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Ícone da tecnologia nos anos 1990, a Intel busca voltar aos bons tempos

A crise mundial de chips é uma oportunidade para a pioneira do setor, há anos em decadência. A estratégia para salvá-la inclui decisões corajosas, avanços técnicos e uma bela ajuda do governo americano

A crise mundial de chips é uma oportunidade para a pioneira do setor, há anos em decadência. A estratégia para salvá-la inclui decisões corajosas, avanços técnicos e uma bela ajuda do governo americano

Patrick Gelsinger, presidente da Intel
Patrick Gelsinger, presidente da Intel: ele conseguirá seguir os passos de Steve Jobs? (Foto: Intel Corporation)

 

David Cohen

 

A tarefa de reerguer a fabricante de microprocessadores Intel — uma empresa que foi um dos ícones da tecnologia nos anos 1990 — é tão grandiosa que seu novo executivo-chefe, o americano Patrick Gelsinger, costuma pedir um auxílio divino. Em suas orações, de acordo com entrevistas que deu ao jornal The New York Times, ele costuma dizer: “Deus, eu preciso que você compareça hoje comigo, porque o trabalho é muito maior do que posso fazer sozinho”.

Se Deus vai ajudá-lo, não há como saber. Mas o governo americano já está se movimentando para dar um generoso auxílio. No último dia 4 de fevereiro, 11 dias antes de Gelsinger completar um ano no cargo, a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos aprovou um pacote de 257 bilhões de dólares para aumentar a capacidade nacional de fabricar semicondutores e fazer frente à concorrência chinesa.

O pacote inclui subsídios de 52 bilhões de dólares para a fabricação de chips, 45 bilhões para melhorar as cadeias de fornecimento de itens críticos e 160 bilhões para pesquisa e inovação. Nenhuma empresa está mais bem posicionada do que a Intel para aproveitar essa bolada.

Foi uma vitória pessoal para Gelsinger. Em setembro do ano passado, ele viajou a Washington para fazer lobby com o comitê bipartidário da Câmara que avaliava a proposta. Um dos representantes afirmou que suas explicações foram essenciais para que o comitê recomendasse a aprovação do pacote.

Em junho, o Senado já havia aprovado uma proposta de valor semelhante, com diferenças na maneira como o dinheiro de pesquisas científicas pode ser usado. Nas próximas semanas, as duas casas do Congresso deverão negociar a unificação de seus projetos.

A ajuda do governo é fundamental para os planos da Intel, já que o mercado financeiro, pelo menos neste momento, não está lá muito animado a apostar na empresa. Ao contrário.

Duas semanas depois de saborear a vitória no Congresso, Gelsinger fez uma apresentação de três horas a investidores, explicando como pretende revigorar a companhia. “O trem da virada da Intel está saindo da estação, e eu espero que vocês embarquem”, disse. “É uma meta ousada. Mas estou confiante de que os melhores dias da Intel estão à nossa frente.” Os investidores não foram muito receptivos. No próprio dia da apresentação, as ações da companhia caíram 5,5%.

 

As ondas perdidas

Fazer com que os melhores dias da Intel estejam no futuro é uma baita missão. Porque a Intel tem um passado não apenas glorioso, mas legendário. Fundada em 1968 pelos engenheiros Robert Noyce, um dos inventores do circuito integrado de silício, quando era gerente geral da Fairchild Semiconductor, e Gordon Moore, então chefe de pesquisa e desenvolvimento na mesma empresa, a Intel foi uma das principais responsáveis pelo que hoje se conhece como Vale do Silício, na Califórnia.

Sem semicondutores (e o silício é o principal deles), não há microprocessadores; e sem microprocessadores, não há computadores — pelo menos não do modo como os conhecemos hoje. Escolha, portanto, a metáfora que quiser: a Intel era a alma, ou o coração, ou o sangue da nascente indústria da informática.

A partir de 1991, a empresa inovou com uma jogada de marketing espetacular. Ajudou a pagar pela publicidade das companhias que vendiam PCs e notebooks. A única exigência era que colocassem um selinho em seus equipamentos, dizendo que eles eram alimentados pelos microprocessadores da Intel. Nascia o slogan “Intel inside”, que alavancou a percepção da companhia. Na década de ouro dos microcomputadores, o valor das ações da Intel foi multiplicado por 44, entre janeiro de 1991 e março de 2000 (antes do estouro da bolha da internet, quando as ações das empresas de tecnologia despencaram).

O problema é que a Intel até hoje não conseguiu superar o valor de mercado que tinha na época, nem mesmo em valor nominal, sem contar a inflação de lá para cá. Basicamente, isso aconteceu porque ela perdeu duas ondas.

