O universo paralelo virtual ainda nem existe — mas o mercado que ele movimenta está crescendo rápido
David Cohen
O metaverso pode ser uma realidade ainda intangível para a maioria das pessoas, mas já está movimentando (ou criando) um mercado de bilhões de dólares. Para começar, trata-se da principal aposta do Facebook, a ponto de a companhia ter criado para si própria uma holding chamada Meta, com um orçamento de 10 bilhões de dólares para investir no desenvolvimento de tecnologias de imersão no universo virtual.
A Meta está longe de ser solitária nesse trajeto. Em janeiro deste ano, a Microsoft gastou 70 bilhões de dólares para comprar a desenvolvedora de videogames Actvision Blizzard. É a compra mais cara de sua história, mais de 2,5 vezes o preço que pagou pelo LinkedIn e quase 10 vezes o preço que pagou pela Nokia (um erro cometido em 2013). A ideia é desenvolver games e software específicos para o metaverso nos próximos anos.
Também o Google está colocando o pé nessas águas. Oito anos depois de ter se queimado com o projeto de óculos com realidade aumentada (RA) que suscitou preocupações em relação à privacidade (os óculos eram capazes de filmar) e, principalmente, escárnio, a empresa anunciou em julho que vai testar novos óculos de RA. Além disso, o Google já investiu quase 40 milhões de dólares em um fundo que apoia projetos do metaverso.
Outro gigante de tecnologia, a Nvidia, fabricante de unidades de processamento gráfico (GPU), está desenvolvendo ferramentas para criar simulações em 3D e avatares. Praticamente todas as grandes empresas ligadas a inteligência artificial, armazenamento de dados ou computação estão investindo para fazer frente às futuras demandas que o metaverso trará. Além disso, muitas companhias de games, vendas online, treinamentos e, claro, sites de encontros já estão no mínimo desenvolvendo planos para um futuro em que as pessoas poderão habitar o mundo virtual.
O primeiro passo para essa evolução toda, no entanto, são os equipamentos de imersão no mundo digital. De acordo com a Bloomberg Intelligence, serviço de análises da Bloomberg, o mercado de aparelhos de realidade virtual (RV) e RA gira em torno dos 4,5 bilhões de dólares e pode crescer a uma taxa de mais de 50% ao ano para chegar a 26 bilhões de dólares em 2025, com base em dados da consultoria IDC, líder em análises de mercado do setor de tecnologia.
Só quando o mundo tiver algo entre 15 milhões e 20 milhões de usuários engajados é que o metaverso poderá decolar, de acordo com a Bloomberg Intelligence. Aí sim haverá um mercado robusto para transações comerciais e anúncios, que podem levar esse negócio aos 140 bilhões de dólares em 2025 (contando com um impulso dos NFTs, certificados de propriedades digitais).
Essa projeção nem é a mais ousada. O banco Citi lançou no final de março um relatório em que avalia que o metaverso pode se tornar a próxima geração da internet, com um mercado estimado entre 8 trilhões e 13 trilhões de dólares em 2030, ao combinar os mundos físico e digital para novas experiências de entretenimento, jogos, arte, comércio, saúde, educação e trabalho.
“O dinheiro deve ser dessa ordem mesmo”, diz o engenheiro da computação Luciano Soares, professor dos cursos de Engenharia e de Ciência da Computação do Insper. “Só o mercado de games movimenta centenas de bilhões de dólares e deve crescer muito com jogos voltados para o metaverso.” Além disso, lembra ele, os setores de aprendizado e treinamento devem estar entre os primeiros a embarcar na nova tecnologia.
Com a pandemia, ficou claro que o ensino remoto tem um campo vasto. No entanto, o celular e o computador permitem — talvez até provoquem — uma dispersão grande. “É difícil ficar atento quando o aparelho oferece tantas possibilidades de conexão”, afirma Soares. O metaverso, com sua imersão mais profunda, pode solucionar, ou pelo menos atenuar muito, esse problema.
Mas isso não quer dizer que o metaverso se tornará ubíquo. Pelo menos não tão cedo. De acordo com o pesquisador canadense Bill Buxton, um dos pioneiros do campo da interação entre seres humanos e máquinas, as novas tecnologias costumam levar vários anos para se consolidar. “Eu o encontrei uma vez num seminário e ele me disse que o número mágico para a adoção de tecnologias revolucionárias é 20 anos”, diz Soares.
Há exceções, como o celular, cuja adoção foi mais rápida, mas em geral o cálculo de Buxton é seguro. “Basta ver os óculos de realidade aumentada”, aponta Soares. “Em laboratórios eles existem há mais de 30 anos.”
