Entenda a chacoalhada em um mercado que perdeu dois terços de seu tamanho, ou 2 trilhões de dólares, em meio ano
David Cohen
Não dá para dizer que tenha sido inesperado. Em janeiro, analistas do Fundo Monetário Internacional já alertavam que a alta de juros adotada por alguns países para conter a inflação poderia levar a uma desvalorização dos ativos de risco. A lógica é simples: quando títulos com garantia do governo pagam juros razoáveis, grande parte dos investidores corre para a segurança. A contribuir para isso, nos Estados Unidos o governo parou de injetar dinheiro na economia (os pacotes de estímulo durante a pandemia contribuíram para a alta das ações e outros ativos de risco).
Mesmo neste cenário de desvalorizações anunciadas, porém, a queda das criptomoedas surpreendeu. Em novembro passado, esse mercado somava quase US$ 3 trilhões. Em meados de abril, o bolo havia murchado em um terço, para US$ 2 trilhões. Em apenas um mês, maio, outro terço evaporou, restando US$ 1,3 trilhão. Em junho, uma nova queda, de cerca de 12%, levou o mercado para abaixo do US$ 1 trilhão pela primeira vez desde o início de 2021.
De queda em queda, desapareceram mais de US$ 2 trilhões em apenas meio ano. Está certo que na bolsa de valores o sumiço foi maior — um encolhimento de mais de US$ 7 trilhões no valor total de mercado das 500 grandes empresas do índice S&P 500. Mas o baque relativo das bolsas foi muito menor: as ações caíram cerca de 20%; as criptomoedas, 66%.
A criptomoeda original e mais famosa delas, o bitcoin, chegou a ser cotada a quase US$ 70.000 no ano passado. Agora está perto dos US$ 20.000. Não é a primeira vez que o bitcoin desaba. Em 2018, a queda foi até maior, de 80%, e a cotação ficou baixa até meados de 2020. Há inclusive uma expressão para esses períodos de baixa: o inverno das criptomoedas.
Embora o tombo seja um pouco menor desta vez (pelo menos por enquanto), o impacto é bem maior, porque mais gente e mais instituições possuem reservas. De acordo com o Centro de Pesquisas Pew, 16% dos americanos declaram ter criptomoedas. Em 2015, eram apenas 1%.
Entre uma data e outra, celebridades como Kim Kardashian elogiaram as criptomoedas, e várias empresas de tecnologia promoveram seu uso. A Tesla, de Elon Musk, por exemplo, anunciou em 2021 ter investido em bitcoins e estudava aceitar a moeda como forma de pagamento, mas voltou atrás no fim do ano. Em janeiro, Musk afirmou que a Tesla aceitaria outra criptomoeda, a Dogecoin, e reiterou a intenção agora em junho, mesmo em meio à crise, incluindo outra de suas empresas, a SpaceX. A Dogecoin, que havia perdido 90% de seu valor desde o ano passado, subiu 14% após esse último anúncio.
Várias empresas passaram a emitir criptomoedas como forma de autofinanciamento, e até bancos tradicionais começaram a entrar nessa seara — por enquanto, devagar. Em abril, o maior fundo de pensões dos Estados Unidos, a Fidelity Investments, anunciou que permitiria o depósito de bitcoins em suas contas de aposentadoria.
De certa forma, dizem alguns analistas, esta enorme correção de preços pode ser benéfica. É melhor que tenha acontecido agora, quando a exposição da economia real às criptomoedas ainda é limitada. Afinal, como lembrou o economista Paul Krugman, em coluna no jornal The New York Times no dia 6 de junho, a crise financeira mundial de 2008 começou com o estouro de uma bolha imobiliária que fez sumir US$ 6 trilhões.
Há dois tipos principais de reação à derrubada das cotações das criptomoedas. O primeiro é considerar que a bolha estourou, ou está em vias de estourar. “Para quem acredita, como eu, que as criptomoedas são em larga medida um esquema de pirâmide, este pode ter sido simplesmente o momento em que deixaram de surgir otários”, escreveu Krugman.
