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O difícil caminho para a autonomia da população em situação de rua

O padre Júlio Lancellotti falou sobre a política pública no evento de inauguração das atividades do Núcleo Pop.Rua do Insper

O padre Júlio Lancellotti falou sobre a política pública no evento de inauguração das atividades do Núcleo Pop.Rua do Insper

 

Leandro Steiw

 

O evento inaugural do Núcleo Pop.Rua, do Laboratório Arq.Futuro de Cidades em parceria com o Centro de Gestão e Políticas Públicas (CGPP) do Insper, teve a presença do padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, como convidado. Berenice Giannella, presidente do conselho do Fundo Social do estado de São Paulo, e o professor e pesquisador do Insper Ricardo Paes de Barros, coordenador do núcleo, foram os entrevistadores do encontro, realizado no dia 14 de junho. O Núcleo Pop.Rua também é integrado pelos professores Ricardo Henriques, Laura Muller Machado, Marcelo Marchesini e Bianca Tavolari.

Para o padre Júlio Lancellotti, as políticas públicas ainda precisam proporcionar a autonomia dos indivíduos. “A população em situação de rua é bastante complexa, muito heterogênea, e, muitas vezes, a política pública dá uma resposta como se todos fossem a mesma coisa”, disse. Ele criticou a estratégia de acolhimento igual para todos, sem distinção entre as pessoas que estão há um ou há 10 anos na rua e suas diferentes necessidades. “A política pública é compartimentada, nunca tem alguém que vê na totalidade. A pessoa não é vista como pessoa, mas como um problema: na saúde ele é paciente, na assistência social é convivente. Falta uma articulação nas respostas”, afirmou.

As dificuldades passam também pela aporofobia, a aversão aos pobres. Ele citou projetos de habitação como o Vila Reencontro, da prefeitura paulistana, que a sociedade civil costuma rejeitar quando a população em situação de rua é transferida para a sua vizinhança. “Concentrar as pessoas num lugar só não dá certo, porque vira a vila dos moradores de rua. Todo mundo vai falar: ‘Lá que moram os maloqueiros; ali que é a vilinha dos mendigos’. Acaba estigmatizando. Respostas que estigmatizam não ajudam. Uma pista é a locação social, que oferece outras formas de emancipação e autonomia que não gerem concentração”, afirmou.

 

Vagas em hotéis

Berenice Giannella, por sua vez, disse que o censo municipal da população em situação de rua aponta alguns caminhos para diferenciar as respostas da política pública, comentadas por Lancellotti. Ela afirmou que o principal motivo para as pessoas irem para a rua são os conflitos familiares, decorrentes da violência doméstica ou do uso abusivo de álcool ou drogas. “Na nossa gestão, abrimos mais de mil vagas em hotéis, com um tratamento bastante digno. Foram criados locais para pessoas trans, que também é uma população com dificuldade para entrar nos Centros de Acolhida, e que está em grande número nas ruas porque as famílias não as aceitam.”

Outra tentativa de alocação citada por Berenice são as repúblicas, casas para 10 a 20 pessoas, nas quais as pessoas vivem numa comunidade pequena e tentam manter certa independência. “Mas não tivemos uma adesão grande da população de rua. A gente oferecia a vaga para as pessoas, e muitos não queriam sair dos centros de acolhimento com 100 ou 150 pessoas para ir à república. Então, precisamos estudar por que isso ocorre”, afirmou.

Berenice concorda no encaminhamento da pessoa em situação de rua para a autonomia, em vez da tutela. “Mas 30% dessa população está há mais de 10 anos na rua e, portanto, tem uma dificuldade enorme para qualquer tipo de inserção e autonomia”, disse. “Temos uma população que está envelhecendo na rua, muitas pessoas acima de 50 anos. Não que sejam velhos, mas, para o mundo do trabalho, quem tem 50 ou 55 anos e tem uma formação deficiente encontrará muita dificuldade para arrumar emprego.” Conforme Berenice, a educação profissional não resolve o problema dessas pessoas, porque elas já não obtiveram nem a educação formal ou já se tornaram dependentes de drogas e álcool a ponto de comprometerem a saúde mental.

