A multa multimilionária aplicada a três redes de farmácias nos Estados Unidos mostra o quão essencial se tornou a moralidade nos negócios
David Cohen
O argumento da defesa parecia convincente: “As farmácias entregam medicamentos prescritos por médicos licenciados que receitam substâncias legais, aprovadas pelo órgão estatal de controle de drogas e alimentos, para tratar de pacientes reais que precisam deles”, disse o porta-voz da rede de farmácias CVS. Ainda assim, as três maiores redes de farmácias dos Estados Unidos — a própria CVS, a Walgreens e o Walmart — foram sentenciadas em agosto a pagar 650 milhões de dólares a dois condados do estado de Ohio, por terem contribuído para a epidemia de uso de opioides no país.
Foi a primeira sentença do tipo contra as farmácias. A crise de abuso de opioides gerou outros 3.300 processos em cerca de 20 mil cidades americanas, contra fabricantes, distribuidores e farmácias. Com indenizações dessa ordem de valor e um número tão grande de casos, não é de espantar que as empresas estejam preferindo fazer acordos extrajudiciais.
As principais distribuidoras de remédios (McKesson, Cardinal Health e AmerisourceBergen), por exemplo, fizeram um acordo com a maioria dos estados e localidades para pagar 21 bilhões de dólares em compensações ao longo dos próximos 18 anos. O acordo, finalizado em julho de 2021, incluiu também o laboratório Janssen, da Johnson & Johnson, que vai desembolsar outros 5 bilhões de dólares, a maior parte em programas para prevenção e tratamento do vício em drogas.
Até a consultoria McKinsey optou por fazer acordos. Em fevereiro de 2021, concordou em pagar 596 milhões de dólares para se livrar das acusações de ter orientado o laboratório Purdue Pharma na adoção de estratégias para aumentar as vendas do remédio OxyContin, um dos principais protagonistas da epidemia de viciados que levou a mais de 450 mil mortes nas últimas duas décadas.
Não era claro, no entanto, que as farmácias também seriam arrastadas para o rol de culpados por uma crise que vem desde o final dos anos 1990, quando os laboratórios farmacêuticos asseguraram à comunidade médica que os analgésicos à base de opioides não ofereciam risco de viciar os pacientes, levando os médicos a receitá-los com muito mais frequência.
O aumento no número de receitas fez explodir os abusos, inclusive com uma “indústria de pílulas”, que fornece receitas e drogas (lícitas e ilícitas) a qualquer um. Em 2016, com mais de 42 mil mortes por overdose de opioides, sendo 40% delas com remédios obtidos com receita médica, o governo dos Estados Unidos classificou o tema como uma crise nacional, que depois passou a ser considerada uma “epidemia de opioides”.
Com a pandemia e o isolamento social, o número de casos disparou. Um relatório do Congresso americano lançado no final de setembro calculou os custos da epidemia em 1,47 trilhão de dólares só em 2020, levando em consideração a perda de produtividade, a perda de trabalhadores, os custos médicos e outros custos secundários.
“É o equivalente à queda de um jato 737 por dia, sem sobreviventes”, avaliou o deputado democrata David Trone, um dos responsáveis pelo relatório. Em 2021, a situação piorou ainda mais: as mortes relacionadas a opioides representaram 75% das 107 mil fatalidades por drogas nos Estados Unidos, de acordo com o Centro para Controle e Prevenção de Doenças do país.
As farmácias acreditam, porém, que não podem ser responsabilizadas pela crise. “Em vez de focar nas causas reais da epidemia de opioides, como os médicos responsáveis por ‘indústrias de pílulas’, o mercado de drogas ilegais e a incompetência de alguns reguladores, os advogados da acusação querem que as farmácias duvidem dos médicos e de suas receitas de um modo não recomendado pela lei, no que diversas autoridades acreditam ser uma interferência indevida na relação médico-paciente”, afirmou Randy Hargrove, um porta-voz do Walmart.
Em suma, seu argumento é que elas cumprem estritamente seu serviço (de intermediar a entrega de remédios autorizados por lei) e não podem ser cobradas por nada a mais do que ele.
Esta posição, como dito acima, podia parecer convincente — mas num passado que está se tornando longínquo. Até a década de 1970, a noção de que uma empresa devia cuidar apenas do seu negócio, nos limites bem definidos de suas ações, era majoritário.
Desde o final dos anos 1960, porém, movimentos de contestação (em especial à Guerra do Vietnã) elevaram as demandas da sociedade também em relação às empresas. Elas levaram o governo, no início dos anos 70, a criar órgãos de defesa do consumidor, de proteção ambiental e de igualdade de oportunidades no trabalho.
Mas foi com a intensificação da globalização, nos anos 1990, que a responsabilidade social se tornou ubíqua no mundo corporativo. Atuando em diferentes países, com regulações desiguais, as empresas multinacionais logo ficaram alertas para os riscos reputacionais em um mundo com muito mais visibilidade. Um caso que ajudou a deflagrar essa preocupação foi o da Nike, acusada em 1991 de subcontratar fábricas na Indonésia e em outros países em as condições de trabalho eram abusivas — salários irrisórios, longas jornadas, trabalho infantil etc.
