A pandemia evidenciou as falhas das velhas formas de liderança. Mas onde estão as novas?
David Cohen
Logo no início da pandemia, o ator e roteirista Marcelo Laham, um dos criadores do canal humorístico Embrulha Pra Viagem, fez sucesso com o personagem Eugênio, um pai que entra em depressão por causa do isolamento, da crise econômica, das dificuldades com os filhos — enfim, alguém que dava voz às angústias de boa parte dos seres humanos nos últimos 20 meses. Em outubro, depois de um hiato nesse personagem, Laham voltou a encarnar Eugênio. Deprimido, ainda. Desta vez, por causa do fim do isolamento. Havia se acostumado.
Talvez não com os traços exagerados que caracterizam um esquete humorístico, mas a readaptação à vida nos escritórios é uma questão crucial que as empresas começaram a viver nas últimas semanas. Uma pesquisa da consultoria KPMG realizada entre julho e agosto apontava que 52% das empresas voltariam à operação presencial ainda neste ano. A queda no número de mortes pela pandemia provavelmente fez essa taxa aumentar bastante. Com a maioria da população vacinada e as restrições sanitárias amenizadas, o trabalho em tese pode voltar a ser similar ao que se fazia em 2019, antes do coronavírus.
Em tese. Na prática, ninguém nunca volta a um estado anterior. Algumas das transformações provocadas pela pandemia podem refluir, outras avançar mais um tanto, e outras ainda se combinar de formas imprevisíveis. Descobrir as melhores maneiras de lidar com uma situação em acelerada transformação é hoje o principal desafio dos líderes — de todos os níveis — das empresas.
De certa forma, o retorno ao trabalho presencial é uma volta dos que não foram. Afinal, menos de 10% das pessoas ocupadas trabalharam de forma remota no Brasil, segundo um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com dados da Pnad Covid-19, do IBGE, referentes ao período entre maio e novembro do ano passado. Parece pouco, mas é um grupo mais concentrado nos funcionários com ensino superior, que trabalham em escritório e têm remuneração mais elevada — um grupo que está normalmente na vanguarda de mudanças generalizadas. E seu afastamento físico teve impacto em toda a força de trabalho — seja pela adoção mais intensa de tecnologia digital, pelas novas formas de medir (ou não medir) produtividade ou até pela diferenciação evidente entre quem podia e quem não podia trabalhar remotamente.
A consequência mais visível de todos esses meses em que formas de trabalho mais flexíveis tiveram que ser implementadas pode ser vista nos Estados Unidos. Lá, uma pesquisa do Instituto Gallup feita em julho revelou que 48% dos trabalhadores estão ativamente procurando alternativas para mudar de emprego. Em agosto, outra pesquisa, da consultoria PwC, emendou a descoberta: são 65% procurando outro posto.
Falta de engajamento é um problema histórico em companhias do mundo inteiro, mas a pandemia o agravou de diversas maneiras. De um lado, o estresse coletivo fez as pessoas repensarem suas vidas e avivou desejos de ter trabalhos mais significativos; de outro, o trabalho remoto poupou muita gente das agruras do trânsito e das birras de chefes e colegas.
A hora de voltar, nesses casos, é como um puxão forte em uma corda roída; aumenta as chances de uma ruptura. Em abril, o número de pedidos de demissão nos Estados Unidos foi recorde. Não durou muito. Em julho, o recorde foi novamente batido. E mais uma vez em agosto (4,3 milhões de pessoas pediram o boné). De acordo com a consultoria de gestão de pessoas Visier, um em cada quatro empregados americanos pediu demissão ao longo deste ano. Economistas apelidaram o fenômeno de Great Resignation (grande renúncia).
No Brasil, com mais de 14 milhões de desempregados e uma economia titubeante, para dizer o mínimo, essa realidade não aparece. Mas está subjacente. Quer dizer: na maioria dos setores, o quadro é de desemprego e, portanto, a balança pende para o lado das empresas. Há mais oferta que procura. Entretanto, nas áreas em que há falta de talentos — setores aquecidos, especialidades valorizadas, gente com habilidades especiais —, vale a mesma lógica que nos países ricos.
Além disso, mesmo nos setores em que há oferta abundante de mão de obra, cultivar a insatisfação é arriscar-se a perder funcionários assim que a situação mudar.
Cuidar das pessoas é, portanto, uma das tarefas primordiais dos líderes nas empresas. De acordo com um recente relatório da consultoria de gestão Horton International, a habilidade mais importante para os gestores neste momento é empatia. Não é a única, obviamente.