Para outro economista de peso, Kenneth Rogoff, o professor de Harvard, este talvez ainda não seja o fim da bolha. “Uma questão mais interessante é o que vai acontecer quando os governos finalmente levarem a sério a ideia de regular o bitcoin e seus congêneres”, escreveu em artigo para a organização de mídia Project Syndicate.
Para esses críticos, as criptomoedas já estão por aí há muito tempo — o bitcoin foi lançado em 2009 — e suas promessas não se cumpriram.
O segundo tipo de reação é mais otimista. Gente da própria indústria considera que o desabamento das cotações é um bom sinal, porque vai permitir uma limpeza dos maus operadores — algo parecido com o estouro da bolha das ponto.com na virada do milênio.
Tal qual a febre de startups naquela época, a maioria das quais não tinha modelo de negócio sustentável, as criptomoedas viveram um período de efervescência. Há mais de 10.000 moedas em atividade (mais de 18.000, se incluirmos as inativas), de acordo com o CoinMarketCap, um site de notícias dedicado ao setor, e dezenas de plataformas de blockchain (a tecnologia que dá vida às criptomoedas).
“Eu acho bom que estejamos num momento de mercado em baixa, porque isso vai tirar as pessoas que estavam nele pelas razões erradas”, afirmou Bertrand Perez, executivo-chefe da Web3 Foundation, uma empresa que desenvolve produtos e aplicações para blockchain, no início de junho, num encontro do Fórum Econômico Mundial.
De fato, o mercado é muito mais complexo do que faz supor a denominação comum de criptomoedas. “Os criptoativos se dividem basicamente em quatro grandes grupos”, afirma Raul Ikeda, coordenador do curso de Ciência da Computação no Insper. “O primeiro é o das moedas atreladas à rede, como o bitcoin e o ether. Moedas de rede são criadas basicamente a partir da mineração de dados e possuem um propósito bem definido, ligado ao propósito da rede”, diz. “O bitcoin, por exemplo, serve para transferir valores; o ether serve para pagar serviços da rede ethereum”.
O segundo tipo é o de criptomoedas atreladas a algum ativo no qual se enxerga valor ou se pretende criar um valor. O exemplo mais comum é o de moedas de startups, que funcionam como uma espécie de financiamento. Os empreendedores emitem suas moedas para financiar o projeto, oferecendo em troca algum serviço, ou um naco de sociedade na empresa. É uma alternativa à abertura de capital em bolsa (e passou a ser conhecida pela expressão ICO, oferta inicial de moedas, em paralelismo com o termo IPO, oferta pública inicial).
O terceiro tipo são as NFTs, tokens não-fungíveis. Criadas com o mesmo tipo de programa que as criptomoedas, elas são um símbolo de algum objeto real e único (não intercambiável por um similar). Funcionam como uma espécie de certificado de propriedade de uma obra de arte, geralmente digital — ainda que a obra em si possa ser vista de graça e copiada por qualquer pessoa.
Finalmente, há as stablecoins, “moedas estáveis”. Elas surgiram para resolver o problema da volatilidade das criptomoedas e permitir um mais amplo uso delas no mundo real. “A definição de stablecoin é uma moeda com lastro em algum ativo, que pode ser uma moeda (dólar, euro, iene), uma commodity (ouro, metais preciosos) ou uma cesta de ativos”, diz Ikeda.
A partir daí, no entanto, começaram alguns invenções, como uma criptomoeda lastreada em outra criptomoeda. É o caso da DAI, uma criptomoeda ligada à ether e à USD Coin. Ela almeja manter sempre o valor de US$ 1, por meio de contratos automáticos (smart contracts) que corrigem a relação de troca entre ela e as criptomoedas a que está ligada.
Um experimento ainda mais avançado é a terra, que, em vez de se ligar a criptomoedas independentes, tem o seu próprio sistema, com uma moeda “satélite”, previsivelmente chamada de luna. O lastro, nesse caso, não é físico, mas psicológico. Desde 2018, a cada vez que a terra descolava de seu valor de US$ 1, havia um incentivo para que as pessoas comprassem lunas e as trocassem por terras (ou vice-versa, dependendo de ter havido valorização ou desvalorização), ganhando uma pequena comissão.
