A colaboradora Carla Carbone, que perdeu a audição quando já era adulta, ressalta a importância de procurar entender as necessidades de outras pessoas para uma boa convivência na sociedade
Há algum tempo, a colaboradora Carla Carbone, 36 anos, analista de projetos na área de cursos customizados do Insper, onde trabalha desde 2016, foi tirar um certificado de vacinação em um posto da Anvisa que funciona no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Como Carla tem deficiência auditiva e não havia um painel luminoso no local, ela pediu permissão a uma atendente para aguardar dentro da sala, onde pudesse ouvir quando chegasse a sua vez e fosse chamada pelo nome.
Ao saber da deficiência de Carla, a funcionária prontamente a conduziu ao guichê de atendimento, passando-a na frente de outras pessoas que aguardavam no local. “Uma mulher ao meu lado reclamou, pois não entendeu por que eu estava passando na frente”, diz Carla. “Ela ficou brava, e com razão. Eu não queria nem precisava passar na frente de ninguém. Só precisava de um anúncio que me mostrasse quando eu fosse chamada.”
Situações desse tipo mostram os obstáculos enfrentados no dia a dia por pessoas surdas ou com deficiência auditiva. No Brasil, segundo dados de um levantamento do Instituto Locomotiva, há 10,7 milhões de pessoas com algum grau de deficiência auditiva. Desse total, dois terços relataram dificuldades para realizar atividades do cotidiano por falta de acessibilidade.
Carla lembra que, embora não sejam comuns, existem lugares com infraestrutura adequada para receber pessoas com diferentes necessidades. Em um hospital em São Paulo onde ela faz exames de rotina, por exemplo, há na recepção um painel que apita, pisca e indica a mesa em que o paciente vai ser atendido. “Existe uma sinalização clara de todas as informações necessárias. Ao chegar ao local, eu não preciso falar que tenho deficiência auditiva para ser atendida.”
Segundo Carla, sua deficiência auditiva é genética e começou a se manifestar quando tinha cerca de 28 anos. Nessa época, ela já era formada em História na Universidade de São Paulo e morava no México, onde dava aulas de português para estrangeiros. “Percebi que comecei a ter dificuldade de ouvir meus alunos e fui fazer um exame. O resultado mostrou que eu já estava com uma perda moderada num dos ouvidos e leve noutro, sendo indicado o uso de aparelho auditivo.”
O já citado estudo do Instituto Locomotiva mostra que, do total de pessoas pesquisadas, 87% não usam aparelhos auditivos, que são caros e inacessíveis para a maioria da população — um dispositivo de qualidade pode custar de 3.000 a 15.000 reais. No Brasil, quem tem perda de audição pode solicitar um aparelho auditivo gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde, mas, em geral, vai receber um dispositivo básico, sem as funcionalidades e os recursos tecnológicos para ter a melhor experiência.
Carla contou com a ajuda do pai para comprar um aparelho de boa qualidade. Ainda assim, a adaptação não foi fácil. “Usar o aparelho não é como usar óculos. Ele é bastante incômodo, porque amplifica todos os ruídos.” Como Carla ouve melhor os sons graves, seu aparelho está regulado para aumentar os agudos. Mas na mistura de ruídos do ambiente, nem sempre é possível distinguir os sons. “Às vezes estou conversando com uma pessoa e não ouço o que ela está falando, apenas os ruídos externos.”
Quando chega em casa, Carla tira o aparelho para descansar a audição. “Escutar exige um esforço, porque não posso estar só com os ouvidos atentos. Eu tenho que estar também com os olhos atentos, me concentrar no que a pessoa está falando”, diz Carla, que faz também a leitura labial e gostaria de aprender Libras, a Língua Brasileira de Sinais. Esse é um plano no longo prazo, pois no momento sua prioridade, por causa do trabalho, é dominar o inglês — ela é fluente em espanhol e conhece a língua indígena náhuatl, que estudou para ler documentos em suas pesquisas sobre a história do México.
Carla dá algumas dicas a quem tem dúvidas sobre como conversar com uma pessoa com deficiência auditiva. Caso a pessoa esteja de costas, toque levemente no seu braço ou no ombro para chamar sua atenção. Fique de frente para a pessoa e fale pausadamente, em alto e bom som — sem gritar —, enunciado todas as palavras de forma completa. E, de preferência, escolha um ambiente claro e com pouco ruído para manter a conversa.
No princípio, Carla achava que seria um incômodo alguém ter que dar essa atenção ao falar com uma pessoa com deficiência auditiva. Hoje ela entende que esse é um cuidado que todo mundo deveria adotar — não somente em relação a pessoas com deficiência auditiva, mas com qualquer pessoa. “Acho que muitos problemas seriam evitados se cuidássemos melhor da nossa comunicação e procurássemos entender as necessidades de outras pessoas. Todo mundo tem suas necessidades, e não apenas as pessoas com deficiência”, diz Carla.
Ela cita um texto do psicanalista, educador e escritor mineiro Rubem Alves, chamado “Escutatória”, que conheceu ao participar de um curso oferecido pelo Insper. O texto fala justamente sobre a importância do silêncio para não apenas escutar, mas para entender o que as outras pessoas falam. O texto começa assim: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil”.