Primeira, a do celular. Depois de convencer a Apple a usar os chips da Intel em sua linha de computadores Macintosh, em 2005, seu então presidente, Paul Otellini, teve a chance de colocá-los também no iPhone, que surgiu em 2007. Jogou-a fora. Conforme ele mesmo disse em entrevista à revista The Atlantic, em 2013, quando estava deixando o cargo, o preço que a Apple queria pagar era baixo demais para que a Intel tivesse algum lucro.

Havia também alguma dificuldade técnica. Os chips da Intel, vocacionados para desempenho cada vez maior, não davam tanta importância quanto alguns concorrentes ao consumo de energia — algo crucial numa pequena máquina que não podia esquentar muito.

O motivo principal, porém, foi a visão de curto prazo. Não é que Otellini não tenha feito sucesso. Durante os oito anos de sua gestão, a Intel teve uma receita maior do que nos 37 anos anteriores, desde sua fundação. Concentrado em eficiência e maximização de lucro, no entanto, deixou de seguir à risca o mandamento que seu antecessor, Andy Grove, estabeleceu em seu famoso livro: só os paranoicos sobrevivem.

À época, ganhando muito dinheiro com seu mercado tradicional, a Intel pode ter decidido que não valia a pena trocar o certo pelo duvidoso e desviar recursos do mercado de computadores para desenvolver chips diferentes para smartphones. Mas em pouco tempo o duvidoso tomou o lugar do certo: o mercado de celulares consome hoje bilhões de microprocessadores, uma ordem de grandeza a mais que as centenas de milhões dos computadores.

A segunda onda que a Intel perdeu foi a da computação em nuvem. “A Amazon Web Services cresceu 37% em relação ao ano anterior”, disse Simon Erickson, fundador e executivo-chefe da empresa de análise de mercado 7investing, em um podcast em agosto (seis meses depois, o crescimento sobre o ano anterior já tinha subido para 40%). “Quando você vê um número assim tão grande, para o maior concorrente do setor, começa a pensar: como a Amazon vai satisfazer essa demanda?”

É isso que explica o crescimento anual de 68% na venda de chips da também americana AMD, conforme seu relatório divulgado no início de fevereiro, para 16,4 bilhões de dólares. A Nvidia, outra concorrente da Intel, também divulgou seus números em fevereiro: um crescimento de anual 61%, para 12,4 bilhões de dólares.

A Intel, muito maior que as duas concorrentes, teve receita de 79 bilhões de dólares no ano passado, segundo o relatório divulgado em janeiro. Mas seu crescimento foi de apenas 1% em relação a 2020…

 

Um paralelo com Steve Jobs?

Em boa parte da história da Intel, Gelsinger estava lá. Ele entrou na empresa em outubro de 1979, com apenas 18 anos, num cargo técnico, enquanto cursava a faculdade de engenharia. Chamou a atenção de Andy Grove, que virou seu mentor por quase três décadas. Liderou uma equipe de cem pessoas que desenvolveu o microprocessador 80486 (o primeiro chip com mais de 1 milhão de transistores), tornou-se titular de oito patentes, virou o mais novo vice-presidente da empresa, em 1992, e foi o primeiro funcionário da Intel a ocupar o cargo de chefe de tecnologia (CTO, na sigla em inglês), em 2001.

Quando Otellini se tornou executivo-chefe, em 2005, a estrela de Gelsinger murchou. Segundo contou ao The New York Times, Otellini o forçou a sair. Em 2009, ele aceitou uma oferta para se tornar chefe de operações da EMC, uma fabricante de placas de memória e outros equipamentos de armazenamento de dados (comprada pela Dell em 2015), e depois executivo-chefe da VMware, uma empresa de software controlada pela EMC.

Coincidindo com a época em que Gelsinger não estava mais na empresa, a Intel começou a trilhar o caminho pelo qual passaram a IBM e a GE, em épocas diferentes: em algum ponto, as gigantes deram um mau passo e se tornaram “vacas leiteiras”, designação para empresas que são grandes e têm um faturamento alto — porém declinante, porque deixaram de estar na ponta da inovação.

Uma certa letargia na Intel permitiu que as rivais Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC) e Samsung Electronics tomassem a liderança no mercado de chips entre 2015 e 2019.

Reverter um quadro desses não é fácil. A IBM conseguiu, chamando um “estrangeiro” (alguém que não havia sido formado ali), Louis Gerstner, pela primeira vez em sua história.