Um modelo que deveria ser avaliado é o Housing First (moradia primeiro, em tradução livre do inglês), sugeriu Berenice. “Foi a única novidade no atendimento à população em situação de rua nos últimos anos. É um programa que vem sendo desenvolvido em Portugal, na Espanha e na Escócia, que tira da rua essas pessoas com mais dificuldade de sair da rua. Elas vão para moradias individuais e têm um acompanhamento 24 horas de saúde e assistência social. Acho que vale uma tentativa e um estudo mais aprofundado sobre o que aconteceu nesses países.”

 

Cidade partida

O professor Ricardo Paes de Barros comentou que São Paulo está caminhando para a chamada cidade partida (conceito usado para caracterizar a dualidade socioeconômica da cidade do Rio de Janeiro), na qual um ignora o outro e as pessoas não se comunicam. “Isso é péssimo se quisermos resolver o problema, porque o primeiro passo é a integração”, afirmou. Ele instigou o debate com três questões: 1) As escolas não poderiam levar as crianças para conversar com a população de rua, para começarem a entender a diversidade humana, assim como se faz na educação ambiental? 2) O que a assistência social pode aprender com a saúde na abordagem dessa população? 3) Existe algum jeito de, com a adoção de políticas públicas, evitar ou resolver os conflitos familiares que levam às pessoas às ruas e reinseri-las nas famílias?

Para Lancellotti, esquecemos que a convivência — que depende do estabelecimento de vínculos — é conflituosa para todos. “Temos que ver a dimensão humana das pessoas. O egoísmo e a acumulação também fazem parte do nosso rol de comportamento”, afirmou. “Entender esse mundo é muito importante. Fazer uma leitura a partir da calçada. Muitas vezes, fazemos uma leitura a partir da pesquisa, da academia, do nosso conhecimento. Outra coisa é fazer a leitura a partir de baixo, não sempre de cima. Então, queremos que todos sejam o que nós não somos: educados, prestativos, aceitadores, disponíveis.”

Berenice Giannella acredita que os preconceitos diminuíram muito nos últimos anos, em parte pela abordagem nas escolas, e que a questão da população em situação de rua poderia ser tratada em sala de aula. “Isso humanizaria essa população, que deixaria de ser transparente para todos nós”, afirmou Berenice. “Concordo com o padre que precisamos ouvir mais essa população, e a prefeitura tem o Comitê Pop.Rua, mas que também se tornou um local viciado, porque as pessoas são eleitas e reeleitas e já não representam as pessoas em situação de rua.”

Ela contou que, da experiência na Fundação Casa, aprendeu que é preciso pensar num projeto de vida em conjunto com a pessoa em situação de rua, não para ela. No entanto, o dinheiro minguou nos últimos anos. “Houve uma diminuição nos valores repassados pelo governo federal aos estados e municípios, que estão recebendo só 30% do valor devido de cofinanciamento da política. Talvez a cidade de São Paulo não sinta muito isso, porque tem uma grande arrecadação, mas há municípios fechando serviços por falta desse cofinanciamento. Precisamos pensar outro tipo de financiamento de assistência social, numa política de transferência de renda melhor do que a que temos.”

 

Transversalidade

O Núcleo Pop.Rua do Insper defende a evidência e o conhecimento científico como bases para as políticas de estados e municípios na garantia dos direitos da população em situação de rua e na redução do número de pessoas nesta condição. A ideia é facilitar o intercâmbio com outros núcleos, professores e alunos interessados na temática. O núcleo pretende promover oficinas e debates com a participação de gestores públicos, especialistas e representantes-chave e difundir o conhecimento gerado e sistematizado sobre população em situação de rua.

No Laboratório Arq.Futuro, há linhas de pesquisa sobre mulheres e território, urbanismo social, cidade e regulação, mobilidade urbana, saúde urbana, arquitetura e cidade, economia urbana e ciência de dados, moradia e cidades inteligentes. Pobreza e desigualdade, por exemplo, é uma frente consolidada no Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper pelo professor Ricardo Paes de Barros. Os professores Marcelo Marchesini e Bianca Tavolari já dialogaram com a questão no Observatório do Plano Diretor, no contexto da capital paulista. Já a professora Laura Machado, pesquisadora do Núcleo, assumiu em abril como secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo.


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