O avanço das moedas digitais vai mudar a maneira como realizamos transações financeiras — e os cientistas da computação terão um importante papel nessa transformação
Ao longo da história, o dinheiro passou por várias transformações. Segundo o historiador grego Heródoto, foi Creso, rei da Lídia (na atual Turquia), quem mandou cunhar as primeiras moedas em metal, entre os anos 640 e 630 a.C. Além de servir como meio de troca por outros bens, as moedas tinham um valor intrínseco, pois podiam ser derretidas e usadas, por exemplo, para fabricar armas, ferramentas e outras coisas. Por volta do ano 800 da era cristã, os chineses inventaram o papel-moeda, o que facilitou o transporte de grandes somas de dinheiro de um lugar para outro. Diferentemente das moedas metálicas, as cédulas em papel não tinham um valor em si, mas cumpriam também a função de meio de pagamento. Já no século 20, os americanos deram sua contribuição para tornar o dinheiro ainda mais abstrato, com a invenção do cartão de crédito — o primeiro dinheiro de plástico foi lançado em 1950. E, nos últimos anos, estamos testemunhando uma nova revolução na história do dinheiro: o avanço das moedas digitais.
Uma moeda digital é um ativo que pode ser armazenado ou trocado no ambiente virtual sem existir fisicamente. Para circular no mundo digital, o dinheiro exige altas doses de ciência da computação para garantir a segurança das transações. “No mundo das criptomoedas, você depende de sistemas descentralizados, que não podem ser quebrados ou invadidos por hackers”, diz Fabio de Miranda, coordenador do curso de Ciência da Computação do Insper.
Miranda destaca que a moeda digital é um dinheiro programável. Isso significa que é possível programar que algumas coisas aconteçam de forma automática, sem necessidade de intervenção humana. Por exemplo, uma pessoa pode comprar uma passagem aérea em uma plataforma digital. Se o voo for cancelado por algum motivo, o próprio sistema, usando a tecnologia de blockchain, recebe essa informação e devolve o dinheiro automaticamente, sem que o comprador tenha de ligar para o call center para solicitar o reembolso.
Outro exemplo: quando um consumidor faz uma compra online, vai ser possível programar para que o dinheiro saia de sua conta só no momento em que ele acusar o recebimento da mercadoria conforme as condições contratadas. Ao abastecer o carro com gasolina, o pagamento também pode ser programado de modo a separar automaticamente a parte do valor que cabe à refinaria, à transportadora, ao posto de combustível e aos impostos. Pode-se prever também a integração do dinheiro programável com a internet das coisas. Uma geladeira, por exemplo, poderá emitir automaticamente o pedido de compra de um determinado produto em uma varejista quando o mantimento estiver acabando. O dinheiro programável abre infinitas possibilidade para que as transações financeiras ocorram de uma forma mais inteligente e sem intermediação humana.
Apesar da grade evolução observada nos últimos anos, a ideia de dinheiro digital e programável não é nova. Esse conceito começou a ganhar corpo já nos primórdios da internet comercial, quando apenas uma reduzida parcela da população no mundo tinha acesso à rede de computadores. Uma das primeiras experiências nesse campo foi a E-gold, criada nos Estados Unidos em 1996. A moeda digital era lastreada em ouro e operada pela empresa Gold & Silver Reserve (G&SR), que, no seu auge, em 2006, chegou a ter mais de 5 milhões de clientes e movimentar 2 bilhões de dólares por ano. A E-gold, porém, acabou virando alvo de hackers e de cibercriminosos, que usavam a moeda para lavagem de dinheiro, uma prática facilitada pelo fato de as transações serem feitas de forma anônima. As autoridades regulatórias americanas intervieram na G&SR, e a E-gold chegou ao fim, em 2009. Outras experiências de moedas digitais surgiram nessa época, como a Liberty Reserve e a DigiCash, mas também fracassaram.
Na mesma época, surgiu uma moeda que teve um destino diferente: o bitcoin. Se as outras moedas haviam fracassado por questões regulatórias e técnicas, o bitcoin inovou por ter sido a primeira moeda digital descentralizada — o que significa que não é controlada por nenhum governo, empresa ou indivíduo — e criptograficamente segura. Um artigo descrevendo o bitcoin foi publicado em 2008 por um misterioso Satoshi Nakamoto, pseudônimo de um programador ou grupo de programadores anônimos. Uma versão inicial da moeda foi lançada em 2009.
O que tornou possível a criação do bitcoin e de muitas outras criptomoedas que se seguiram foi a blockchain, uma tecnologia que permite rastrear o envio e o recebimento de alguns tipos de dados pela internet. O nome blockchain vem do fato de os dados serem armazenados em blocos, e cada bloco se conecta ao anterior, formando uma estrutura em cadeia. Com esse sistema, uma pessoa pode adicionar novos blocos a uma cadeia, mas não consegue modificar ou excluir qualquer bloco depois que ele é adicionado à cadeia. Se alguém tentar mudar os dados, todos os participantes serão alertados e saberão quem fez a tentativa.