Esse sistema ganhou o nome de stablecoin algorítmica, porque um algoritmo definia quando as trocas seriam incentivadas. Era um experimento e tanto. Se uma criptomoeda fosse capaz de se manter estável em relação ao dólar apenas com incentivos comandados por um algoritmo e ligação com o bitcoin, seria um forte sinal de que o ecossistema podia ser independente dos sistemas financeiros tradicionais.
Mas o experimento falhou. Foi o colapso da estabilidade da terra, em maio, que fez o mercado das criptomoedas desabar — até então, sua queda era não tão diferente de outros ativos de risco.
Há quem diga que houve um ataque coordenado para derrubar a terra. O mais provável, porém, é que a psicologia que era aliada do sistema tenha se voltado contra ele. Pela relação entre as duas moedas, a luna tinha de absorver toda a volatilidade da terra. Como o algoritmo permitia a cunhagem de lunas sempre que a terra estivesse abaixo de US$ 1, a oferta aumentou a tal ponto que o incentivo se tornou desconfiança.
No dia 10 de maio, havia 350 milhões de lunas. Poucos dias depois, eram 6,5 trilhões. O espírito de manada que tanto beneficiou as criptomoedas (“está todo mundo comprando, não posso perder a oportunidade”) mudou de mão (“está todo mundo vendendo, é melhor eu me desfazer antes que o preço vá a zero”).
Esse raciocínio efetivamente levou a Luna ao poço. A luna perdeu 97% de seu valor. A terra acompanhou a desvalorização. Primeiro, caiu a 29 centavos de dólar. Em seguida, a 23. Em junho, valia US$ 0,10.
Pode-se dizer que o sistema atingiu a estabilidade da morte. Seus criadores, no entanto, ainda têm esperança de revivê-lo, criando uma nova terra e uma nova luna, que mais para frente redimiriam a terra “clássica” e a luna “clássica”. Por enquanto, não há muita gente apostando no seu sucesso.
O colapso da terra contaminou todo o mercado e acirrou os temores em relação às criptomoedas — a todas as criptomoedas. Talvez tenha sido um medo infundado. Afinal, outra stablecoin, a tether, a mais popular delas, resistiu razoavelmente bem a uma onda de retiradas semelhante à da terra. Caiu a US$ 0,95, mas recuperou-se em seguida, pela venda de ativos.
A diferença é esta: a tether tem lastro em uma cesta de ativos. Mesmo assim, há problemas. A empresa que administra a criptomoeda, baseada em Hong Kong, não divulga os ativos que compõem sua cesta, alegando que esse é o seu “molho secreto”. No ano passado, ela foi multada em US$ 41 milhões por fazer “declarações falsas ou omissas sobre suas reservas”. As autoridades de valores mobiliários dos Estados Unidos fizeram uma checagem e concluíram que a tether tinha reservas suficientes para lastrear as criptomoedas apenas em 28% dos dias num período de 26 meses entre 2016 e 2018.
Porém, outras stablecoins se mantiveram mais firmes, reforçando o argumento de que a desvalorização pode levar a uma necessária purgação do mercado. A USDC, uma moeda lastreada em dólares e títulos do Tesouro americano, que publica relatórios financeiros auditados todo mês, até ficou mais popular. Enquanto o número de tethers caiu 7% no último mês, o número de USDCs subiu 4%.
Mesmo a DAI, cujo lastro é feito em outras criptomoedas cujas trocas são ordenadas por algoritmo, tem gozado de confiança. Isso porque tem um razoável grau de transparência, as criptomoedas em que se baseia não estão sob seu controle — e mantém reservas 50% acima de suas necessidades.
Com os investidores mais arredios, o mercado sofreu uma nova chacoalhada em junho, quando o governo americano anunciou uma taxa de inflação ainda alta, suscitando temores de nova alta de juros por parte do Fed (o banco central do país).