“Nos últimos anos, a responsabilidade social evoluiu para o que a gente hoje chama de ESG, as iniciais em inglês de meio ambiente, sociedade e governança”, diz Priscila Claro, professora de Estratégia, Sustentabilidade e Negócios Sociais do Insper. “Quando a gente pensa em ESG, está falando da responsabilidade econômica, depois a legal e, no terceiro nível, a responsabilidade ética.” Quer dizer, a empresa precisa funcionar a contento (gerar lucro, ter fluxo de caixa para pagar contas), precisa cumprir as leis e regulamentos e, além disso, precisa ser uma boa cidadã.
“Este terceiro nível tem a ver com as teorias da moralidade, com buscar se comportar de uma forma que vai além do legal”, diz Priscila. “Para os meus alunos, costumo dar o exemplo da aprovação para mineração em reservas indígenas, um projeto que o governo estimula e que este ano entrou em regime de urgência no Congresso. Em resposta, a mineradora Vale anunciou que não iria participar de explorações nessas áreas por uma questão moral.”
O caso das farmácias na crise de opioides nos Estados Unidos é semelhante, segundo Priscila. “Por mais que as empresas tenham dito que prescrição médica não pode ser questionada, elas estão no mercado das sin stocks (ações do pecado), que incluem jogo, álcool e drogas. Sua responsabilidade moral, portanto, é ainda maior.”
“Não faz sentido que as empresas não tenham entendido, lá atrás, que isso era um risco para a sua reputação e para o seu negócio”, afirma ela. “Quando trabalhamos com alguma empresa no desenho da estratégia de sustentabilidade, sempre alertamos para levar em conta os impactos negativos do produto ou do processo de produção que recaiam sobre qualquer um dos públicos interessados (os stakeholders).”
Empresas como a Philip Morris ou a Ambev, que lidam respectivamente com cigarros e bebidas alcoólicas, explicitam nos seus relatórios a investidores estratégias para lidar com essas externalidades. Pode ser lançar produtos com menor teor de substâncias viciantes ou medidas compensatórias. A Ambev, por exemplo, tem um grande investimento em propagandas pelo consumo moderado de seus produtos e em ações de prevenção de acidentes de trânsito.
“Se eu estivesse sendo consultada para algum caso relacionado a opioides, por uma questão até de preservar o valor para o acionista, recomendaria um tanto mais de cautela”, afirma Priscila. Não é algo assim tão complicado. No Brasil, por exemplo, as farmácias retêm as receitas de alguns dos remédios e recolhem dados do comprador. No Sistema Único de Saúde, os responsáveis pela dispensa de medicamentos controlados sabem exatamente a data em que o paciente comprou sua droga… e quando ele poderá ter acesso a ela novamente.
Em vez de adotar normas desse tipo, de acordo com o juiz Dan A. Polster, que cuidou do caso, as redes de farmácias venderam as drogas “sem controles e procedimentos efetivos” para evitar que as pílulas fossem mal usadas ou revendidas. Por isso ele considerou que elas deveriam arcar com parte dos custos com que os dois condados terão de arcar para se recuperar da epidemia de opioides. O custo total foi estimado em 3,3 bilhões de dólares, ou, como disse Mark Lanier, o advogado encarregado das acusações, “o Sol, a Lua e as estrelas”. Às redes de farmácias coube responder “pela Lua”, segundo Lanier, com a multa de 650,5 milhões de dólares.
Esse dinheiro deverá ser desembolsado ao longo de 15 anos. Além disso, as três redes de farmácias foram condenadas a adotar regras mais estritas de monitoramento e reporte das compras de opioides, incluindo o estabelecimento de linhas telefônicas dedicadas para denúncias de abusos e a formação de comitês de controle interno.
As redes de farmácias eram os últimos elos da grande cadeia de fornecimento de opioides a serem enquadradas na guerra contra a epidemia. Outros grandes distribuidores já fizeram acordos ou faliram. Os laboratórios também entraram em acordos locais e nacionais.
Nos últimos anos também foi feita uma grande operação contra os médicos que operavam as “indústrias de pílulas”. Tanto que, em julho, a Suprema Corte americana decidiu conter alguns exageros, estabelecendo que o mero desvio das práticas recomendadas não pode ser mais admitido como evidência de culpa em processo contra médicos. O entendimento foi alcançado por unanimidade dos nove juízes ao examinar os casos de dois médicos condenados a 21 e 25 anos de prisão.
A sentença contra as farmácias é mais um sinal do quanto a sociedade ocidental se afastou da noção de que as empresas podem cuidar apenas de seus negócios diretos, sem se preocupar com os impactos que sua atividade provoca –— em toda a cadeia de fornecimento e consumo.
As três cadeias decidiram pagar para ver se seus argumentos, tão convincentes há umas poucas décadas, ainda valiam. Viram que não valem. E vão ter que pagar.
Duas delas aceitaram a lição. Um mês depois da sentença, no último dia 20 de setembro, a CVS e o Walmart fizeram um acordo num processo parecido, na Virgínia Ocidental. A CVS aceitou pagar 82,5 milhões de dólares e o Walmart vai pagar 65 milhões. A Walgreens, no entanto, recusou o acordo e vai enfrentar o julgamento, previsto para junho de 2023.