Venha mais tarde ou mais cedo, a propagação do metaverso começará, ao que tudo indica, com as peças de imersão. E esse mercado já está em plena efervescência. Várias dessas peças já estão disponíveis, outras tantas estão em projeto de criação ou melhoria.
Em primeiro lugar entre esses aparelhos estão os óculos de realidade aumentada. Lançados como um protótipo em 2013 e como um produto acabado no ano seguinte pelo Google, o aparelho foi um fracasso de crítica e público, ridicularizado como um gadget para os fanáticos em futurismo e voyeurs que quisessem filmar os outros. O fiasco inicial não impediu, porém, que a evolução prosseguisse, à espera de tempos mais propícios à imersão que ele propõe. Hoje há diversas opções, com diferentes formatos, tamanhos e materiais, e seu preço caiu bastante.
Os óculos de RA são basicamente usados por gamers, mas no metaverso podem ganhar um público mais amplo. Eles têm câmeras frontais acopladas a programas de reconhecimento, capazes de projetar nas lentes imagens ou gráficos. Imagine que você vai a um restaurante, por exemplo, e aponta os óculos para um código de barras na sua mesa para ver o cardápio, os preços, o nome do seu garçom etc. Ou vai a uma loja e diante de um produto, graças a uma etiqueta especial, é capaz de ler suas especificações.
Alguns desses óculos também trazes microfones que permitem o uso da voz para fazer buscas, que são então projetadas nas lentes. Outros podem receber mensagens (que você pode ignorar, se quiser), ou mapas.
No metaverso, essa funcionalidade é bastante útil para que você se localize e entenda o ambiente em que está. A partir daí, pode usar outros equipamentos — luvas, sapatos especiais — para controlar as imagens e se relacionar com o mundo virtual.
Entre as empresas que testam óculos de RA estão, além do Google, a Microsoft, a Apple, a Meta, a Epson… Já se fala inclusive, para um futuro próximo, em lentes de contatos inteligentes. Esses aparelhos não são apenas úteis para o metaverso — eles podem permitir um uso misto: no mundo físico e no virtual. A Microsoft nem chama os seus óculos, Hololens, de realidade aumentada; diz que eles são um aparelho de “realidade mista”. O Google, por sua vez, está apostando em recursos úteis como tradução simultânea.
A Nokia, que fabrica redes de telecomunicações, prevê que a chegada do 6G (a próxima evolução, após o 5G), no final desta década, fará com que as pessoas deixem o celular em prol de equipamentos como os óculos e outros gadgets faciais para se conectar à internet.
Mais imersivos que os óculos de RA são os visores de realidade virtual. Com eles, o usuário deixa de enxergar o mundo físico a sua volta e se concentra apenas no mundo virtual projetado para seus olhos e ouvidos. A tecnologia já existe, já está em uso por gamers, mas ainda enfrenta inúmeros desafios para alcançar adoção mais abrangente.
Um dos desafios é o alto custo em relação ao limitado número de aplicações a que se destina. Outro é o peso, que dificulta seu uso por mais do que períodos curtos de tempo. Há ainda efeitos colaterais para alguns usuários, como tontura e enjoo. As fabricantes têm trabalhado para resolver todos esses problemas e nos últimos anos conseguiram apresentar avanços no peso e na duração das baterias (fazendo com que não seja necessário conectar o visor a um computador).
Os progressos alimentam o mercado e o sucesso comercial incentiva mais progressos. No ano passado, as vendas de óculos de RV e RA aumentaram 92%, atingindo mais de 11 milhões de unidades, de acordo com a IDC. O líder de mercado é o Quest 2, da Meta, com 78% das vendas.
Os visores são equipados com sensores giroscópicos e magnetômetros que monitoram e controlam seus movimentos ao mesmo tempo que acompanham suas interações no mundo virtual. Eles são também conectados a câmeras externas e sistemas computacionais, permitindo que você use outros programas e se conecte a softwares diferentes.
A evolução dos visores de RV inclui melhoras no áudio e efeitos sonoros, maior campo de visão e maior definição as imagens (o visor da HTC tem resolução de 4896 x 2448 pixels e campo de visão de 120°), com mais quadros por segundo. Além disso, eles estão ficando mais aptos a identificar os movimentos da cabeça.
Para além da visão e da audição, os fabricantes avançam nas sensações de toque. O gadget mais comum para isso é a luva de RV. Ela usa mecanismos que tentam replicar a resistência que você sente quando segura um objeto. Quando você usa uma luva dessas em uma experiência de RV ou RA, o sistema de controle dela se ajusta ao objeto que você está virtualmente pegando por meio de estímulos provocados por pressão em diferentes partes da sua mão e dos seus dedos.
As luvas também permitem o controle do mundo em sua volta por meio de gestos, enviando sinais para outros programas.