Ante novas retiradas de investimentos, outro agente do mercado fraquejou. A Celsius, uma plataforma que guarda criptomoedas e paga juros aos depositantes, não aguentou o ritmo de saques e suspendeu suas operações. “Dadas as extremas condições do mercado, estamos anunciando hoje que a Celsius está interrompendo todas as retiradas, trocas e transferências entre contas”, afirmou a empresa em seu site no dia 12 de junho, um domingo. “Estamos tomando essa medida para colocar a Celsius numa posição melhor para honrar, com o tempo, suas obrigações de retiradas.”
A medida elevou o grau de susto com o mercado como um todo. O bitcoin caiu mais 13% na segunda-feira, para seu valor mais baixo desde 2020.
Enquanto houve euforia econômica nos Estados Unidos, as criptomoedas ganharam imenso valor e todos os sistemas pareciam funcionar. A maior corretora de criptomoedas do país, Coinbase, ainda se gabava de que o ativo é mais resistente à inflação do que o dólar e outras moedas tradicionais. Isso se revelou falso.
E há, ainda, um problema adicional, mais claro nas crises. A grande vantagem de um sistema financeiro descentralizado (mais liberdade, mais agilidade, menos taxas) mostra um lado bastante desvantajoso: “no caso da luna, não há nem com quem reclamar oficialmente”, diz Ikeda.
“Como apontaram diversos analistas, as stablecoins podem parecer futuristas e alta tecnologia, mas se parecem muito com os bancos do século 19, especialmente os bancos americanos da era de “bancos livres” antes da Guerra Civil, quando o papel-moeda era emitido por instituições não reguladas. Muitas delas faliram, às vezes devido a fraudes, mas principalmente por investimentos ruins”, escreveu Paul Krugman.
Embora tenha resistido a uma onda de retiradas em maio, a tether representa o maior perigo imediato para o mercado de criptomoedas. Com 70 bilhões de moedas, mais de três vezes o número que a terra tinha antes do colapso, a tether é a principal stablecoin. É sobre ela que recaem as maiores dúvidas de investidores e atenção de reguladores.
“Ela é o sangue do ecossistema das criptomoedas”, disse Hilary Allen, uma especialista em finanças da American University, ao New York Times. “Se ela implodir, a casa toda cai.”
Mesmo que isso aconteça, não deverá ser o fim das criptomoedas. “Cada um dos quatro tipos de criptomoeda é afetado de uma forma diferente pelo cenário econômico”, diz Ikeda, do Insper. “Os tokens de projetos funcionam como um mercado acionário, só que sem regulação”, diz. “Se as pessoas estão menos dispostas a investir em projetos, seja por IPO ou ICO, isso afeta o poder de captação.” Mas o mecanismo em si continua válido.
Da mesma forma, as NFTs “têm um ambiente próprio, com sistema próprio de avaliação”. As moedas de rede têm suas funções específicas. “E mesmo a stablecoins, quando têm lastro real, não flutuam (muito).”
Uma análise nessa mesma linha é feita por Gillian Tett, a jornalista do Financial Times que ficou famosa por prever a crise financeira que explodiria em 2008. “Há muitas dúvidas sobre o mercado, mas se você acredita, como eu, que a revolução das cripto tem uma essência de ideia potencialmente valiosas em torno da tecnologia blockchain, é tolice querer um banimento total.”
Assim como parte da indústria, ela prevê um expurgo dos maus atores e uma correção de rota. E elabora uma lista de cinco itens para os investidores checarem se o mercado se tornará mais saudável:
#1. Verificar se a linguagem se torna menos confusa. Stablecoins, por exemplo, se refere a diversos tipos de sistemas para manter a paridade com alguma moeda. É preciso estabelecer melhor as diferenças.
#2. Os reguladores precisam ter alguma supervisão sobre criptomoedas que atuam como derivativos ou minibancos.
#3. Uma vez envolvidos, os reguladores devem exigir que os emissores de moeda forneçam relatórios detalhados e auditados sobre seus ativos (algo que a tether não faz).
#4. As bolsas de criptomoedas deveriam ter padrões básicos para listar as criptomoedas (o que serviria como alguma amostra de sua seriedade).
#5. É preciso haver mais clareza em torno da custódia das criptomoedas, dado que as bolsas agem não só como plataformas de negócios, mas frequentemente como guardiãs dos ativos também.