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Na mira dos reguladores: uma sanção contra as criptomoedas

Com o banimento do Tornado Cash, um serviço que garantia anonimato a investidores ao embaralhar transações em blockchain, os Estados Unidos elevam a tensão no mercado

Com o banimento do Tornado Cash, um serviço que garantia anonimato a investidores ao embaralhar transações em blockchain, os Estados Unidos elevam a tensão no mercado

David Cohen

É possível parar o vento? Provavelmente não, mas o governo americano decidiu estancar pelo menos uma ventania em particular, que atinge o polêmico e cada vez mais popular mercado das criptomoedas. Na segunda semana de agosto, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos baniu o serviço Tornado Cash, um mixer de transações da plataforma Ethereum.

A acusação é a mais usual no mercado de criptos: facilitar a lavagem de dinheiro. Neste caso em particular, de acordo com as autoridades, foram mais de 7 bilhões de dólares oriundos de transações ilegais desde a criação do serviço, em 2019.

Mas a sanção marca uma evolução na postura do governo americano, segundo Ari Redbord, chefe de relações governamentais da startup TRM Labs, dedicada à regulação desse mercado. “Até pouco tempo atrás, a lavagem de dinheiro era encarada pelas autoridades do país como um crime financeiro. Agora, passou a ser uma preocupação com a segurança nacional”, disse em entrevista à revista Time.

A mudança ocorreu em abril, quando funcionários do Tesouro identificaram o grupo hacker Lazarus, supostamente patrocinado pelo governo da Coreia do Norte, como responsável pelo roubo de 600 milhões de dólares de um jogo com criptomoedas da rede Ronin. O desvio serviria para gerar recursos para programas balísticos e armas de destruição de massa.

O meio usado para transferir o dinheiro roubado da rede, segundo as autoridades, foi o Tornado Cash. Mesmo com o governo exigindo que as transações fossem bloqueadas, seus desenvolvedores não conseguiram parar o fluxo de diversas transferências de 10 milhões de dólares cada uma.

Não foi só isso. Redbord estima que a Coreia do Norte tenha lavado mais de 1 bilhão de dólares por meio do Tornado Cash, e que os dez maiores golpes perpetrados por hackers do país tenham utilizado o serviço para conseguir transferir o dinheiro.

Uma mistura explosiva

O Tornado Cash é um dos exemplos de serviços de mixing (mistura), desenvolvido para dar mais garantias de privacidade a quem faz transações com criptomoedas. Se, de um lado, as criptomoedas independem de uma autoridade central que zele pelos negócios — e vem daí sua identificação com o movimento libertário —, de outro lado elas garantem segurança às transações por manter eternamente registrados todos os movimentos de troca numa cadeia de interações (a blockchain). Embora o anonimato de qualquer transação particular esteja garantido, observadores atentos podem rastrear o histórico de uma conta e inferir como ela está sendo usada e por quem.

Uma vez que você descubra, por exemplo, que uma conta recebeu dinheiro oriundo de uma atividade criminosa, é possível verificar para onde esse dinheiro foi enviado depois e que outras contas se ligaram àquela. Foi assim que o Departamento de Justiça americano recentemente desbaratou um site global de pornografia infantil e prendeu centenas de suspeitos.

Há casos, porém, em que a privacidade é desejável. Se você presta serviço a uma empresa, pode não querer que seu contratante enxergue quem mais lhe paga, ou quanto você recebe de outras fontes. Se você é um imigrante ilegal que manda dinheiro para a sua família em outro país, pode precisar do anonimato. Se uma organização de direitos humanos atua em um país autoritário, suas fontes precisam ser protegidas.

Em seguida ao banimento do Tornado Cash, o fundador da plataforma Ethereum, Vitalik Buterin, disse no Twitter que ele próprio usou o serviço para doar dinheiro a causas ucranianas sem colocar as organizações beneficiadas sob escrutínio. Da mesma forma, afirmou, doadores para organizações pró-direito ao aborto podem não querer ser identificados.

“Esta é a grande tensão no mercado das criptomoedas”, diz o advogado Isac Costa, professor de direito e regulação financeira do Insper. “As garantias de segurança no mercado contra o direito à privacidade.”

Nessa queda de braço entram os mixers. Basicamente, trata-se de um serviço utilizado para ocultar as atividades no blockchain, misturando os movimentos de várias carteiras diferentes em uma nova carteira de criptomoedas e tokens (títulos digitais). O depositante original recebe um código com o qual pode retirar o dinheiro dessa nova carteira. Pronto: onde antes havia um vínculo entre a fonte e o destino da transação, agora existe o anonimato.

“Muita gente fala que é difícil lavar dinheiro com cripto porque, embora você consiga ver o rastro das transações, não consegue identificar o usuário final”, explica Costa. As carteiras, nesse mundo, não são vinculadas a seus donos; só o que lhes garante a possibilidade de movimentá-las é a posse de um código (por isso, há casos de gente que perdeu sua senha e ficou sem o dinheiro). “O mixer, ainda por cima, mistura tudo.”

O crime do robô

Infelizmente, não há como impedir que esse anonimato seja usado por meliantes dos mais variados tipos e calibres. Um exemplo é o de Glaidson Acácio dos Santos, conhecido como “faraó dos bitcoins”, preso há um ano por golpes nesse mercado. Se tivesse usado o sistema financeiro normal, um juiz teria bloqueado seus bens para pagar os lesados. Com criptomoedas, não é possível fazer isso. Segundo investigações da Receita Federal, mesmo depois de preso ele conseguiu, com ajuda da mulher, resgatar 228 milhões de reais e escondê-los em outras contas. “Hoje o dinheiro está inacessível”, diz Costa.