Com essa tecnologia, o bitcoin evitou um problema denominado “gasto duplo”. Para uma pessoa ter certeza de que o bitcoin que acabou de receber não será gasto novamente pelo remetente em outra transação, seria preciso confiar em alguém que controlasse quem está gastando ou remetendo o quê. Se a moeda tivesse existência física, isso seria fácil de verificar: a moeda sairia da carteira de uma pessoa e entraria no bolso de outra pessoa. Mas como controlar isso em um ambiente virtual? A blockchain resolveu esse problema: cada transação é adicionada a um bloco, que é então anexada ao final de uma cadeia de blocos, e ninguém pode adulterar os blocos anteriores uma vez que tenham sido confirmados.
Uma característica do bitcoin e de outras criptomoedas é a mineração, um processo que tem o objetivo de validar e incluir novas transações na blockchain. Na prática, minerar bitcoins significa resolver problemas matemáticos que exigem grande poder computacional. Quem consegue chegar primeiro à resolução do problema recebe, como recompensa, novos bitcoins. O uso intensivo de computadores na mineração das moedas digitais, no entanto, consome grande quantidade de energia, gerando um impacto ambiental negativo. Segundo uma estimativa do Center for Alternative Finance da Universidade de Cambridge, a mineração de bitcoins consome cerca de 110 terawatts-hora de energia elétrica por ano, ou 0,55% da produção global de eletricidade — o correspondente ao consumo de países como a Holanda e a Suécia. Para ter uma ideia mais clara de quanto isso representa, em 2021, o conjunto de parques eólicos no Brasil não deverá produzir mais do que 70 terawatts-hora de energia. O problema ambiental é agravado pelo fato de a mineração de criptomoedas ser dominada pela China, país que depende da energia de usinas de carvão.
Outra característica do bitcoin é sua oferta limitada, diferentemente das moedas fiduciárias nacionais, que podem ser impressas à vontade pelos bancos centrais (essas moedas são chamadas de “fiduciárias” porque não têm um lastro ou um valor intrínseco; seu valor depende unicamente da fé ou da confiança que as pessoas têm em quem as emitiu). Os criadores do bitcoin limitaram seu número total a 21 milhões de unidades. Atualmente, existem cerca de 18,9 milhões de bitcoins, o que significa que restam pouco mais de 2,1 milhões para ser minerados.
O bitcoin nasceu sem valer um centavo e só ultrapassou a barreira de 1 dólar em 2009. Com a crescente procura nos anos seguintes, sua cotação disparou. No último dia 9 de novembro, cada bitcoin chegou a valer mais de 67 mil dólares, mas atualmente está cotado em 48,5 mil dólares. Seu preço é bastante volátil por ser um mercado ainda relativamente pequeno, que sofre fortes oscilações com qualquer notícia de impacto — em maio deste ano, a moeda caiu mais de 13% em um único dia depois de o empresário Elon Musk declarar que a Tesla decidiu suspender a venda de carros por meio de bitcoins por causa dos impactos ambientais causados pela mineração das moedas.
Apesar dos altos e baixos, o bitcoin tem conquistado espaço. Em junho, o El Salvador se tornou o primeiro país no mundo a adotar o bitcoin como moeda de curso legal. Isso significa que qualquer agente econômico deverá aceitar o bitcoin como forma de pagamento, sem restrições. Segundo o presidente Nayib Bukele, a medida vai ajudar a colocar o pequeno país da América Central no radar dos investidores estrangeiros.
O sucesso do bitcoin motivou a criação de várias outras moedas digitais. A segunda principal criptomoeda é o ethereum, criado em 2015. Assim como o bitcoin, o ethereum utiliza a tecnologia de blockchain e não tem nenhuma empresa ou governo por trás. No ethereum, porém, não há limite de moedas virtuais que podem ser geradas. Além disso, o ethereum foi concebido desde o início como uma plataforma em que os investidores podem negociar contratos e ter acesso a outros produtos, como empréstimos e seguros. A plataforma utiliza programas desenvolvidos em linguagem computacional própria, a Solidity, e possibilita a execução de smart contracts, contratos digitais programáveis que permitem executar de forma automática um código previamente definido — a mesma tecnologia utilizada na assinatura eletrônica de documentos.
Segundo o site Currency.com, existem atualmente mais de 13.500 criptomoedas no mundo. Outro site especializado, o Coincodex.com, estima hoje o valor total do mercado de criptomoedas em 2,3 trilhões de dólares — superior ao PIB do Brasil, que no ano passado fechou em 1,4 trilhão de dólares. O bitcoin representa em torno de 40% do mercado de criptomoedas, com uma capitalização de 934 bilhões de dólares, enquanto o ethereum representa outros 20%, com uma capitalização de 484 bilhões de dólares. (O valor da capitalização é a cotação da moeda multiplicada pelo número de unidades em circulação.)
