Arthur Barreto, que viu a situação da família se complicar após perder o pai no início da pandemia, é um dos estudantes de Engenharia de Computação que chegaram à final do mundial de robótica, na Tailândia
Leandro Steiw
Desde muito pequeno, Arthur Martins de Souza Barreto ouvia a recomendação na casa dos pais, em Palmas, capital do Tocantins: estudar abre muitas portas. A mãe, Mercia Rodrigues de Souza, é professora de Geografia em escola pública, e o pai, Alberto Martins dos Santos — já falecido —, era mecânico de automóveis. A influência também vinha de fora. Um amigo da família havia concluído sete faculdades e, aos 80 anos, começara a fazer Direito. Os caminhos que se abriram para Barreto mostram que ele não apenas ouviu como prestou bastante atenção aos conselhos.
Barreto, 23 anos, é aluno bolsista do Insper com um dos maiores coeficientes de rendimento por média dos cursos de Engenharia. Ele e mais três colegas chegaram à final da RoboCup, na Tailândia, em julho. Um grande feito. A RoboCup é uma das principais competições mundiais de robótica e inteligência artificial, disputada por representantes de 45 países. Robôs semelhantes ao da entidade Insper Dynamics são empregados em situações adversas causadas por desastres naturais ou para atuar em missões em ambientes perigosos para seres humanos.
Eventos como o mundial de robótica não se limitam à disputa por medalhas. “O quase pódio não é o mais importante; o mais importante é a experiência na RoboCup”, afirma Barreto. “Conversamos e trocamos ideias com os professores e os outros alunos. O intercâmbio cultural é muito grande. Imagine se fosse só para competir. Eu voltaria estressado, porque não fui pódio, agiria mecanicamente e não teria trocado experiência com ninguém.”
Hoje, aquelas portas já não são figura de linguagem. Barreto pode abri-las com as próprias mãos. Antes, precisou transpor um vaivém de novidades extraordinário para um adolescente recém-saído do ensino médio. Em Palmas, começou o curso de Engenharia Elétrica no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins (IFTO). Foi para Fortaleza, no Ceará, para dois anos de cursinho preparatório para os vestibulares de escolas militares de ensino superior. Em maio de 2020, porém, o pai morreu de covid-19. “A minha família estava me sustentando em Fortaleza e não foi fácil. Apesar da bolsa do cursinho, havia os custos com alimentação. Aí veio a morte do meu pai”, recorda.
Primogênito de Mercia e Alberto, Barreto voltou para Palmas para dar apoio à mãe, ao irmão e às duas irmãs. Em agosto, retornou a Fortaleza. “O vestibular estava batendo à porta no final do ano, mas tinha que prestar. Acabou que a minha cabeça estava pirada devido a tudo o que aconteceu, e eu não me saí bem nas provas”, diz Barreto, com serenidade.
Havia outros planos em elaboração na cabeça naquela época. “Por volta de setembro, me falaram do Insper, e eu fui atrás”, afirma. “Entrei em contato com a escola, conversei com pessoas ligadas à robótica e com uma das fundadoras da entidade, numa call de uma hora, e me explicaram como era o curso de Engenharia de Computação. Eu me encantei com tudo e pensei: ‘É aqui que eu quero entrar’.”
Paralelamente, inscreveu-se para o vestibular da Unicamp, que também foi realizado em janeiro de 2021. “Passei no Insper e com uma nota muito boa na primeira fase da Unicamp”, diz, sem arrogância. “Quando saiu o resultado do programa de bolsas do Insper, liguei para a mãe e disse que havia passado no Insper, que não precisava mais fazer vestibular. Eu nem prestei a segunda fase da Unicamp. Voltei para casa porque sabia que estava no lugar certo.”
Como em tantas instituições de ensino, as aulas do primeiro semestre no Insper foram online, porque apenas 3% da população brasileira estava vacinada contra a covid naquele fevereiro de 2021. “Eu estava em Palmas, já havia gastado muito com passagem de avião, não havia me vacinado ainda, a pandemia estava no auge, papai morrera disso, eu não queria arriscar”, narra. “Quando veio a vacina, no segundo semestre, decidi ir para São Paulo. Não aguentava mais ficar em casa.”
Na chegada, o colega Felipe Catapano Emrich Melo, com quem montaria a entidade Insper Dynamics, foi buscá-lo no aeroporto. A amizade começou em conversas pelo WhatsApp, depois que a professora Daniela Assofra pediu para os alunos se apresentarem na aula da disciplina Grandes Desafios da Engenharia. “Eu falei que gostava muito de robótica e de competir. O Catapano disse que ele também”, afirma. Não era exagero. Os dois já haviam sido campeões latino-americanos de robótica, antes de ingressarem em Engenharia de Computação.
O amigo Catapano confirma: “Posso dizer que lembro a primeira vez que o vi e falei com ele. Aconteceu em uma das primeiras aulas de Grandes Desafios da Engenharia, na qual a professora deu um espaço para que nós pudéssemos nos apresentar para todos os novos colegas. ‘Meu passatempo é fazer robôs’ foi a frase que ele usou, o suficiente para chamar a minha atenção. Não perdi nem um segundo, mandei uma mensagem para ele assim que terminou de falar”.
A partir daquele instante, outras surpresas transpareceriam. “Viajamos para o Japão e o Canadá, para a RoboCup, e nunca nos falamos, muito menos imaginamos que anos depois estudaríamos juntos”, diz Catapano. “Viemos de realidades totalmente diferentes e de fases da vida diferentes. E o interesse pela computação nos uniu, permitindo a criação de um projeto em robótica e da Insper Dynamics.”