Não é o caso de Gelsinger. Guardadas as devidas proporções, sua história tem mais a ver com a de Steve Jobs: expulso da empresa que havia criado, retornou para revigorar a área de computadores, entrar no ramo da música e em seguida criar os tablets e revolucionar o mercado dos smartphones, o que a levou ao posto de empresa mais valiosa do planeta.

Gelsinger está longe de ter essa estatura, é claro. Mas ele foi treinado pelo lendário Andy Grove. Conviveu de perto com Gordon Moore, famoso por ter cunhado a Lei de Moore —  não uma lei, mas a observação empírica de que o número de transistores em um circuito integrado dobra a cada ano (dez anos depois, em 1975, corrigiu a previsão para o dobro a cada dois anos). E seu plano faz sentido — talvez não tenha empolgado os investidores justamente porque faz sentido.

Fábrica da Intel em Oregon
Fábrica da Intel em Hillsboro, no estado do Oregon (Foto: Walden Kirsch/Intel Corporation)

 

A aposta nas fábricas…

Com a crise da Intel se aprofundando, Gelsinger foi sondado para voltar à empresa, primeiro para o conselho de administração. Quando ele aceitou, elevaram a aposta, convidando-o para o cargo de executivo-chefe. “Aquilo arruinou o meu Natal”, disse ao The New York Times. Cristão praticante, ao ponto de doar até metade do que ganha para causas filantrópicas, Gelsinger acabou decidindo, junto com sua mulher, que neste cargo ele poderia promover o uso de tecnologia para bons propósitos, além de servir como um modelo de executivo cristão.

Antes de assumir, elaborou uma estratégia — que inclui o fortalecimento das fábricas de chips — e insistiu que os nove diretores do conselho de administração apoiassem sua indicação e o seu plano de recuperação.

O curioso da estratégia da Intel é que ela aposta no que muitos analistas consideram ter sido um de seus grandes erros: manter as operações fabris (a fundição de chips). A Intel sempre projetou seus microprocessadores e os construiu. A maior parte de seus concorrentes faz uma coisa ou outra.

TSMC e Samsung fazem chips; a AMD e a Arm, britânica, projetam circuitos e terceirizam a produção.

Hoje, a TSMC faz chips para centenas de outras companhias. Ela é responsável, de acordo com o site de análises de mercado Visual Capitalist, por 54% da produção mundial. A Samsung, coreana, responde por outros 17%. A seguir vêm a UMC, também de Taiwan, e a americana Global Foundries, cada uma com 7% de participação. Para os chips mais avançados (e menores, com 5 nanômetros), que vão nos smartphones de ponta, o mercado é praticamente inteiro dominado por TSMC e (a uma certa distância) Samsung.

A Intel permaneceu focada em computadores, fazendo chips para seus próprios processadores, e até este mercado ela chegou a perder. Num vídeo neste ano, Gelsinger comemorou a retomada da dianteira: “A AMD no espelho retrovisor no mercado consumidor, e eles nunca mais vão estar no vidro dianteiro; nós estamos liderando o mercado.”

Muitos críticos apontaram que, ao estabelecer uma linha de montagem focada no desenho de seus próprios microprocessadores, a Intel perde flexibilidade em um setor extremamente diverso e imprevisível. Nos últimos tempos cresciam os rumores de que ela separaria sua divisão fabril, tornando-a independente. Se havia este tipo de plano, Gelsinger o abortou. Ele quer fortalecer a capacidade fabril da Intel e emular a estratégia da TSMC: fabricar chips para terceiros também.

 

…agora faz sentido

De fato, a falta de flexibilidade pesou contra a Intel. Mas a situação mudou. A demanda mundial por semicondutores cresceu 17% entre 2019 e 2021, sem um aumento correspondente na oferta. As fabricantes já estão trabalhando praticamente em seu limite, de acordo com um estudo encomendado pelo Departamento do Comércio dos Estados Unidos. O mesmo estudo concluiu que o país está sofrendo uma falta “alarmante” de semicondutores, que ameaça a produção industrial e tem reflexos na persistente inflação americana.

Se a situação já era complicada, as interrupções de produção devidas à pandemia levaram a uma confusão nas cadeias de fornecimento. Com isso, os preços dos semicondutores dispararam. A falta de chips levou à falta de componentes para vários produtos, incluindo os carros. Os preços dos carros usados subiram em média 37% nos Estados Unidos no ano passado, um importante fator no descontrole da inflação.

A crise não tende a melhorar tão cedo, porque o mundo caminha rumo a tecnologias que necessitam de um poder computacional ainda maior. A conexão 5G para a internet, além de aumentar o fluxo de dados (e, portanto, demandar mais dos servidores) incentiva a conexão de objetos (a internet das coisas), que precisam de chips; os veículos elétricos usam mais microprocessadores.