“Quando eu comecei a trabalhar com computação, há mais de 20 anos, falava-se muito das luvas”, lembra Soares. “Até que, um tempo depois, elas foram esquecidas. Agora estão voltando.” Entre os motivos para seu esquecimento estava o fato de que elas não eram muito precisas — e ainda não são. “A gente tem muitos músculos na mão, é complicado capturar todos os movimentos.”
Ao mesmo tempo, há a concorrência de outras tecnologias. Uma delas, bem mais simples que a luva, é o bracelete de RA, que detecta os movimentos da mão e dos dedos por eletromiografia (análise da atividade elétrica dos músculos) e os converte em comandos. Fabricantes acreditam que no futuro os braceletes permitirão mover objetos no metaverso.
Outra forma de transportar os estímulos do mundo físico para o mundo virtual é a plataforma virtual Virtuix Omni One, uma espécie de esteira que permite ao usuário se mover em qualquer direção. Com o auxílio de um visor de RV e uma cinta colocada na cintura para posicionamento, os movimentos poderão ser traduzidos em dados exportados para o metaverso.
Com o desenvolvimento de sensores de movimento, porém, tanto as luvas como os braceletes e as plataformas talvez se tornem desnecessários, pelo menos como instrumentos de controle.
O grande apelo no qual alguns fabricantes apostam, especialmente a Meta, é a sensação de tato. Para isso a empresa se associou recentemente a cientistas da universidade Carnegie Mellon para criar um sensor tátil, com cerca de 3 milímetros de espessura, que age como uma pele flexível. O produto, chamado de Reskin, pretende ser um avanço em relação às luvas existentes: é mais durável, mais leve e custa menos.
A Reskin é feita com um material elástico deformável, incrementado com partículas magnéticas que garantem a passagem de sinais eletromagnéticos quando a luva se deforma. Em seguida, ela mede as mudanças de sinais por meio de um magnetômetro. Os dados obtidos são então convertidos por software em informações como força e local do contato.
Os pés também não poderiam ser esquecidos. Os sapatos cibernéticos são um sistema de locomoção no mundo virtual que traduz o caminhar em movimentos dentro do jogo. Você não precisa sair do lugar, porque eles têm rodinhas que permitem ir para a frente ou para trás mantendo-se parado. Por enquanto, esses sapatos são de modelo único: você os amarra ao seu calçado e se senta numa cadeira rotatória. No futuro, se houver demanda, é possível que eles sejam customizáveis.
Para quem quiser juntar todos os equipamentos de uma vez só, há opções como a Teslasuit (nenhuma relação com a montadora Tesla), uma roupa capaz de medir diversas atividades e movimentos, além de gravar as batidas do coração. Ela foi introduzida no início de 2020, pela VR Electronics, numa feira de eletrônicos. Com ela é possível, segundo a fabricante, sentir o impacto de uma bala quando o seu avatar é atingido em um jogo.
O avanço, neste caso, é fazer com que o corpo responda a praticamente tudo o que acontece no mundo virtual. Mais ou menos como acontecia no filme Matrix. Estamos muito longe desse ponto, é claro, mas esta é a inspiração.
De certa forma, já tivemos metaverso embrionário: o jogo Second Life (segunda vida), lançado em 2003 pela empresa americana Linden Lab, no qual as pessoas podem viver realidades paralelas com seus avatares e inclusive movimentar um dinheiro próprio do game. Ele ainda existe e tem quase um milhão de “residentes”, como a empresa chama os usuários. Mas não decolou. Em diversos aspectos, a nova onda do metaverso é uma recriação — uma segunda vida — da ideia do Second Life.
A rigor, o certo seria falar em metaversos, no plural. Embora nas obras de ficção científica tenhamos em geral apenas uma realidade virtual, as empresas que se dedicam a criá-la estão longe de definir um padrão único. “Ao contrário, estamos andando no sentido oposto da padronização”, diz Soares. “O sistema da Meta, por exemplo, exige equipamentos da Meta para ser utilizado. Os gadgets que eu tenho no laboratório para ensinar os alunos são da HTC”, afirma. “A plataforma da Microsoft é um pouco mais aberta, aceita outros sistemas.”
Pelo menos num primeiro momento, o metaverso será semelhante ao mercado dos games, das emissoras de programas por streaming e das redes sociais: para assistir a um filme, brincar com um game ou conectar-se com alguém, terá que ser cliente de uma empresa específica (diferentemente dos emails, por exemplo, em que todos podem se comunicar com clientes de outros provedores).
Pensando bem, o metaverso segue uma tendência forte hoje em dia, em que cada um procura a sua bolha, se insere nela e fecha os sentidos para todas as outras.
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