O primeiro contato de Barreto com robótica foi no curso técnico de Mecatrônica, feito no IFTO, fruto do interesse por eletrônica desenvolvido na oficina do pai. No primeiro ano no ensino médio, ganhou medalha de bronze na prova teórica da Olimpíada Brasileira de Robótica. Um ano depois, foram cinco competições, entre olimpíadas de robótica, matemática, física e astronomia e astronáutica, com uma medalha de ouro, duas de prata e uma de bronze.
Os professores bancavam a maioria das peças e equipamentos, porque as competições de robótica são caras para alunos de escolas públicas. “Meu pai sempre ajudava, porque a gente não tinha muita condição. Ou comprava um sensor ou me ensinava algo de eletrônica”, diz. “Meu pai e minha mãe sempre fizeram de tudo para eu ter o que tenho e estar onde estou. Lá no Tocantins, era tudo muito complicado para nós. De verdade. Tinha dia que a minha mãe deixava de comer para eu e meus irmãos jantarmos.”
De competição em competição, chegou ao seu primeiro mundial de robótica, em 2017. Ele rememora: “Dormimos numa igreja lá no Japão, você acredita? Uma igreja evangélica de brasileiros. Mandamos mensagens via Facebook para vários brasileiros que moravam no Japão, até alguém responder e querer conversar conosco. Fizemos algumas ligações, e a igreja nos aceitou. O pastor foi nos buscar no aeroporto e levava para a competição todos os dias”. Vaquinhas e acolhimento de brasileiros também ajudaram na viagem à segunda RoboCup, no Canadá, em 2018, já como campeão da etapa latino-americana.
Naquela época, Barreto não contava com os recursos dos laboratórios do Insper. “Nunca tive a infraestrutura que o Insper me proporciona até aqui”, afirma. “Para mim, é algo do outro mundo. No Instituto Federal, não tinha essas coisas. Era um galpão com poucas tomadas, então puxávamos uma extensão de 40 metros de outra sala para treinar. Ainda assim, conseguimos terminar em terceiro lugar no latino-americano, em 2017, numa categoria na qual participava gente da faculdade e da escola técnica.” No ano seguinte, ganharam a etapa latino-americana.
A dedicação valeu a pena. “Passar no Insper foi o que mudou a minha vida da água para o vinho”, diz. “Tudo começou a dar certo depois que eu vim para cá, então eu só tenho o que agradecer à instituição, aos doadores e ao programa de bolsas. Quando cheguei aqui, sempre tentei me dedicar ao máximo e retribuir o que ganhei e dar em dobro para todo mundo. Porque se eu for bom para alguém, tenho certeza de que isso vai voltar algum dia.”
Familiares e amigos diziam que estudar era melhor maneira de vencer na vida. “Eu escolhi estudar para poder ajudar a minha mãe”, afirma. “Um dos meus sonhos é dar uma casa para ela, porque ela mora de aluguel até hoje. Depois que meu pai faleceu, a situação lá piorou muito, e me vejo como uma pessoa que tem que ajudar.”
O quarto lugar na RoboCup, junto com os colegas Felipe Catapano, Rafael Eli Katri e Enricco Gemha, contou com os aprendizados da disciplina Robótica Computacional, do terceiro período de Engenharia de Computação no Insper. “Foi absurdo o conhecimento da matéria que utilizamos no robô do Mundial de robótica”, diz Barreto. Presidente da Insper Dynamics, ele contribuiu principalmente com a construção da eletrônica do robô e em um pouco da programação.
A preparação para a RoboCup 2022 incluiu inúmeros churrascos na casa da família de Catapano, cujo pai foi um dos primeiros entusiastas e patrocinadores, e finais de semana de retiro em torno do aprimoramento do robô que seria levado para a Tailândia. “Uma das características que mais me chamam a atenção no Insper são os projetos, porque é uma faculdade prática”, afirma. “A primeira faculdade, que eu larguei, era um curso muito teórico. Aqui, sinto que vou sair daqui sabendo fazer muita coisa.”
Além da bolsa integral, Barreto morou na Toca da Raposa, uma conveniência para quem se transfere de uma capital de 310.000 habitantes para outra de 12 milhões. “Foi muito importante, porque eu não conhecia nada de São Paulo”, diz. “Eu não sabia andar de metrô, via aquele mapa gigante e não fazia ideia de como funcionava. Mas o pessoal me ajudou bastante. E aqui tinha aplicativo de comida. Houve uma época na Toca que nós vivíamos de iFood de 99 centavos. Foi bem divertido morar lá.”
“Foi divertido” porque, desde julho, Barreto passou a dividir o aluguel de um apartamento na Vila Olímpia, pertinho do prédio da Quatá, com outros dois bolsistas da Engenharia de Computação. A volta da Tailândia, em meio às férias na faculdade, ficou meio canção da Legião Urbana: “A cama chegou na terça e na quinta chegou o som”. O mundo anda tão complicado? “Estou numa das melhores faculdades, tenho ótimos professores e tudo mais do que eu preciso. Se soubesse que o Insper é tudo isso há cinco anos, eu não teria sofrido tudo o que sofri”, diz.
A curiosidade segue em formação. Em junho, Barreto foi aprovado para um projeto de iniciação científica, orientado pelo professor Luciano Silva, que envolve computação quântica, machine learning e identificação de exoplanetas com dados da Nasa. Espirituoso, ele próprio se define: “Sabe aquele primo que todo mundo fala que faz alguma coisa? Esse primo sou eu”.