Ao contrário dos primeiros tempos das criptomoedas, em que predominavam investidores individuais e curiosos, o que tem dado sustentação a esses ativos atualmente são os investidores institucionais, ou seja, grandes empresas. O banco americano J.P. Morgan afirmou recentemente em um relatório que investidores institucionais voltaram a ver o bitcoin como uma “proteção (hedge) contra a inflação melhor do que o ouro”. Empresas como PayPal (pagamentos online), Tesla (montadora), Mercado Livre (comércio eletrônico) e MicroStrategy (tecnologia) estão entre as que já realizaram grandes investimentos em criptomoedas.
Para reduzir a volatilidade dos preços, surgiu um novo tipo de criptomoedas: as stablecoins (“moedas estáveis”). Elas são lastreadas em ativos reais, como as moedas fiduciárias nacionais (dólar, euro etc.), ouro, petróleo ou outras commodities. Uma das principais stablecoins é o tether, que é atrelado ao dólar americano. Assim, 1 tether valerá sempre 1 dólar. Na prática, é uma espécie de dólar digital, embora a stablecoin não tenha nenhum vínculo com o Fed, o banco central americano.
A popularização das stablecoins chamou a atenção dos bancos centrais de vários países, que estudam o lançamento de suas próprias moedas digitais, chamadas CBDC (Central Bank Digital Currency). Uma CBDC é a forma digital da moeda fiduciária de um país. Em vez de imprimir dinheiro, o banco central emite moedas eletrônicas respaldadas pelo crédito de que desfruta o governo. Segundo um levantamento do instituto americano Atlantic Council, 87 países, representando mais de 90% do PIB global, avaliam atualmente a possibilidade de criar uma CBDC. Sete países já lançaram sua moeda digital, quase todos no Caribe (como Bahamas, Antígua e Granada). Em outubro, a Nigéria se tornou o primeiro país fora da América Central a criar uma CBDC.
Na prática, a proliferação de criptoativos como o bitcoin acaba com o monopólio dos bancos centrais na emissão de dinheiro. Assim, a criação de CBDCs é uma forma encontrada pelos países para evitar o risco de um sistema monetário paralelo, desregulamentado e sem nenhum controle por parte dos governos.
A China vem testando sua CBDC desde o ano passado. Até o final de outubro, 140 milhões de pessoas haviam utilizado a moeda digital emitida pelo Banco Popular da China, realizando pagamentos no total de 62 bilhões de yuans (cerca de 9,7 bilhões de dólares). “Para variar, a China é um dos países que estão na dianteira nessa área”, diz Luciano Silva, professor da disciplina Teoria da Computação e Linguagens Formais no curso de Ciência da Computação do Insper. “Com a moeda digital, o governo pode saber em tempo real as movimentações financeiras e o que está acontecendo na economia. Em termos de inteligência competitiva, vai ser uma vantagem enorme.”
No Brasil, o Banco Central planeja iniciar os testes com sua CBDC, o real digital, em 2022, com o plano de lançá-lo até 2024. O real digital emitido pelo Banco Central terá o mesmo valor do real físico e poderá ser usado em pagamentos, compras e investimentos. Uma de suas vantagens é reduzir a emissão de papel-moeda, além de poder ser usado em qualquer lugar do mundo sem necessidade de conversão por meio de bancos. O BC diz que a digitalização já é uma realidade nas transações financeiras — apenas 3% do dinheiro disponível no país para as operações estão na forma de papel e quase 9 trilhões de reais estão depositados nos bancos e são negociados digitalmente.
O avanço das moedas digitais fará desaparecer por completo as moedas físicas? Para Ricardo Rocha, professor de Finanças no Insper, é difícil projetar o futuro. “Não dá para prever se o papel-moeda ainda vai conviver com as moedas digitais por mais 10 anos, 15 anos ou 20 anos, porque tudo está mudando muito rapidamente. O que dá para dizer é que as moedas virtuais já são uma realidade”, diz Rocha. “O preconceito que havia contra essas moedas caiu muito nos últimos cinco anos e a questão regulatória também evoluiu.”
No aspecto da regulação das moedas digitais, Rocha avalia que o Brasil ainda caminha devagar, principalmente por parte da Comissão de Valores Mobiliários. A CVM é a autarquia vinculada ao Ministério da Economia que fiscaliza o funcionamento do mercado financeiro. “Eu entendo a cautela da CVM, porque não é um tema tão simples de regular”, diz o professor. Para estabelecer as regras da operação com as moedas digitais, Rocha sugere a realização de testes por meio de sandbox (“caixa de areia”), um conceito adotado na computação para testar programas, como um antivírus. Para isso, cria-se uma área separada do resto do computador, com uma camada adicional de proteção, que pode ser usada para testar qualquer programa, sem medo de que ele danifique o sistema caso algum arquivo nocivo entre em ação. “O regulador moderno utiliza o conceito de sandbox, que é como a caixinha de areia onde os gatos fazem suas necessidades à vontade”, diz Rocha. “Dentro da caixinha, é permitido fazer tudo, mas, se fizer fora da caixinha, haverá punição. É assim o processo de aprendizado e é assim que se estimula a inovação”, afirma.