiro em minha convivência diária”, afirma.
A professora destacou também uma figura pública fora de seu círculo de relacionamento. “Se for citar alguém com quem não tive a oportunidade de conviver, eu mencionaria o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Eu recentemente assisti a um filme sobre sua vida [O Presidente Improvável, documentário dirigido por Belisario Franca], que apenas reforçou minha admiração por ele como uma figura importante para o país.”
“Talvez ser presidente da República? Eu juro que já pensei nisso algumas vezes”, diz Vanessa Canado, rindo. “Claro que é algo não muito palpável, mas acho que já alcancei muitos dos meus sonhos palpáveis. Não tenho grandes desejos materiais. Em termos de sonhos realizáveis, eu desejaria ter um escritório maior, uma biblioteca maior. Só isso já me faria bastante feliz.”
A professora diz que, se convidada, não hesitaria em voltar ao governo. Segundo ela, o tempo que passou no Ministério da Economia foi uma experiência rica. “Foi um período intenso, estressante, em que você se distancia dos amigos, da família, de tudo, porque precisa ficar com a cabeça focada no dia a dia”, conta. “Ainda assim, sabemos que o poder de decisão das políticas públicas está muito nas mãos do governo. Então, essa possibilidade de colaborar e efetivamente intervir no desenho de programas, de colocar em prática o que você estudou e acumulou de experiência, é algo muito gratificante.”