Dada essa característica de sigilo, os mixers se tornaram uma das ferramentas preferidas dos criminosos digitais. De acordo com a Elliptic, uma empresa de análises de transações em blockchain, cerca de 20% dos fundos que utilizaram o Tornado Cash são ligados a atividades ilegais.

O argumento não convence os ativistas das criptomoedas. “Isso seria o equivalente a proibir o protocolo de email nos primeiros dias da internet, com a justificativa de que as mensagens podem ser usadas para dar golpes”, escreveu Lia Holland, diretora de comunicações da ONG Fight for the Future, que defende direitos digitais.

De fato, o banimento decretado pelo governo americano tem algo de inusitado: a medida foi aplicada a um código de programação, não a uma pessoa ou organização. Mais do que a perseguição a um robô, a punição está sendo considerada por ativistas como um ataque à liberdade de expressão. “Escrever um código aberto é ilegal agora?”, afirmou Roman Semenov, um dos fundadores do Tornado Cash, depois que sua conta na plataforma de desenvolvimento de software Github, da Microsoft, foi extinta (uma medida da empresa para cumprir as sanções do governo ao Tornado Cash).

Há, entre agentes do mercado cripto, o temor de que este seja um precedente para a punição de outros mecanismos descentralizados, como smart contracts (contratos que se realizam automaticamente quando são satisfeitas algumas condições) e DAOs (organizações autônomas descentralizadas, regidas por regulamentos codificados em algum programa).

Atividade incontrolável

O fato de a sanção ter sido aplicada a um programa também lança dúvidas sobre a sua eficiência. A conta do Tornado Cash diz que seu código, uma vez colocado na plataforma Ethereum, não pode mais ser alterado nem retirado, nem mesmo por seus criadores. Mais que isso: o serviço é acessível a qualquer um que tenha uma conta na Ethereum.

Isso ficou evidente nos dias seguintes ao banimento, quando ainda ocorreram mais de 2 milhões de dólares em transações. Ativistas também enviaram pequenas quantidades de criptomoedas para celebridades, como o humorista Jimmy Fallon e o ex-jogador de basquete Shaquille O’Neal, como um desafio para ver se o Tesouro tomaria ações contra eles. Não tomou, é claro, mas tampouco se sabe como devem proceder as pessoas que tinham dinheiro em alguma carteira de Tornado Cash.

Em essência, o governo não tem como controlar o uso desses mixers. Não dá para conter esta ventania. O que, sim, dá para fazer, é punir quem se exponha a ela — se for possível identificar essas pessoas.

E é possível pressionar as instituições para que se comportem como o governo quer. A Circle, que emite a USD Coin, uma criptomoeda estável (que promete conversibilidade), congelou mais de 75.000 dólares em fundos ligados ao Tornado Cash.

“Os mixers já vinham sendo alvo de avisos das autoridades e os próprios agentes do mercado estavam bloqueando as transações”, afirma Costa, do Insper. “Essas instituições mais reguladas, como o Mercado Bitcoin, no Brasil, a CoinBase, nos Estados Unidos, ou a Bitso, no México, se antecipam ao governo.”

Ao mesmo tempo, a existência dos mixers é amplamente tolerada. “É uma questão cultural. Esse mercado sempre foi mais inclinado à privacidade, contra a intervenção estatal”, diz Costa.

A ponte entre dois mundos

O banimento do Tornado Cash ilustra bem as dificuldades de trazer mercado das criptomoedas para o âmbito institucional. De um lado, seu sucesso — apesar da recente queda vertiginosa nas cotações — as torna praticamente irresistíveis. Diversas instituições financeiras já começaram a negociar, de variadas formas, os tokens e criptos. De outro lado, a regulação ameaça a essência do mercado, que foi criado de forma justamente a prescindir de órgãos reguladores.

De acordo com Costa, “esta contradição não se resolve”. O que tem caminhado é uma solução intermediária. As organizações que prestam serviços envolvendo criptoativos aderem aos regulamentos quando entram em contato com o Estado. Várias outras simplesmente não querem esse contato. Prezam a liberdade máxima, ainda que isso signifique a contaminação pelo dinheiro de drogas e crimes em geral.

Há quem acredite em soluções tecnológicas. Algumas empresas desenvolvem, por exemplo, programas que permitem selecionar quem possa ver as movimentações de uma conta, ou soluções que conseguem garantir que um usuário não está em nenhuma lista negra das autoridades sem necessariamente revelar sua identidade.

No limite, porém, a contradição permanece. O Estado precisa regular, e nem apenas para conter o crime. Trata-se também de garantir a segurança do sistema, exigindo fundos suficientes para honrar compromissos ou aderência a normas contábeis estabelecidas. Na outra ponta, a natureza das criptomoedas é que elas permitem transações sem submissão a terceiros, seja um banco, seja um governo.

Não é fácil construir a ponte entre os dois mundos. As autoridades querem que as instituições que prestam serviços de criptomoedas tenham os mesmos controles das instituições tradicionais: identificação do titular da conta, cadastro, garantia de fundos para cobrir saques etc. Está em tramitação no Congresso brasileiro o projeto de lei 4401/21, que trata de tudo isso.

O poder de implementar as determinações, no entanto, é limitado. “Esse limiar a gente vai ter que construir socialmente”, opina Costa. “Vamos ter que descobrir o quanto a sociedade está disposta a dar de privacidade a essas transações.”

Não é um processo inteiramente inédito. Algo semelhante ocorreu na questão dos dados capturados pelas grandes empresas de tecnologia — embora no caminho inverso. “Na construção da Lei Geral de Proteção de Dados, nossa privacidade era zero e a sociedade construiu suas exigências”, lembra o professor. “Agora é o outro extremo: a privacidade é máxima.”

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