Segundo um artigo lançado pelo Fórum Econômico Mundial em outubro, o papel dos gestores está mudando em cinco aspectos:
Não são desafios inteiramente novos, como lembra Aloisio Buoro, professor de liderança e gestão de RH do Insper. Esses vetores já se desenhavam com clareza pelo menos desde o início do século. O que a pandemia fez foi dar-lhes sentido de urgência. Buoro acrescenta que os líderes precisam de duas características fundamentais para passar a esse novo conjunto de habilidades: entender o contexto em que estão e perceber a si mesmo neste contexto.
“O gestor precisa se inspirar no trabalho do ator”, diz. “Numa peça, o ator presta atenção ao mesmo tempo em seu papel, naquilo que tem de desempenhar, e na reação da plateia. Ele tem de agir e tentar entender a reação que provoca. Porque, neste momento em que a gente não tem clareza do mundo, precisa ir testando as alternativas.”
Nesse sentido, a experiência do isolamento social foi educativa. “Nós tínhamos uma noção de produtividade que era baseada no olhar”, afirma Buoro. “Quando esse olhar foi suprimido, percebemos que precisamos de outras formas de avaliar o trabalho. Agora, com a possibilidade de olhar de novo, vem a pergunta: será que aquilo era um bom indicador de desempenho?”
Claro, muitas empresas ainda estão presas ao passado. Algumas investiram em software para acompanhar o comportamento dos empregados online, com indicadores como horas logadas no sistema da companhia ou número de batidas nas teclas do computador, conforme revelou uma pesquisadora do Instituto Gallup, com base nas conversas do Gallup’s Roundtable, a maior reunião internacional de diretores de RH de grandes empresas. Ou seja, muitos gestores ainda confundem estar presente com ser produtivo.
Várias companhias, porém, perceberam que as pessoas em geral trabalham bem mesmo se não estiverem submetidas ao escrutínio ininterrupto de um gestor. Houve até relatos de que a produtividade aumentou — embora não haja métricas suficientes para atestar isso. De qualquer forma, há um consenso de que, se houve ganho de produtividade, ele não é sustentável: com o tempo, o isolamento tende a corroer o senso de pertencimento, e a cultura da empresa começa a esmaecer.
Outro aspecto em que a pandemia serviu como lição aos gestores, de acordo com Buoro, foi o da possibilidade de uma solução única para todos. “As decisões uniformes, para todos os empregados, foram claramente erradas”, afirma. “Um funcionário precisava de cadeira, outro precisava de uma conexão melhor de internet, outra precisava de um horário mais flexível…” Uma vez que você percebe que pessoas diferentes têm necessidades diferentes e que atender a elas de formas diferentes é mais produtivo, não há muito como voltar atrás, acredita Buoro.
Ele cita o exemplo da Asics, empresa de artigos esportivos, que em vez de tentar adivinhar abriu a pergunta para seus funcionários: “O que vocês querem para ser mais produtivos?”.
A própria noção de produtividade está em transição. “Muitos vendedores dizem que são mais efetivos agora do que eram antes”, diz Buoro. Por fazerem mais visitas virtuais, paradoxalmente conseguem ter um contato mais próximo com os clientes — porque não precisam esperar o momento da visita a um local distante, falam com eles com maior frequência.
Buoro diz ter tido ele mesmo essa experiência. Em um trabalho de consultoria, precisava entrevistar três dezenas de pessoas, dois terços delas na Amazônia. “Em vez de gastar três meses, que seria o normal com as viagens, fiz tudo em 20 dias”, afirma. Entretanto, as conversas por vídeo não trazem a mesma riqueza da visita pessoal. Perde-se um tanto do contexto. A tendência, segundo o professor, é buscar formas de unir o melhor dos dois mundos. Seria a migração para o mundo “fisital”, o termo que as consultorias estão começando a usar, união de físico com digital.
Todas essas mudanças passam por um movimento de, como diz Buoro, “se re-perceber”. Os líderes precisam estar preparados para mudar seu modo de atuar, e isso não é fácil. “Uma coisa é alguém preparado para dar respostas. Outra coisa é alguém preparado para ajudar as pessoas”, afirma. E não se trata de pular de uma ponta para a outra. Nós precisamos das duas.
Parece contraditório? Você ainda não viu nada. De acordo com a consultoria PwC (antiga Price Waterhouse Cooper), os líderes de hoje se encontram em meio a cinco paradoxos:
A solução talvez esteja na linha coletivista que Buoro defende. “O que importa não é mais o líder, mas ações de liderança. É menos uma pessoa e mais um comportamento, uma cultura disseminada pela empresa.” Liderança, nessa concepção, não vem de uma pessoa visionária, mas resulta das ações que os indivíduos tomam na direção de construir um significado conjunto.
Algo de que não só as empresas, mas o mundo está precisando.