A pandemia também fez refluir a confiança nas cadeias de fornecimento globais. No caso dos chips, a situação ainda é mais delicada porque a principal fábrica do mundo fica em Taiwan, um país-ilha que a China reivindica como seu.

 

Mas os investidores não embarcaram

Neste novo cenário, a capacidade fabril da Intel torna-se uma vantagem, não um peso. E Gelsinger não está sendo tímido em implementar seu plano. Em março do ano passado, apresentou um plano de 20 bilhões de dólares para acrescentar duas fábricas de chips ao complexo da Intel perto de Phoenix, no Arizona. Em janeiro, anunciou outro investimento de 20 bilhões de dólares em uma fábrica de chips, esta em Ohio, no meio oeste americano. Em fevereiro, anunciou a compra da Tower Semiconductor, por 5,4 bilhões de dólares, uma empresa que fabrica chips em quatro países.

Cada anúncio desses foi mal recebido pelos investidores. Basicamente, porque os investimentos reduzem os lucros no curto prazo. O próprio Gelsinger estabeleceu um cronograma, em sua apresentação aos investidores em fevereiro. Sua estimativa é que em quatro anos a Intel terá deixado para trás competidores que não têm fábrica (AMD e Nvidia, principalmente), bem como a líder em fundição, TSMC. No biênio 2025-2026, terá um crescimento anual entre 10% e 12%. Para chegar lá, no entanto, terá que investir, e investir muito. Este ano, ela deverá crescer apenas 1,7%, com fluxo de caixa negativo em algo entre 1 bilhão e 2 bilhões de dólares.

Embora tudo isso faça sentido, boa parte dos investidores não está disposta a embarcar no trem da Intel. Não agora, quando os custos são altos e a estação da lucratividade está tão longe. Para eles, faz mais sentido esperar.

Esse impasse poderia ser fatal para os planos de Gelsinger. Mas a Intel é tão grande que tem condições de arcar com parte do financiamento. E o governo americano parece disposto a bancar outra parte.

Chip Core de 12ª geração da Intel
Chip Core de 12ª geração da Intel: mercado promissor (Foto: Intel Corporation)

 

A qualidade pode salvar

Um outro pedaço da estratégia de Gelsinger já estava em curso antes de sua volta à empresa. Trata-se de ultrapassar a Lei de Moore, com um ousado cronograma de lançamentos de chips.

“Quando dissemos que lançaremos cinco desenhos de semicondutores em quatro anos, uma parte de vocês disse: ‘Vocês ficaram loucos? cada desenho não leva dois anos para ser desenvolvido?’. E nós estamos cumprindo o cronograma, ou à frente do cronograma”, afirmou Gelsinger em seu encontro com investidores.

Ao que parece, os avanços na arquitetura dos chips são impressionantes a ponto de serem capazes de “virar o jogo” em relação a concorrentes.

Como disse Cody Willard, um investidor e gestor de fundos que tem um programa sobre investimentos na Fox Business Network, em artigo no site da revista Forbes, “todos os indícios são de que o mais novo circuito integrado da Intel, o Alder Lake, é melhor e mais barato que os concorrentes, e isso é o tipo de coisa capaz de alterar margens de lucro, taxas de crescimento e, no final das contas, valor das ações”.

Outra promessa é o circuito integrado Sapphire Rapids, que segundo a Intel será “o maior salto de capacidade de CPU em mais de uma década”.

Ainda assim, o jogo não tem nada de fácil. Primeiro, os concorrentes não deverão ficar parados. Em segundo lugar, no enorme e crescente mercado da nuvem, Amazon, Google e Microsoft desenvolvem seus próprios projetos de microprocessadores. Mesmo que alguns entreguem a fabricação para a Intel, essa dinâmica reduz em muito as receitas e as margens de lucro da empresa.

O que pesa em prol da Intel é que o mercado é muito promissor. “A indústria de semicondutores cruzou a linha do meio trilhão de dólares em vendas no ano passado, e deve continuar crescendo muito pela próxima década ou duas”, diz Willard. Se as coisas não derem muito certo, afirma ele, o preço da ação pode cair uns 20%. “Mas o potencial de crescimento pode chegar a 500% ou 1.000% nos próximos dez anos, se a companhia conseguir ganhar participação de mercado, se vencer uma concorrência de chips para carros automáticos e, especialmente, se o negócio das fábricas der certo.”

Neste caso, Gelsinger poderia se incluir no grupo de salvadores de grandes empresas — ao lado de Gerstner e Steve Jobs, entre outros poucos.

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